Foto: Anna Ortega

Bela Gil: “Os Ministérios da cultura, saúde e educação precisam se unir para transformar a alimentação no Brasil”

Como a alimentação e a cultura se relacionam? A escritora, chef e Mestra em Ciências Gastronômicas Bela Gil acredita que há uma intersecção intrínseca entre elas. As manifestações culturais populares e artísticas brasileiras acontecem ao redor da comida – basta pensar no São João, nas Festa do Divino, nas Congadas, no Festival Folclórico de Parintins. É na mesa também que se estabelecem relações de poder e desigualdades de gênero, raça e classe. 

Não há como pensar o Brasil sem olhar para alimentação – o prato, as mãos que fazem a comida, as histórias e o entorno de cada relação cotidiana. É isso que Bela Gil investiga: de que forma a comida conta um pedaço da história do país. O Nonada conversou com a chef durante sua passagem pela 70ª Feira do Livro de Porto Alegre.

O Brasil, um país erguido diariamente pelas mãos de mulheres negras, da classe trabalhadora, precisa encarar as assimetrias que caracterizam o trabalho doméstico, e como o adoecimento populacional pela falta de acesso a alimentos da in natura são questões atuais. A escritora retoma a questão através de uma linguagem acessível em “Quem vai fazer essa comida? – Mulheres, trabalho doméstico e alimentação saudável” (Elefante, 2023).

“É a dona de casa, a mãe, a avó, a esposa, a empregada doméstica migrante, a mulher pobre e preta da periferia que continuará tendo que pilotar o fogão? E quem fará a comida dela, da família dela? No livro, Bela Gil critica a histórica desvalorização do ato de cozinhar, com raízes escravocratas, e reivindica o pagamento de salários para o trabalho doméstico, tema da obra de pensadoras como Silvia Federici.

Foto: Eduardo Fernandes/CRL

O entrelaçamento entre alimentação, cultura e política atravessa a trajetória de Gil, que nos últimos anos integrou a equipe de transição de Lula  no Desenvolvimento Social e Combate à Fome, e atualmente atua como voluntária no Conselho de Desenvolvimento Econômico, Social e Sustentável do governo, o chamado “Conselhão”, onde divide espaço com intelectuais como Sueli Carneiro. O novo Conselho foi recriado em 2023, e ganhou em seu nome o termo “Sustentável”, para chamar atenção sobre a potencialidade ambiental do país no atual cenário de mudanças climáticas. 

Em 2021, Bela Gil co-criou o instituto Instituto Comida e Cultura (ICC) que une cultura e alimentação. A Organização atua com viés educacional para alimentação saudável e o fortalecimento das culturas alimentares por meio da educação emancipatória e decolonial. “Há uma interseccionalidade entre cultura e alimentação. O Ministério da Cultura, da Educação e da Saúde precisam se unir para a transformar a alimentação e conservar tradições culturais que mantêm a população brasileira”, avaliou em resposta ao Nonada.

“O Brasil tem uma cultura alimentar muito forte, e a gente não pode perder isso”, afirma. A defesa do arroz e feijão, considerado base da comida cotidiana brasileira, é uma das falas que Bela faz em sua obra e em palestras que ministra. Segundo ela, são as chamadas ‘comidas de panela’ – em oposição aos ultraprocessados, que mantém a saúde e a cultura de um povo.  “A alimentação é uma das expressões mais fortes de uma cultura. A gente mudando a alimentação, transformamos a cultura. O contrário também acontece.”

Ela opta pelo termo ‘comida de panela’ em oposição à ‘comida de verdade’, pois, segundo Bela, dizer que, parte da população ingere comida ‘de mentira’ é responsabilizar as pessoas individualmente por um problema que é estrutural, e que envolve a falta de acessos – no plural. “Eu prefiro ‘comida de panela’ porque nos faz lembrar que alguém a fez”. Do contrário, “dá a entender que as pessoas que não tem esses acessos, não estão comendo”, argumentou em conversa com a escritora e professora Elaine Maritza na Feira do Livro de POA.

Política e alimentação 

Segundo a chef, os “acessos” que impedem grande parte da população brasileira de comer bem são seis: intelectual, geográfico, financeiro, água potável, tecnológico e o tempo. Esse último lança luz para o trabalho doméstico, realizado historicamente por mulheres. Em seu livro, a autora enfatiza que a piora dos índices de saúde, relacionados à alimentação, não podem servir para culpabilizar as famílias. Pondera, inclusive, uma frase que circula nas redes sociais de que “comer é político”, pois argumenta que “comer só se torna um ato político quando você tem essa escolha. O grande problema do discurso pela alimentação saudável é que o discurso acaba culpando o indivíduo.” 

Foto: Eduardo Fernandes/CRL

Dizer que a alimentação é uma lente para percebermos o mundo é observar que a garantia da comida deve vir com ações políticas concretas, como a multiplicação de restaurantes populares e programas de alimentação escolar que garantam alimentação em tempo integral. “Você tira uma carga quando você sabe que seu filho está sendo bem alimentado na creche”, reflete. “A gente precisa de mais pessoas cuidando das nossas crianças.” 

Para a autora, neste ano um marco político importante nessa discussão foi a elaboração intermisterial da Política Nacional de Cuidados, que conceitua cuidado como o trabalho cotidiano de produção de bens e serviços necessários à reprodução e a sustentação da vida, das sociedades e da economia, bem como à garantia do bem-estar das pessoas. “São as famílias, e especialmente as mulheres, as que se responsabilizam desproporcionalmente pela provisão de cuidados no País”, destaca a justificativa do projeto.

“Muitas pessoas têm a visão de que remunerar o trabalho doméstico é utópico, mas é uma caminho que temos para alcançar a justiça de classe, de raça e de gênero, porque ele é feito majoritariamente por mulheres pretas e pobres”, explica. “Quando a gente fala que o trabalho doméstico não é só ‘não-remunerado’, mas ‘mal-remunerado’”. A gente sabe quem é que está fazendo esse trabalho. Enxergar como trabalho já é um grande avanço e a gente tem que conseguir políticas para reduzir esse trabalho. É uma forma de autonomia e emancipação para as mulheres, colocá-las em pé de igual. Não é só reparação, mas educação.” 

O ano de 2024 marca duas datas relevantes em relação ao combate à insegurança alimentar. Há dez anos, o Brasil saía do Mapa da Fome. No mesmo ano, foi lançado o Guia Alimentar da População Brasileira. A distância temporal não o deixou ultrapassado: pelo contrário, as reivindicações que o documento fazia seguem sendo acertadas. Uma das defesas é o reconhecimento que os conhecimentos tradicionais sejam valorizados assim como a ciência alimentar. “A gente precisa de uma mudança estrutural na alimentação. Há uma lacuna entre o conhecimento [sobre alimentação] e a prática”, diz Bela Gil. 

A “ponte” entre teoria e prática mencionada pela autora se dá ao fazer a conexão da comida com problemas estruturais do país e questões globais como as mudanças climáticas. “Um dos meus grandes objetivos é fazer com que as pessoas entendam que há uma relação entre o consumo de alimento ultraprocessado e a enchente que aconteceu no Rio Grande do Sul, porque está tudo interconectado”, aponta. 

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Coordenadora de jornalismo do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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