A artista Yacunã Tuxá (Foto: Micaela Menezes/divulgação)

Yacunã Tuxá: “Tentam negar aos artistas indígenas o direito à subjetividade”

Leonardo Nascimento, especial para o Nonada Jornalismo

Salvador (BA)  No final da década de 1980, o povo Tuxá de Rodelas — município localizado no estado da Bahia, às margens do rio São Francisco — sofreu um processo de deslocamento compulsório, ocasionado pela construção da Barragem de Itaparica. Os Tuxá ocupavam diversas ilhas na região, em especial a Ilha da Viúva, submersa pela barragem. Até hoje, a Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf) não concretizou a devida reparação ao povo, que continua sem ter uma terra demarcada.

Membros do povo Tuxá têm elaborado essas e outras violências por meio de produções acadêmicas, artísticas e culturais. Um exemplo notável é o trabalho da artista visual, ativista e escritora Yacunã Tuxá, entrevistada com exclusividade pelo Nonada.

A prática artística de Yacunã é multidisciplinar e abrange texto, ilustração, pintura, escultura e outras experimentações estéticas. Por intermédio da escrita e da imagem, Yacunã costura elos entre memória, ficção e desejo. No momento, ela trabalha na edição do seu primeiro livro: Da tua boca saem as palavras sementes, coletânea de poemas que será publicada até o meio do ano pela editora Urutau.

A conversa a seguir ocorreu no início de fevereiro, no dia seguinte à festa de Iemanjá. Em uma segunda-feira bastante agitada, em um café no simpático bairro Santo Antônio Além do Carmo, a artista refletiu sobre sua trajetória e sobre as memórias do seu povo, marcadas pela dor e pela injustiça, mas também pela subversão. Em sua fala, assim como em seu trabalho, Yacunã traz um poder de renovação que nos faz ansiar por um futuro em que tais violências sejam inaceitáveis. Sua presença é como um rio, cheia de força e mistério.

“Eu carrego muitas coisas que as pessoas acham que não cabem na mesma pessoa. Sou uma indígena do sertão, viva, forte, sapatão, que usa o computador e a arte para se expressar e falar do seu povo”, declara Yacunã. Em suas ilustrações, ela expressa o desejo de que os povos indígenas sejam vistos de forma complexa, sem dicotomias ou reducionismos.

Fotografias realizadas para o trabalho final do Laboratório de Fotografia da UFBA (Foto: Raquel Franco / LabFoto © 2019)

Artistas e curadores/as indígenas foram essenciais para Yacunã entender a força de seu próprio trabalho, que hoje faz parte do acervo do MASP e de outras instituições: “Eu começo criando arte digital em rede social, sem ter muita noção que aquilo era um lugar de produção artística e que dialogava com a arte indígena contemporânea”, conta. “Entre o final de 2019 e o início de 2020, eu recebo o convite da curadora Naine Terena para participar de Véxoa, na Pinacoteca de São Paulo. Véxoa foi um divisor de águas que me abriu muitos caminhos. Inclusive, por me apresentar a outros parentes indígenas.

Em uma conversa que entrelaça trajetória pessoal, artística, política e cultural, Yacunã nos diz que seus caminhos sempre apontam para sua ancestralidade: “Eu volto muito pra casa da minha avó, porque é o lugar onde eu vejo arte de verdade. Minha avó é a intelectual mais sofisticada que eu conheço pra pensar sobre a memória, e em como dar novas possibilidades para nossa gente.”

Nos últimos anos, o povo Tuxá apostou na educação universitária de seus membros como forma de salvaguardar seus direitos. No entanto, o roubo de terras sofrido ainda não foi reparado, impossibilitando o avanço na construção de um país mais justo para todos os seus povos.“A coisa mais poderosa que eu tenho na vida é a minha identidade. Ela é minha arma e meu escudo”, afirma Yacunã. Dessa forma, ela acredita que a arte é uma das formas de seguir enfrentando as sucessivas violências, sem perder de vista as sutilezas da vida e o direito à própria subjetividade.

Confira a entrevista na íntegra:

Nonada – Yacunã, o que você acha de começarmos a entrevista falando sobre a história do seu nome?  

Yacunã Tuxá – Eu precisei passar por um processo de desbatismo para conseguir nascer como artista. Venho do povo Tuxá, povo indígena do sertão, povo ribeirinho do rio São Francisco. Minha mãe conta que, desde criança, eu pintava as paredes e expressava o desejo de ser artista. Quando comecei a fazer ilustrações e a compartilhá-las nas redes sociais, fiz isso movida por uma série de coisas que atravessavam o meu povo e o meu próprio corpo. Afinal, sou uma mulher indígena, do sertão, nordestina e sapatão. 

No início, eu assinava com o meu nome de batismo, mas sentia que algo não estava certo e comecei a matutar sobre isso. Muitas das minhas ilustrações vinham de sonhos e incômodos de uma vida inteira. Eu estava com uns 25 anos, habitando a cidade de Salvador, apontada pelo IBGE [censo de 2022] como a segunda capital do Brasil com maior presença indígena. Ainda assim, era muito desconfortável transitar por essas ruas e perceber que as pessoas não conheciam nada da minha história. Para uma mulher indígena, como eu, que sonhava em ser artista e escritora — ou seja, atuar na área da criatividade —, tudo isso parecia quase impossível.

Além disso, venho de uma família materna em que todas as mulheres têm Maria como primeiro nome. Embora seja algo muito comum no interior, eu achava aquilo um absurdo, porque via que era herança da catequização. Poucas pessoas na aldeia conseguiam ser batizadas com nome indígena. O próprio cartório não aceitava, pedindo um nome mais “simples” ou até mesmo impondo outro nome. Daí, acabava que as mães acatavam. Até porque, colocar nome indígena na criança era deixá-la marcada dentro de uma sociedade extremamente racista.

Então, fiz uma viagem para aldeia com isso na cabeça, pensando que não poderia nascer como artista carregando meu nome de batismo. Fui para o ritual e pedi um nome, queria ser batizada pelo nosso sagrado. Ou seja, era um processo de desbatismo mesmo, tirando o nome de cartório pra ouvir esse som ancestral que seria o meu nome. Entretanto, não sei por que razão, não consegui receber meu nome naquele dia e fiquei muito triste. 

Quando estava na véspera de voltar para Salvador, um primo veio correndo e falou: “Vamos, vamos lá no quarto de ritual. Parece que vão te dar seu nome”. Eu fui e ouvi: “Yacunã”. Quando escutei, falei: “é isso! É esse o meu nome!”. No ritual, soube que Yacunã significa “a filha da terra”. Foi aí que tudo começou a fazer sentido. Eu comecei a percorrer o caminho inverso, revirando tudo aquilo que estava escondido em baús. Comecei a mexer nas memórias de família e do meu povo. Sinto que, depois do meu desbatismo, passei a ter mais liberdade para falar abertamente sobre várias questões e para bater de frente, mostrar a complexidade das nossas vidas, em contraposição à lógica do racismo que é: reduzir e simplificar. Assim, começaram a nascer minhas ilustrações de mulheres indígenas em diferentes contextos. Antes de receber o meu nome, o trabalho não tinha a força que passou a ter. Pelo menos eu sinto assim. 

“Ah eu amo as mulheres)”(2023) (Foto: divulgação)

Nonada – Você nasceu alguns anos depois da remoção do povo Tuxá de seu território. Como foi sua infância e adolescência na nova aldeia? Quais são as suas principais memórias dessa época? 

Yacunã Tuxá – Eu nasci em 1993. Fui a única pessoa da minha família a nascer num hospital. Todos os meus irmãos nasceram através das mãos de uma parteira. Sou a irmã caçula e o meu nascimento marca um outro contexto geográfico, político e social do meu povo. 

O povo Tuxá foi atingido pela construção da Barragem de Itaparica, no final da década de 1980, em um contexto anterior à promulgação da Constituição. Os mais velhos contam que, em um belo dia, chegaram uns homens e disseram que a água iria passar por cima da aldeia. Não tinha muito o que fazer, era preciso sair. A gente está falando aqui de um País em que a ideia de progresso era muito forte.Onde os grandes empreendimentos seriam construídos? Em territórios indígenas, em territórios quilombolas, em territórios de comunidades que não tinham instrução formal, e que, por isso, não poderiam se defender. 

Foi o que aconteceu com o meu povo, nós fomos remanejados. Uma parte ficou na Bahia, e a outra foi para Pernambuco. Depois da barragem, surge a Nova Rodelas, onde eu fui criada. Com a mudança — que a gente entende como um processo calculado de genocídio —, a Chesf [Companhia Hidro Elétrica do São Francisco] promete pro povo Tuxá que, em 6 meses, nós estaríamos num novo território, com terra pra plantio. A Chesf faz o projeto de um acampamento provisório, na nova cidade de Rodelas. Os indígenas foram colocados numa área periférica, em um local que, como eu disse, era pra ser provisório. Um território que não tem pra onde crescer, extremamente pequeno e logo ao lado da cidade. 

O povo Tuxá até hoje não tem terra demarcada. Quando eu nasci, os mais velhos estavam nesse processo de luta pela terra, até meio cansados e desesperançosos, eu acho. Afinal, eles pensaram que seria algo rápido. Meu avô levou muitas sementes na mudança, na esperança de que logo viria uma terra para plantar. Meu povo  vivia da agricultura e da pesca. Era um povo farto nesse sentido, apesar da realidade de desamparo político. Se a gente for pensar dentro da lógica do Brasil, os povos indígenas do Nordeste foram os primeiros a serem dados como extintos. Houve todo um processo de “caboclização”. Esses povos foram vistos como populações que estavam prestes a ser assimiladas pela sociedade nacional, que estavam em vias de tornar-se alguma outra coisa, quando, na verdade, estávamos criando políticas de resistência. 

Tem um canto do meu povo que fala de “ficar abaixadinho”, que é essa ideia de se resguardar para salvar algumas coisas. No nosso caso, salvar a tradição. O município de Rodelas exporta coco para o Brasil inteiro. Portanto, existe um imenso interesse pela terra.  Qualquer tentativa de resolver essa situação é logo barrada pelos grandes produtores. Este é um caso  emblemático para entender o que os povos tradicionais têm vivido no Brasil. Eu cresci vendo as lideranças do meu povo viajando para Brasília, tentando resolver a situação. Nós tínhamos um território que era nosso. O território foi atingido por uma barragem, um projeto do governo brasileiro. E ficou por isso mesmo. 

A gente quer o equivalente à terra que foi alagada. Ao longo desse percurso, entendemos que a nossa terra não foi demarcada porque nós fomos enganados. Por esta razão, o povo sentiu necessidade de tomar posse da caneta, de buscar no estudo uma forma de autodefesa. Atualmente, o povo Tuxá é extremamente escolarizado. Nós temos advogado, médico, professor, antropólogo etc. Hoje, eu digo que a arte é uma dessas ferramentas no processo de defender o meu povo, de não deixar que ele seja vilipendiado outra vez.

Nonada – Como foi o seu processo de formação antes de entrar na universidade? Você estudou na aldeia ou em uma escola da cidade?

Yacunã Tuxá – O meu processo de escolarização começou em uma escola não indígena, na cidade de Rodelas. Eu não tenho muitas lembranças dolorosas dessa época, porque, nos primeiros anos, minha mãe foi minha professora. Minha mãe lutou muito para poder estudar. Ela foi a única dos irmãos que conseguiu. Aos 19 anos, ela foi trabalhar na escola do Estado, por isso, eu não me sentia tão longe de casa assim. 

Quando eu chego na terceira série, fundam uma escola na aldeia, e eu vou estudar lá, mas uma parte do ensino médio eu faço em Minas Gerais. Meus irmãos conseguiram uma bolsa do Prouni para estudar em Governador Valadares. Eu tinha uns 15 anos e estava assumindo minha sexualidade. Como ninguém tinha se assumido na aldeia, foi um processo extremamente solitário. Meus pais não tinham uma maneira de me ajudar. A estratégia deles foi sugerir que eu fosse passar um tempo com os meus irmãos. Foi um momento decisivo na minha vida. A cultura do meu povo, apesar de ter uma tradição muito forte, guarda uma influência grande do catolicismo e da catequização. Hoje em dia, a influência é um pouco mais fraca. A gente não aceita presença evangélica. 

Mas, por conta do catolicismo, o discurso homofóbico ainda era muito presente. Você só tem noção, de fato, da sua identidade, quando você sai do seu lugar. Mesmo tendo vivido muitas experiências de racismo em Rodelas, eu não conseguia entender que aquilo era um ataque direto à minha identidade. Demorou bastante tempo pra eu me dar conta de que eu nunca tive muitos amigos não indígenas na escola. Eu só andava com as meninas da aldeia. Em Minas, fui entender o que é ser uma pessoa indígena no Brasil, e todo o descaso em relação às nossas vidas.  Eu via parentes de outros povos dormindo na rua. Pessoas que eu não conhecia, não tinha nenhuma relação direta, mas aquilo mexia muito comigo, porque eu me sentia no lugar delas. 

Foi assim que eu compreendi que a minha luta era muito maior que a minha casa, que a minha aldeia. Que a minha identidade ia muito além do povo Tuxá. No entanto, eu escondia que era indígena. Algo que me machuca até hoje. Uma vez, na escola, eu ouvi um cara branco falando: “Índio? Por mim, matava todos. Índio é tudo preguiçoso”. Era um discurso bastante comum… esse ódio, esse racismo contra os povos indígenas que estavam ali no entorno. Eu fiquei muito assustada com aquilo. E eu via a minha irmã passando por coisas parecidas na faculdade. O meu irmão, a mesma coisa. Então, eu decidi voltar para casa. Nessa época, eu comecei a ter uma presença bem forte no Facebook.

Foto: divulgação

Nonada – Qual a importância das redes sociais no seu processo de formação política? Como era a relação entre a sua vida na comunidade e a sua atuação na internet?

Yacunã Tuxá – As redes sociais estiveram muito presente na minha formação. Teve um projeto que levou computadores e internet para as aldeias. Muitos indígenas, principalmente do Nordeste, vão se lembrar do “Índios on-line”. A gente tinha uma rede social que era só nossa, uma espécie de bate-papo UOL para indígenas. Foi um projeto que me ajudou a entender a importância da comunicação e da necessidade de se expressar. 

Quando volto pra aldeia, eu crio um grupo jovem. Era um grupo de fortalecimento da cultura. Por conta da minha sexualidade, houve um momento em que as pessoas deslegitimaram completamente a minha existência. Foi uma fase de muita angústia pessoal. A espiritualidade foi o que me salvou, porque ela me levou pra um lugar onde eu não precisava me fechar, não precisava fugir da minha cultura, da minha tradição. Com a atuação no grupo jovem,  começo a reconquistar o respeito das pessoas. Paralelamente, vou marcando minha presença na mídia, através da internet. Foi nessa época também que eu parei pra pensar na questão dos nomes. 

Eu resolvo remexer os documentos e resgatar o nome dos clãs, questionando os sobrenomes que nos foram impostos. Ali, eu começo a querer provocar uma reflexão que vai da minha aldeia para o mundo. É com esse pensamento que eu entro na universidade, primeiro no direito, um curso extremamente elitista. Eu fiz metade do curso e estava me saindo bem, mas entendi que não era meu caminho. 

Assim, os ventos me trazem a Salvador para cursar letras, por meio de uma política pública que oferece bolsas de permanência. Em Salvador, começo a me libertar de muitas amarras. Foi aqui que eu consegui falar da minha sexualidade publicamente. Mas no curso de letras, que sempre foi minha primeira opção, eu acabo enfrentando o mesmo racismo que no direito. As mesmas coisas. Hoje, depois de muita luta, eu sinto que os ataques são menos violentos. Ainda assim, a gente precisa se defender e se justificar o tempo inteiro, algo que demanda muita energia.

Nonada – Antes de começar a participar de exposições, você se tornou conhecida na internet por conta dos seus textos e, principalmente, das suas ilustrações. Quais foram as suas principais motivações para compartilhar suas experiências pessoais?

Yacunã Tuxá – Em resumo, minha motivação surge de uma angústia pessoal, ao não me ver refletida em novelas, músicas, na moda, na arte, enfim, em nada positivo do que eu consumia. Eu carrego muitas coisas que as pessoas acham que não cabe na mesma pessoa. Uma indígena do sertão, viva, forte, sapatão, que usa o computador e a arte para se expressar e falar do seu povo. 

Quando eu dizia que era LGBT, vinha toda aquela enxurrada. Essa situação começou a despertar em mim a necessidade de produzir um material pras pessoas se educarem. Eu publiquei, no meu blog, um texto que foi bem emblemático sobre a experiência de ser uma mulher indígena e sapatona. “Mulher indígena e sapatona?!”. Parecia até que os termos não combinavam. Mas sabe o que foi mais legal? Quando escrevi, eu estava tentando me livrar de toda cobrança que sentia sobre mim. Acho que foi uma forma de tentar me justificar pras pessoas brancas. Eu dei de cara com um silenciamento muito grande de indígenas LGBTs em suas comunidades. Inclusive na minha própria comunidade, onde pessoas de gerações mais velhas nunca conseguiram se assumir. Eu recebi muitas mensagens de pessoas indígenas dizendo que eu tinha escrito tudo aquilo que elas queriam dizer. No texto, eu falava sobre a questão da interseccionalidade, para mostrar que as mulheres indígenas não são todas iguais. Eu falava também sobre a minha dificuldade em transitar entre o movimento indígena e o movimento LGBT.

Se, por um lado, não era possível falar abertamente sobre a minha sexualidade no movimento indígena, por outro, o movimento LGBT tinha uma visão muito atrasada, e até mesmo fetichizada, sobre as questões indígenas. Além disso, um tempo antes eu havia participado, com um grupo grande da minha aldeia, de um protesto na Câmara dos Deputados. Nós somos indígenas do Nordeste. Ou seja, indígenas muito plurais. Nós não temos uma só cara. Nesse protesto, fizeram várias fotos de pessoas da minha comunidade e expuseram a gente em grupos na internet. Eram closes do nosso rosto, com legendas que diziam: “Falsos índios invadem a Câmara dos Deputados”. Vários e vários comentários de ódio. Quando eu começo a publicar textos no meu blog, em meados de 2016, e começo a receber as mensagens que eu comentei, percebo que preciso usar aquele espaço para subverter o ódio contra pessoas indígenas. 

Eu precisava subverter as imagens que tinham sido construídas sobre nós. E não só pras pessoas que estavam na internet avaliando até o nosso celular  (se um indígena tem um iphone, meu Deus!). Eu queria mostrar novas imagens para mim e para outros jovens como eu. Eu queria gerar identificação. Então, comecei a fazer esses desenhos na mesa digitalizadora. Foi um processo de muita força de vontade pra aprender, um processo autodidata feito na raça.

“Filhas da Terra”, de Yacunã Tuxá (Foto: Prêmio PIPA/divulgação)

Nonada – A ilustração é um gênero pouco valorizado no universo das artes visuais. Quais motivos te levaram a optar por ela como sua principal forma de expressão, ao menos no primeiro momento? Como tem sido o seu percurso no mundo da arte desde então?

Yacunã Tuxá – Conhecendo as instituições e o mercado de arte, o que eu posso te dizer é que até hoje eu passo pelas mesmas situações e dificuldades de quando eu comecei. Eu sinto que a transformação dos museus ainda é bem pequena. Mesmo trabalhando duro e tendo participado de várias exposições, mesmo tendo construído um currículo, é quase sempre a mesma coisa. O principal entrave está no racismo. Um racismo que nos causa um enorme desconforto. Uma coisa que não me deixa desistir é o fato de que eu caminho junto com outros artistas. A gente faz um aldeamento nesses espaços pra conseguir se proteger e avançar. 

Eu começo criando arte digital em rede social, sem ter muita noção que aquilo era um lugar de produção artística que dialogava com a arte indígena contemporânea. Ou seja, com tudo que outros artistas indígenas estavam propondo. Entre o final de 2019 e o início de 2020, eu recebo o convite da curadora Naine Terena para participar de Véxoa, na Pinacoteca de São Paulo. Véxoa foi um divisor de águas que me abriu muitos caminhos. Inclusive, por me apresentar a outros parentes indígenas. 

Desde então, eu continuei participando de exposições e entrei de vez no mundo da arte. Eu voltei a pintar há pouco tempo. Deve ter uns 3 anos. Eu já pintava, mas não foi a primeira coisa que eu quis mostrar. E por quê? Porque eu, como muitas outras pessoas, cresci aprendendo que pintar demanda uma técnica. Eu achava que não sabia pintar, que o que eu fazia não era bom. Outro ponto é que eu sempre fui uma pessoa ligada ao texto. E a ilustração me parecia uma imagem mais simples discursivamente. Eu queria chamar atenção de forma rápida. Eu tinha urgência de trazer aquelas discussões através da imagem. No período da pandemia, sobretudo, a gente precisava de imagens de força, imagens de esperança. 

Atualmente, a demanda que eu recebo é mais pela pintura, porque o mercado da arte não abraça a linguagem da ilustração. Ainda assim, a minha primeira obra a entrar pro acervo de um museu foi a ilustração Mulher indígena e sapatão, de 2019, que está no MASP. Na época, eu não conseguia entender por que uma ilustração digital poderia interessar a um museu de arte. Hoje, eu compreendo a força daquela imagem. Uma mulher indígena, com uma bandeira LGBT+ no ombro, vestida com uma jaqueta e uma camiseta com a estampa de uma indígena zapatista. Ela olha pra você e te demanda um olhar de volta. 

O último fator que me fez optar, num primeiro momento, pela arte digital foi o discurso que separa indígenas e tecnologia, como se fossem lados opostos. Marcar essa presença no digital foi essencial não só pro meu trabalho, mas para toda a discussão que as pessoas indígenas estavam produzindo. 

Chegou um momento que conheciam e comentavam tanto do meu trabalho, que não dava para os curadores e pras instituições fingirem que eu não existia. Assim, à medida que eu vou ganhando segurança, eu volto a pintar. Em 2022, abre em Salvador a exposição Hãhãw: Arte Indígena Antirracista. Nós criamos uma dinâmica em que todos éramos artistas e curadores. Como eu estava um pouco cansada das minhas ilustrações, eu avisei que não teria nenhum trabalho pra mostrar. Quando a Arissana Pataxó viu as telas que eu tinha pintado, ela me incentivou a exibir, dizendo que estavam muito boas. A Arissana tem formação em belas artes. Se ela estava dizendo, eu acreditava. Depois, eu fiquei refletindo como há forças externas que podem dizer que eu não sei fazer algo que eu faço desde criança.

Nonada – Eu te ouvi dizendo, numa entrevista, que ser indígena, para você, é beber da água do pote da sua avó. Eu achei essa imagem tão bonita! Ela consegue, a um só tempo, oferecer um lampejo sobre o sentido de ancestralidade e borrar as imagens de uma indigeneidade genérica.

Autorretrato (Foto: Yacunã Tuxá/acervo pessoal)

Yacunã Tuxá – A coisa mais poderosa que eu tenho na vida é a minha identidade. Ela é minha arma e meu escudo. Esses dias eu estava mexendo em muitos arquivos do meu povo antes da barragem. Enquanto mexia, refletia que aquilo que me move como artista, e como pessoa, é construir um lugar outro pra minha gente. É pensar em um futuro para todos nós, a partir dos pensamentos que vêm do meu povo. 

Eu cresci nesse contexto de uma aldeia perto da cidade, mais urbanizada. Ainda assim, cresci cultivando minhas tradições. Desde pequena, isso era algo muito precioso pra mim. Eu sou neta e bisneta das principais lideranças do meu povo. É uma grande honra falar de todos eles. É algo que eu trago fortemente no meu trabalho. 

Eu volto muito pra casa da minha avó, porque é o lugar onde eu vejo arte de verdade. Minha avó é a intelectual mais sofisticada que eu conheço pra pensar sobre a memória, e em como dar novas possibilidades para nossa gente. O meu povo tem um ritual quinzenal. Eu lembro das primeiras vezes que eu fui. Era a coisa mais bonita em termos de imagem, de música, de canto, de pisada, de ritmo que eu já tinha experimentado. Recentemente, eu comecei a trabalhar com o barro, que era uma coisa que as mulheres do meu povo faziam. Eu fico indo e voltando nessas memórias, encontrando um lugar genuíno pra mim no mundo.

 Eu espero trilhar coisas muito bonitas daqui pra frente com a minha arte. Mas eu sempre digo que o meu caminho não é só meu. As imagens e as palavras que eu trago não são só minhas. Quando eu volto pra casa — às vezes, eu nem preciso voltar fisicamente — tudo faz sentido. Quando eu disse que estava um pouco cansada das minhas ilustrações, foi porque eu senti que precisava trazer mais da minha própria subjetividade pro meu trabalho, que é algo que tem aparecido na minha pintura e vai aparecer no meu livro de poesias, que eu vou lançar em breve. 

O livro é um diálogo, uma continuidade do meu processo com as imagens. Inclusive, muitos dos poemas acompanham minhas obras visuais. Eu sempre tive essa dinâmica entre imagem e texto. Tentam negar aos artistas indígenas a possibilidade de ter uma subjetividade, como se a gente precisasse sempre fazer um discurso de luta e da resistência dos nossos povos. Eu sigo trazendo tudo isso na minha arte, afinal, foi o que me motivou a começar. Mas, às vezes, a gente só quer pintar uma flor. E essa vai ser a nossa flor. Depois de muita reflexão, eu entendi que essa flor também precisa encontrar espaço na minha história.

* O jornalista viajou para Salvador (BA) com uma bolsa da Wenner-Gren Foundation for Anthropological Research.

Leonardo Nascimento

Leonardo Nascimento (1989) é pesquisador, jornalista, mestre e doutorando no Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ). É graduado em comunicação social (jornalismo) e em cinema e audiovisual pela Universidade Federal Fluminense. Sua pesquisa busca refletir sobre as fronteiras e ressonâncias entre os campos da antropologia, da política e da arte.

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