Foto: Rafa Jacinto / Fundação Bienal de São Paulo

“Ocupamos esses lugares como coletivo, não com o sentimento de artista ocidental, individual”, diz Ziel Karapotó na 60º Bienal de Veneza

Naine Terena, especial para o Nonada Jornalismo

Veneza, Itália — A exposição que ocupa o Pavilhão do Brasil na 60º Bienal de Veneza leva o nome de Ka’a Pûera: nós somos pássaros que andam, com curadoria de Arissana Pataxó, Denilson Baniwa e Gustavo Caboco Wapichana. Três artistas levam obras para este momento – Olinda Tupinambá, Célia Tupinambá e Ziel Karapotó.  O título Ka’a Pûera se refere a espaços de roça que, após a colheita, ficam adormecidos, surgindo nesse lugar, uma vegetação baixa que revigora o local;  remete também a uma pequena ave, que camufla-se no ambiente. Já ‘Cardume’, obra de Ziel Karapotó na Bienal é o desdobramento de uma primeira criação, feita para o Museu Paranaense em 2022/2023.

No contexto da temática geral da 60º Bienal de Veneza ( “Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere” em português, “Estrangeiros em todo o lugar”), curada pelo brasileiro Adriano Pedrosa, a obra de Karapotó problematiza a questão indígena no Brasil, mas também se relaciona com os muitos conflitos vividos no mundo na atualidade. Para os povos indígenas, a demarcação dos territórios é uma das maiores lutas , para que esses, tenham garantias e não se tornem estrangeiros de seus próprios territórios.

Segundo a biografia informada no site oficial do Pavilhão, Indígena da etnia Karapotó, da comunidade Terra Nova, Alagoas, Ziel atua desde o ano de 2012 no campo das artes visuais, performance, instalação, curadoria, arte-educação e audiovisual. É formado em artes visuais na Universidade Federal de Pernambuco e é pesquisador visitante no IHAC/UFBA. Aborda em suas pesquisas as poéticas indígenas, configurações identitárias e o racismo sobre as etnicidades originárias, em especial sobre os povos indígenas no Nordeste. Integra os projetos de pesquisa Cultura de Antirracismo na América Latina (CARLA – UFBA e Universidade de Manchester) e Ciência e Arte Indígena no Nordeste (CAIN/UFPE), e é coordenador geral da Associação de Indígena em Contexto Urbano Karaxuwanassu – ASSICUKA.

Confira a entrevista realizada durante a Bienal:

Naine Terena – Para começar, eu gostaria que você falasse um pouquinho quem é o povo Karapotó.

Ziel Karapotó – O povo Karapotó é um povo localizado enquanto aldeamento, comunidade no agreste alagoano, no município de São Sebastião, em Alagoas. É um povo que está organizado em duas comunidades. Tem a comunidade Karapotó Plak-ô, que até o início da década de 1990 era só uma comunidade, a gente diz que é o tronco mais velho. E aí depois, com as relações internas, os conflitos com relação ao Estado, acabou havendo uma divisão e hoje temos a Karapotó Plak-ô e a comunidade Terra Nova, que é a Terra onde eu nasci.

Naine Terena –  E quem é Ziel Karapotó?

Ziel Karapoto – Ziel Karapotó é um indígena do Nordeste que escolheu a arte como ferramenta de luta e resistência para seguir. Eu me encontrei na arte, sabe? E eu tive muita, eu acho, sorte. Eu venho construindo uma carreira, que eu venho transitando em vários campos das artes. E isso tem sido muito legal, essa construção da minha identidade enquanto artista. Eu me sinto muito completo, porque eu passei por teatro, passei pelas artes visuais, pelas artes circenses, pela música, fiz graduação, licenciatura em artes visuais, então, acho que acabei tendo essas experiências e cada vez mais acredito que sou um ser indígena que tem consciência da força da nossa expressividade, das nossas manifestações culturais.

“Cardume” – Instalação composta por rede de tarrafa, maracás de cabaça, réplicas de projéteis deflagrados e paisagem sonora (Foto: Rafa Jacinto / Fundação Bienal de São Paulo)

Naine Terena –  Você poderia nos apresentar a obra Cardume, exposta aqui na 60º Bienal de Veneza?

Ziel Karapotó – A obra Cardume, ela surge, esse acesso criativo, em 2020. Eu estou vivendo desde 2015 em Pernambuco, e aí acho que em 2020, ou finalzinho de 2019, rolou algo que já é algo comum para alguns povos. Os posseiros, os fazendeiros no sertão de Pernambuco, começaram um processo bem violento mesmo. Eles começaram a matar, a fazer lista de morte para indígenas. E a obra surge desse contexto e das minhas perguntas: ‘até onde isso vai continuar? E até onde nós, enquanto indígenas, sempre temos que lutar incansavelmente? 

Parece que para a gente conseguir qualquer, minimamente, um direito, a gente tem que lutar, alguns dos nossos têm que morrer. Então, ela surge a partir realmente desse contexto, mas acima de tudo, como um manifesto. A gente vai continuar, a gente segue junto, a comunidade segue lutando e não vai parar, sabe? Tem muito sobre isso a Cardume. Eu falo que é uma obra que denuncia e ao mesmo tempo evidencia. Denuncia essas violências, mas evidencia a nossa força. Essas duas forças ali nesse campo, nesse cenário.

Naine Terena –  Sua obra tem uma atualização desse momento em que diversas  guerras estão acontecendo. Não só com relação ao lugar onde ela nasce, que são os povos indígenas, mas também em contexto mundial. Esse fogo cruzado, essa chuva de bala, essa chuva de violência que explode?

Ziel Karapotó – Eu acho muito doido, Naine, que partindo também do meu entendimento, enquanto agente, sujeito criativo, eu acho que é muito legal quando a gente inicia a partir do nosso repertório cultural, constrói algo e isso transborda, sai do micro e vai para o macro. E sim, depois, óbvio, no próprio processo mesmo do fazer a obra, que está acontecendo, eu acho que atravessa e super dialoga, dá pra gente estabelecer alguns paralelos bem interessantes nessa relação. Eu acho que são problemáticas que nos atravessam enquanto seres indígenas, enquanto estarmos em outro continente, em outro território, mas toca também outras nações, outras realidades, outros contextos.

“Cardume” – Instalação composta por rede de tarrafa, maracás de cabaça, réplicas de projéteis deflagrados e paisagem sonora

Naine Terena – E a obra tem uma memória afetiva porque você tem muitas mãos e muitos pensamentos nela, né? Teve uma construção contigo, com a sua mãe, o coletivo que ensina a fazer.Conta um pouquinho sobre a obra a partir dessa perspectiva.

Ziel Karapotó – Eu acho que tanto na performance como nas instalações eu sempre trago isso, sempre minha comunidade me envolve, sempre minha mãe faz alguma coisa, meus tios, meus primos, então já é algo bem comum pra mim. Mesmo às vezes até na performance, tem esse olhar crítico.  ‘Mainha’ fala “ficou borrado, melhore”, de longe, mas bem presente. E é muito doido porque é uma obra que realmente é coletiva, até na montagem é muito coletiva, inclusive fiquei muito feliz que a montagem se deu com a gente aqui. A obra tem a participação de minha mãe, ela produz uma das redes e é algo bem interessante porque eu aprendi a fazer a rede. 

Porque a Cardume que está em Veneza é um desdobramento. A Cardume em sua primeira versão está no Museu Paranaense. Aquela lá foi o meu tio que fez. E aí ele não podia fazer essa versão, porque estava construindo a casa do meu primo. E aí eu tive a ousadia, e motivado pelos curadores, a tentar aprender. E eu aprendi. E nesse aprender foi um dos maiores ganhos,  porque hoje eu sou a terceira pessoa do meu povo que sabe fazer, que teve esse repasse dessa tecnologia. Então é algo imensurável, o sentimento de aprender, de ter dado certo.

Nesse diálogo com o meu tio, com uma pessoa mais velha. Também na produção das maracas, eu ficava transitando entre  Pernambuco e minha comunidade, e aí, Elenildo Suanã, que é meu primo, dizia já tratei, já limpei, já fui lá, peguei as sementes, e aí eu peguei e fiz  os grafismos. Tem esse processo de produção, que envolveu também um grupo de Toré, dos meus primos, que está na Paisagem Sonora da obra em Veneza. Então tem todo um envolvimento coletivo, porque é muito sobre isso. A gente ocupa esses lugares, mas não é com esse sentimento de artista eurocêntrico, ocidental, ou individual.

Foto: Micaela Menezes/ edição: Karkara Tunga

Naine Terena – Pensando na questão ambiental, alterações climáticas, mudanças ambientais, degradação, sua obra remeter ao cardume, traz alguma reflexão sobre a questão ambiental?

Ziel Karapotó – Isso. Cardume tem total relação com o rio, principalmente, porque lá a gente tem o rio Boacica, que antes a comunidade não tinha energia elétrica, não tinha saneamento, não tinha água encanada. E lá é agreste, sertão, então, assim, era muito difícil a água, cavar poço e ter água. A gente andava, ia até ele, pegava os baldes de água, lá mesmo lavava roupa, lá mesmo pescava. Então, é o nosso ancestral, o nosso mais velho mesmo. É o que nos garantiu a nossa existência e resistência. 

Tem também, dentro dessas questões, essa nossa relação, nosso bem viver com a natureza, com o território. A gente tenta ao máximo ainda preservar o rio Boacica, mas cada vez está muito difícil estabelecer essa relação, por vários fatores. Eu acho que estarmos na Bienal de Veneza ocupando esses lugares é uma maneira de compartilhar esse nosso bem viver, para uma perspectiva de que o mundo pode encontrar soluções. Que a gente tem que, pelo menos, dar uma parada em tudo o que está acontecendo com relação à questão ambiental. Eu estava em casa, no processo da produção da rede, e observava que as chuvas estão cada vez mais fortes, os ventos, as casas caindo, caindo gelo, sabe? Imagina, no sertão, caindo gelo. Foi o que me assustou. É muito doido tudo o que a gente está vivendo.

Naine Terena – O que significa estar na Bienal de Veneza?

Ziel Karapotó – Olha, pessoalmente, eu ainda não pensei nem muito sobre, eu acho que eu não tenho muita dimensão ainda do que é estar. Talvez por ser algo novo pra mim, mas eu sinto compromisso. Quando você sente que é um compromisso… É um compromisso que é responsabilidade de saber que precisamos lutar para ocuparmos esse espaço. Pra mim, estar aqui é uma missão, sabe?

 É por isso que durante o processo, quando os curadores me convidaram, e depois quando saiu o nome dos artistas, eu nem pensei muito sobre. Eu só pensei em fazer, entregar aquilo que foi a minha missão. Acho que a nossa geração, enquanto sujeitos indígenas, está preparando o terreno, sabe? Em todos os campos, na arte,  na Universidade, na política, eu acho que a gente está vivendo um momento de preparar um cenário. Um cenário que foi muito negado para nós. É uma grande ‘farinhada’, que estamos preparando ali, raspando, eu acho que já foi plantado, acho que a raiz já enraizou, e a gente tá agora quase fazendo a farinha. Aí depois a farinha vai alimentar. A gente tá preparando a farinha para outras gerações da gente se alimentar mais disso.

Naine Terena – Você sente necessidade de separar individual do coletivo? O artista Ziel, indivíduo que lida com o mercado das artes, da sua coletividade, que é esse pensamento indígena de envolvimento da comunidade, dessa perspectiva de trazer pessoas junto de você. Você acha que é preciso em algum momento fazer isso?

Ziel Karapotó – A gente precisa entender o mercado. Eu acho que a gente tem que ser estratégico, até porque enquanto profissional artista, a gente precisa viver dignamente e tendo um básico enquanto trabalhadores, agentes criativos e tal. Mas não há possibilidade de existir Ziel sem o povo. Sem o povo não há possibilidade, sabe?

Naine Terena

Midialivrista, Mestre em artes, doutora em educação, graduada em Comunicação Social (UFMT). Mulher do povo Terena, é Pesquisadora, professora Universitária, curadora e artista educadora. Desde 2012 movimenta um empreendimento cultural chamado Oráculo comunicação, educação e cultura que fomenta ações no mercado sócio-cultural e produtos comunicacionais, que buscam impactar positivamente em seu entorno, buscando co-criar soluções para questões que envolvam o contemporâneo/cotidiano através da comunicação, arte e cultura.  Visite o repositório (Prêmio Ms Cultura MT 2021) para conhecer um pouco mais das suas produções: https://oraculocomunica.eco.br/repositorio/


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