Maracatu Nação (Foto: Guilherme Labonia/Iphan)

Detentores do Maracatu Nação sofrem com racismo religioso e especulação imobiliária, diz parecer

A intolerância direcionada ao maracatu nação devido ao seu vínculo com as religiões de matriz afro-indígenas e o contexto de gentrificação e especulação imobiliária do centro do Recife (PE) têm sido alguns dos maiores problemas enfrentados pelo bem cultural desde a primeira atribuição do título de patrimônio cultural do Brasil, conferida ao maracatu nação em 2014. 

Essas foram as informações levantadas em um parecer técnico que visa a revalidação do título, elaborado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Para isso, foram avaliadas as transformações pelas quais o bem passou após o seu Registro e realizado o diagnóstico de seus processos de produção.

O Iphan de Pernambuco levantou inúmeros relatos sobre ameaças e ataques sofridos pelos detentores de cultura desde 2014, relacionados à relação do Maracatu Nação com religiões afro-indígenas. Segundo o parecer, a violência acontece tanto de maneira simbólica como concreta. 

No primeiro caso, “quando os membros das religiões evangélicas utilizam o batuque e a musicalidade do maracatu nação, descaracterizando-o, criando grupos percussivos cristãos que, por vezes, confrontam diretamente os batuques das nações durante suas apresentações e ensaios”, e, no segundo caso, através do assédio sofrido por membros de religiões afro-indígenas durante seus ensaios, cultos e celebrações. Nesse último caso,  os maracatuzeiros afirmam que o poder policial tem sido acionado sem motivos legítimos para que suas práticas sejam interrompidas. 

A Mestra Joana do Maracatu Nação do Pina, ouvida pelo parecer, explica que “Tudo que é feito no candomblé é levado pra rua. Isso não é encontrado em livros e matérias porque historicamente os maracatus precisavam se camuflar por conta da perseguição religiosa. A quebra desse tabu é recente”. Os mestres afirmam que a perseguição e ataques recorrentes estariam causando danos à própria manifestação cultural. 

Foto: Patricia Araújo/Iphan

Sobre o centro de Recife, local de extrema importância histórica e religiosa para o Maracatu Nação, o parecer afirma: “Grandes projetos de transformação urbana, promovido não somente pelo Poder público, mas também com a parceria de grandes empresas de Incorporação e Construção Civil, tem trazido grandes impactos não só ao Patrimônio Cultural Material, mas também ao Patrimônio Cultural de natureza Imaterial, uma vez que essa região é historicamente relevante para a memória e a identidade de muitos detentores, inclusive os maracatuzeiros”.

O parecer aponta que desde as décadas de 1970 e 1980, o centro comercial de Recife tem se deslocado do bairro central – onde estão localizados boa parte dos maracatuzeiros – para o bairro Santo Antônio. Esse movimento produziu um contexto de insegurança que levantou o debate da necessidade de revitalizar a região central da cidade. Nessa proposta, se articulam os interesses da população, da esfera pública e dos interesses privados, que operam em forças desiguais. Apesar do essencial significado que os lugares possuem para a memória e ação presente do maracatu nação, esses detentores não conseguem se apropriar efetivamente dessa região, mas continuam se mobilizando para ocupá-la conforme suas demandas”, afirma o parecer. 

Foto: Patricia Araujo/Iphan)

Dentre outras informações constatadas pelo documento, estão a influência da pandemia de Covid-19 na manifestação cultural, sua transmissão entre as gerações mais novas e as relações de gênero, onde a mulher parece ocupar centralidade nos desfiles por meio da condução das calungas (boneca de madeira que representa uma entidade). 

O documento conclui que “as transformações pelas quais o bem cultural tem passado, como na questão de gênero, na musicalidade ou na relação com os poderes públicos, não é encarada entre os seus detentores como descaracterizações dessa manifestação. Ao contrário, a capacidade de resiliência desses grupos, para manter viva uma tradição secularmente perseguida e até mesmo criminalizada, demonstra que seus integrantes têm atrelado a preservação cultural à ação social como forma possível e necessária de ressignificar e perpetuar suas referências culturais”.

Maracatu Nação 

Também conhecido por Maracatu de Baque Solto, o Maracatu Nação é uma manifestação cultural afro-brasileira que envolve um ritmo musical, dança e sincretismo religioso. Com origem no estado de Pernambuco, suas raízes retomam aos reis e rainhas do Congo, que aparecem nos cortejos e desfiles.

O maior destaque conquistado pelo Maracatu Nação acontece no período carnavalesco, quando as comunidades de maracatuzeiros apresentam seu conjunto musical percussivo e cortejo nas saídas às ruas. Entre os instrumentos tradicionalmente utilizados, estão o zabumba (o mesmo que tambor ou alfaia), tarol (ou caixa de guerra), mineiro (ou ganzá) e gonguê. O ritmo embala as figuras e personagens que acompanham a corte real no desfile, formando um cortejo. 

Em entrevista ao Nonada, o Mestre Gilmar Santana comenta que “maracatu é o Candomblé fora do terreiro”. Gilmar ajuda a manter viva a centenária tradição cultural na Sede Estrela Brilhante de Igarassu, uma dos mais antigos maracatus que se tem notícia, datado de 1824 segundo registros oficiais.  Ainda que o Maracatu carregue consigo um vínculo religioso, pessoas fora da fé também têm o direito de brincar. “Hoje poucas pessoas que dançam no Estrela Brilhante tem um vínculo religioso. São mais as pessoas mais idosas e alguns rapazes, mas não é todo mundo”, explica o Mestre.

Ainda em abril de 2025, o Governo Federal, por meio por meio do Ministério da Cultura (MinC) e do Ministério das Relações Exteriores (MRE), entregou à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) o dossiê que será avaliado para reconhecer o Maracatu Nação como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade. 

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Estudante de Jornalismo que acredita em uma leitura da realidade a partir das expressões culturais. Tem especial interesse pela imagem, religiosidades, perspectiva queer e jogos eletrônicos. Flerta com o cinema, organizando e participando das curadorias do Cineclube Vestígio em Porto Alegre.
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