É por volta das quatro da tarde – quando o Sol baixa e o calor se torna mais suportável -, que começa a brincadeira das crianças da ocupação residencial Abrigo da Liberdade, no bairro Terra Firme, em Belém (PA). Antes disso, a ansiedade dentro das casas é perceptível a quilômetros, indício de que tem erê querendo bater o chinelo no asfalto, contar de um a trinta e prontos-ou-não-lá-vou-eu, fazer a bola entrar no gol.
Mas uma vez na rua, o calor que ainda impera na suposta hora mais fresca da tarde atrapalha o livre fluxo das brincadeiras: a disposição diminui; a umidade, aliada às altas temperaturas, aumenta a sensação térmica e prejudica a respiração. Nas cidades, a ausência de espaços verdes agrava o que o colapso ambiental trata de varrer. Fica difícil ser criança.
“A gente tinha acesso a quintais, a gente tinha acesso a rua, os bairros eram espaços de encontros, de socialização, e as crianças ocupavam esses espaços de uma forma bastante independente e autônoma, mas nas últimas décadas isso vem mudando, né, e a gente vem vendo um encolhimento dessas experiências relacionadas ao brincar”, relata a especialista em infância e natureza do Instituto Alana, Maria Isabel Barros.
No Brasil, cerca de 40 milhões de meninos e meninas (60% do total) sofrem com a exposição aos riscos climáticos e ambientais. De acordo com o relatório Crianças, adolescentes e mudanças climáticas no Brasil, da Unicef, a crise climática, refletida no calor extremo e na poluição do ar, por exemplo, impacta crianças de maneira desproporcional em virtude de suas necessidades de desenvolvimento.
Isso ocorre por conta da “ausência da infraestrutura e dos serviços públicos necessários para a plena realização dos direitos na infância e na adolescência – escolas, serviços de saúde básica, espaços de assistência e proteção social, espaços de recreação e socialização etc. –, associada ao aumento de eventos climáticos extremos”, conforme aponta o relatório. Com as crianças mais pobres, menos protegidas pelas políticas públicas, esse cenário é ainda mais violento.
É preciso muita água para hidratar e saciar a sede da meninada que encontra em seus territórios áreas de recreação infantil com infinitas possibilidades. Mas água tratada, de qualidade, é algo difícil de encontrar na ocupação do Abrigo da Liberdade, a menos que se financie do próprio bolso ou se realize a fervura, prática que nem todo mundo adota.

Quando a infraestrutura urbana não ajuda
O Sarau em Movimento, coletivo itinerante de artistas que desenvolve trabalhos de Arte e Educação com crianças nas periferias de Belém há dois anos, entende bem a realidade do bairro Terra Firme. O coletivo atua através de oficinas que buscam incentivar a relação das crianças com o território através de atividades artísticas e brincadeiras na rua, como a oficina de bolhas de sabão, de pinturas de rua, graffiti, poesia, música e jogos infantis. Palhaçaria, teatro e cinema também são atividades realizadas pelo coletivo.
“Aqui é muito quente e as crianças sentem muito calor. A gente percebe que quanto mais energia elas gastam, mais água a gente tem que ter disponível”, diz Edson X, coordenador do coletivo. Na ausência de água tratada, o coletivo recorre ao dinheiro do financiamento oferecido pela Fundação Abrinq para comprar garrafas de água e garantir que a agitação da meninada, em virtude do suor, das altas temperaturas e do sufoco, seja amenizada. “O calor intenso muda o temperamento das crianças. Elas ficam mais elétricas. Tem hora que elas ficam nervosas. Tem hora que elas mudam o comportamento”, pontua.
As condições extremas ocasionadas pelo clima, que impedem cada vez mais o brincar das crianças fora de casa, são potencializadas, nas cidades, pela falta de infraestrutura urbana e ambiental. No caso do bairro Terra Firme, a preparação da cidade de Belém para a COP30 tem impactado até mesmo as condições sanitárias da comunidade.
Com o novo planejamento urbano para receber um grande fluxo de pessoas durante o evento na capital do Pará, os investimentos em infraestrutura urbana, que já eram escassos na periferia antes mesmo da conferência, se concentram na construção de novos prédios e vias e adaptação de espaços públicos. Ainda que estejam entre os grupos mais vulneráveis à crise climática, crianças e adolescentes permanecem excluídos das discussões centrais da COP30.
Com as oficinas do projeto, o Sarau em Movimento promove a interação das crianças com a cidade num contexto em que a natureza, em detrimento de eventos extremos, é, por elas, vista como uma ameaça. Para Maria Isabel Barros, do Instituto Alana, essa perspectiva representa um prejuízo no desenvolvimento infantil.
“A gente evolui com o vínculo com a natureza. Quando uma criança enxerga o meio ambiente como uma ameaça à sua própria vida, é porque alguma coisa muito profunda foi rompida. Então a gente precisa restituir o direito que as crianças têm de se relacionar com a natureza a partir de uma perspectiva da esperança, da beleza, do vínculo positivo e não da ameaça.” Maria Isabel ainda explica que, para as crianças, brincar é uma estratégia de autopreservação, o que torna o ato ainda mais necessário em tempos de desequilíbrio ambiental.
Edson detalha que a percepção das crianças sobre racismo ambiental não se dá da mesma maneira que com os adultos, estruturada. Uma das premissas do projeto é trabalhar com os pequenos sobre essa forma de discriminação de maneira lúdica, através de canções de hip-hop, desenhos e poesia. A temática é frequente nos ensaios e espetáculos do teatro de rua do coletivo com o grupo infantil Erês em Movimento. “É um teatro que aborda bastante as questões climáticas. Toco bastante nesse assunto porque aqui tem mestres e mestras de carimbó que têm umas letras incríveis abordando essas questões, como o Mestre Lourival Igarapé, com as músicas Queimadas e Pajezinho”, explica.
Tratar dessa problemática com as crianças desde cedo ajuda a deixar claro que as adversidades com as quais se deparam no território durante o lazer não são um mero acaso. “Recentemente, uma criança caiu num córrego contaminado que passa aqui na frente. Caiu de costas. No susto, abriu a boca e bebeu a água do esgoto sem querer. Foi direto pra UPA [Unidade de Pronto Atendimento]. Contraiu uma bactéria e ficou cinco dias em casa sem ir para a escola”, relata o coordenador. Segundo ele, é comum que as crianças se joguem na água contaminada para pegar uma bola que caiu, ou para tomar banho durante a cheia da maré. O córrego é um braço do Rio Tucunduba, que delimita o bairro de norte a sul e deságua no Rio Guamá.
Itinerante, o coletivo atende também crianças de outras comunidades, incluindo quilombolas e ribeirinhas, como a comunidade de Buraco Fundo, em Icoaraci (um dos oito distritos que compõem a cidade), e no Quilombo de Tomazia. Apesar das dificuldades, a brincadeira não pode parar.
Liberdade de brincar na cidade
Para Maria Isabel Barros, do Instituto Alana, “brincar é transformar um território em um espaço de segurança e de pertencimento para as crianças”. No último século, a liberdade das crianças de brincar do lado de fora de casa foi aos poucos sendo tolhida. O raio de ação dos pequenos, trecho urbano onde a criança tem autorização da família para andar sozinha, diminuiu significativamente. Um estudo realizado na Inglaterra em 2013 mostrou que, em Londres, o raio de ação de uma criança, em 1919, era de 9,6 quilômetros. Até 2007, o raio diminuiu para 300 metros. A segurança é um dos principais fatores responsáveis por essa redução, bem como a perda de espaços verdes nos centros urbanos.
“A diminuição do raio de ação de uma criança tem impactos gravíssimos em muitas dimensões. Na dimensão da independência, na dimensão da autoconfiança, na dimensão da atividade física, na dimensão da cidadania e na dimensão do pertencimento ao território. Se a gente não tem autorização para andar naquele território, ele se torna uma coisa estranha para nós”, explica Maria Isabel.

Remediando esse diagnóstico, o projeto A Pezito, sediado em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, estimula as crianças a circularem pelo ambiente urbano, fazendo uso de espaços propícios para exercerem o brincar e entender a cidade como um agente de transformação. Por meio de oficinas que vão desde a coleta de dados junto aos moradores das comunidades onde atua até a intervenção urbana em espaços públicos, que buscam despertar novas apropriações e olhares sobre esses espaços, o A Pezito coloca crianças no centro dessas atividades como forma de pensar as cidades a partir delas.
Em parceria com a Associação de Moradores Força Maior da Pedreira, do bairro Cristal, Zona Sul da cidade, o A Pezito criou o projeto Comitê das Crianças da Pedreira, bairro Vila Pedreira, através do programa Projetos Coletivos, da Fundação Abrinq. O projeto fomenta o protagonismo de crianças nas questões que afetam o seu desenvolvimento e bem-estar em seus territórios, “criando ambientes seguros e inclusivos a partir do brincar, da natureza e do território, reconhecendo-as como cidadãs do presente”.
Mario Prati, arquiteto responsável pelo projeto, conta que a comunidade da Vila existe há mais de quarenta anos e nunca teve um espaço planejado para o uso das crianças. “São gerações que não têm esse brincar. Brincavam na rua, e na rua passa moto, às vezes a rua é estreita”, comenta. Para ele, essa realidade explicita as muitas questões ligadas a compreensão do que é um espaço comum de brincar, além das implicações ambientais que a existência desses espaços suscita. “São espaços que podem ser pensados através desse olhar de cuidado com a natureza, cuidado com o meio ambiente e o espaço que elas [as crianças] estão vivendo ali.”
A partir disso, o projeto desenvolveu atividades com o objetivo de fortalecer os laços das crianças com o território e criar novos vínculos a partir do brincar. Algumas dessas atividades consistiram no livre caminhar pelas dependências da comunidade; na aproximação e promoção da identificação das crianças com personalidades do bairro; na ampliação do repertório das crianças sobre o próprio território, reforçando noções de territorialização, paisagens, história e arte; e na ativação e consolidação de um espaço para brincadeiras. A avaliação do uso e do rendimento do espaço também foi uma atividade que contou com a participação das crianças.
Com a escolha do espaço, próximo de uma grande rocha onde está gravada a frase “Respeite os moradores da Vila Pedreira”, e sua posterior ativação, as crianças possibilitaram a manutenção do lugar de maneira orgânica. Antes, para impedir a degradação do lugar, era necessário o uso de trabalho para que se mantivesse o espaço em ordem. Hoje, o espaço se conserva por meio da presença constante da criançada, que brinca e interage com o ambiente, descobrindo a si mesma e o próprio território nesse processo.
Parques naturalizados como uma solução
Num contexto em que o espaço urbano possui cada vez menos espaços verdes em virtude da priorização por áreas de concreto, o Instituto Alana, pensando na importância desses espaços para o desenvolvimento infantil, propôs um guia para gestores públicos para a implementação de parques naturalizados para o brincar. Se trata de paisagens para o brincar constituídas por elementos naturais e culturais. “Esses parques são uma resposta urgente para devolver às crianças o direito às cidades, à conexão com a natureza e oportunizar a experiência do corpo ao ar livre como fonte de saúde, aprendizagem e lazer”, diz o instituto.

O guia é embasado em estudos que indicam os benefícios da natureza para o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, destacando a necessidade de infâncias sem paredes e da superação dos impactos da desconexão crescente das crianças com o mundo natural. Além da promoção do desenvolvimento psicomotor das crianças, a criação de parques naturalizados também contribui com a “melhoria do microclima da cidade, com o aumento da biodiversidade urbana e com a valorização das culturas das infâncias e dos territórios, indo no sentido oposto dos desbalanços climáticos promovidos pela construção de prédios e estacionamentos.
Outros benefícios para as múltiplas infâncias com a implementação dos parques, segundo o instituto, é a capacidade dos espaços de refletir e dar luz a elementos culturais relevantes para as infâncias e territórios; a sensibilização da criança com a flora e com a fauna características de sua região; e o favorecimento da integração entre cultura e natureza, ao incluir elementos da cultura das infâncias de cada território nos brinquedos e mobiliários.
Maria Isabel Barros acredita que brincar é algo regenerativo, momento em que o corpo assume protagonismo para que seja preparado o terreno onde irão fluir noções de cidadania, autonomia e comunicação. “As crianças se relacionam com o mundo por meio do brincar. Não tem outra forma. Não é por meio da cabeça, de maneira cognitiva. É através do corpo”. Uma cidade que possibilita esse ato nesse estágio da vida é uma cidade aliada ao meio ambiente e, portanto, mais feliz.