Lucas Veloso, especial para o Nonada Jornalismo*
Nas margens do Rio Negro, em um cenário onde a natureza dita o ritmo da vida, fica a aldeia Três Unidos, na capital do estado do Amazonas, Manaus. É nesse território que Neurilene Cruz, liderança Kambeba e chef de cozinha, não apenas serve pratos, mas tece uma história de resiliência e empreendedorismo que reverbera a sabedoria de seus antepassados. “Mostrar o meu trabalho é mostrar a minha avó”, declara Neurilene, enquanto seus preparos, como o pane, a mojica e a pupeca, se transformam em narrativas ancestrais contadas com farinha, peixe e folha de bananeira, conexão do paladar à rica herança cultural de seu povo.

O empreendedorismo em Três Unidos vai além da culinária. Neurilene articula também a produção artesanal da comunidade. Com 26 indígenas, em sua maioria mulheres, elas transformam sementes e madeiras da floresta em biojoias e objetos que impulsionam a bioeconomia local. A comunidade conta ainda com uma pousada e um hostel. O polo construído pela comunidade é uma iniciativa coletiva, autogerida e que garante renda vital para as mulheres da aldeia, e suas famílias. “Quanto mais eu me conecto com essa realidade, com esse mercado atual, pra mim é melhor, pois é a minha cultura sendo mostrada para o mundo”.
Para a líder indígena, essa rede de produção é um testemunho da capacidade de inovar a partir de saberes milenares. Contudo, a vida na aldeia, ligada à natureza, é também uma jornada de superação diante de desafios concretos. “Hoje estou enfrentando uma cheia dentro da minha comunidade, que está chegando ao topo, com muita água. Assim como há dois anos, já perdi clientes por causa da seca severa que enfrentamos”, relata Neurilene, evidenciando como as mudanças climáticas impactam diretamente o sustento da comunidade.
Um movimento de redescoberta e afirmação
A história de Neurilene não é isolada. Em todo o Brasil, mulheres indígenas estão na linha de frente de um movimento crescente que busca conciliar a geração de renda com a valorização cultural e o respeito ao meio ambiente a partir de seus saberes ancestrais.
Em São Paulo, mulheres guarani da Terra Indígena Jaraguá desenvolvem artesanato, cosméticos naturais e alimentos tradicionais que são vendidos em feiras e espaços culturais da capital. Já na Bahia, mulheres Pataxó articulam cadeias produtivas ligadas à pesca, ao artesanato e ao turismo de base comunitária, conectando suas práticas ao fortalecimento da autonomia territorial e econômica.
É um caminho recente, e promissor, que busca atrelar a luta dos povos tradicionais a uma fonte de renda. Por outro lado, o empreendedorismo entre populações indígenas enfrenta barreiras significativas, como a ausência de capital econômico, desconfiança histórica e os conflitos com a sociedade de consumo.
Nice Tupinambá, por exemplo, é uma dessas pioneiras. Antes de suas biojoias cruzarem o Brasil como símbolos de beleza e resistência, ela ouviu as mulheres mais velhas de sua comunidade. Aprendeu que o tempo da floresta não se apressa e que as mãos que colhem também sabem criar. Hoje, suas produções, feitas com sementes e fibras da floresta, circulam em feiras e eventos em outros estados, com a estética e os valores do território Tupinambá para além da aldeia. “Nosso trabalho não é menos importante, mas precisa ser reconhecido”, cita.
Para lidar com a complexidade do mercado não-indígena, Nice fundou a Casa Ikeuara da Amazônia, em Belém (PA). O espaço físico também funciona como uma ponte de escoamento e curadoria cultural indígena. Hoje, ela atua como curadora do espaço, criado a partir da necessidade de um ponto cultural e de arte indígena na cidade. Embora seja um projeto de gestão pessoal, a iniciativa conecta diversos artistas e artesãos indígenas, oferecendo oportunidade de escoar suas produções.
“No nosso caso, estamos começando agora a lidar com economia, com empreendedorismo, mas a nossa realidade é diferente”, explica. Ela exemplifica as dificuldades enfrentadas no processo: “Tirar, por exemplo, uma peça de madeira de dentro de um território até a Casa Ikeuara da Amazônia para que ela possa ser vendida tem um custo, tem uma burocracia, tem uma dinâmica que não é a mesma de qualquer outra coisa que não seja indígena”.

Na contramão da lógica de produção em massa, a multiartista e designer de origem indígena Sofia Gama aposta em criações únicas, feitas sob medida ou locadas para artistas e fotógrafos. Suas roupas e objetos não seguem coleções sazonais e têm circulação reduzida. “Acredito que a sustentabilidade é também uma recusa ao desperdício de gente, de história, de tempo”, diz.
Para ela, repensar o consumo passa por romper com os ciclos de obsolescência da moda. “Os materiais que utilizo são pautados por um tempo mais lento que o geral da indústria da moda. Gosto de dizer que é o tempo da terra”, afirma. “Acredito que a sustentabilidade é também uma recusa ao desperdício de gente, de história, de tempo”.
Para a professora Kavita Miadaira Hamza, da Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP), especialista em sustentabilidade e ética em marketing, esse encontro entre ancestralidade e inovação não é acidental, mas “estrutural”. Ela aponta que “não se trata de encaixar essas iniciativas dentro do mercado como ele é, mas de transformar o próprio mercado a partir desses saberes”, indica. “Os empreendimentos indígenas oferecem lições valiosas. É inovação que nasce do respeito ao tempo da floresta”.
Bioeconomia e desafios
Na comunidade de Neurilene Cruz, em Manaus, a bioeconomia faz parte do dia a dia, mas também representa um desafio constante. A instabilidade climática, com cheias e secas severas, paralisa a produção e afasta o turismo, uma das principais fontes de renda local. “Não posso conservar meu alimento, tem que ser tudo fresquinho. Por uma parte é bom, mas por outras vezes, estrago o alimento”, lamenta Neurilene, ao apontar a falta de energia elétrica como uma barreira concreta para manter seu restaurante funcionando.
A precariedade na infraestrutura também afeta diretamente o trabalho de Nice Tupinambá. Mesmo produzindo biojoias sustentáveis, ela lida com limitações diárias que comprometem o crescimento do negócio. “Sem estrada, sem internet, sem energia, a gente não consegue expandir”, reforça. As dificuldades enfrentadas pelas mulheres também passam pela formalização dos seus negócios. “É complicado começar quando o artesão, o artista, ainda não tem CNPJ, sabe? E às vezes mal fala o português. Escrever já é uma dificuldade, porque o português é uma língua muito difícil de se escrever”, relata Nice.

Ela destaca a importância de um diálogo mais profundo sobre os desafios enfrentados pelos povos indígenas. Para ela, ainda é necessário discutir com mais clareza o funcionamento do mercado, a participação indígena na economia, além das dimensões espirituais e culturais envolvidas. Ressalta, ainda, que muitos elementos da cultura indígena não podem ser comercializados, devido à ação predatória histórica dos não indígenas, inclusive sobre o próprio nome indígena.
Kavita reforça que “as comunidades aceitam o que a floresta oferece e comercializam o que é possível coletar, armazenar e processar.” Essa lógica, que ela chama de “empurrada pela floresta” em contraste com a lógica tradicional da “demanda de mercado”, propõe uma inversão: não é a demanda que determina a produção, mas sim a oferta consciente e sustentável do território.
O consumidor brasileiro está mais atento. Segundo pesquisa da Confederação Nacional da Indústria (CNI), divulgada em outubro de 2024, 88% dos brasileiros afirmam adotar cinco ou mais práticas sustentáveis no dia a dia. Além disso, 85% acreditam que a indústria deve investir em soluções sustentáveis, e 66% consideram as mudanças climáticas um problema muito grave. “Plataformas precisam ser construídas, onde as organizações comunitárias indígenas possam ter contato direto com empresas compradoras”, completa Kavita.
Nice também desafia o mercado tradicional. “A gente precisa de investimento que respeite nosso tempo e nossas formas. Não adianta trazer grandes investidores se eles não entendem o valor do que a gente faz”, afirma. Em sua visão, o valor do trabalho está em respeitar os ciclos naturais e a autoria coletiva do território.
Encurtando distâncias
Com aproximadamente 2.465 quilômetros longe da floresta, em plena São Paulo, a nutricionista paraense Carol Vilanova criou a Flor de Jambu com um propósito claro: encurtar distâncias entre as comunidades indígenas produtoras da Amazônia e os mercados urbanos brasileiros. Com a própria articulação indígena, hoje, as produções impactam outros mercados e consumidores urbanos.
A ideia surgiu da própria vivência de Carol, ao se deparar com a dificuldade de encontrar alimentos básicos da sua terra natal. “Tucupi, jambu, farinha boa. Tudo parecia tão distante”, lembra. A partir desse incômodo, nasceu a proposta de um negócio que não apenas facilitasse o acesso a ingredientes da sociobiodiversidade amazônica, mas que também valorizasse quem os produz, especialmente comunidades indígenas e tradicionais.
“Ainda existe um certo desconhecimento sobre muitos ingredientes da Amazônia, ou uma visão muito exótica, que desconsidera o contexto e quem está por trás da produção”, explica Carol. Por isso, além de comercializar alimentos nativos, a empresa atua como plataforma de visibilidade para os povos da floresta, fazendo com que suas histórias acompanhem os produtos até as prateleiras das grandes cidades. “Queremos que os produtores se vejam como protagonistas, não só como fornecedores, que se sintam valorizados, respeitados e donos da própria história”.
A atuação em rede com associações, cooperativas e empreendedores locais é parte essencial do modelo, e, segundo Carol, ganha ainda mais relevância no contexto da COP30, que será realizada em Belém. “É uma chance de mostrar pro mundo que aqui tem inovação, conhecimento tradicional, produtos incríveis e, principalmente, gente fazendo acontecer”.
COP30: disputa e protagonismo
A realização da COP30 em Belém coloca o Brasil no centro das negociações climáticas globais. Essa realidade de empreendedorismo, desafios e saberes ancestrais levanta perguntas urgentes: Quem lucra com a Amazônia? E quem realmente cuida dela?
Para as mulheres indígenas ouvidas nesta reportagem, o protagonismo só fará sentido se os povos da floresta forem ouvidos e estiverem presentes nas mesas de decisão. “Eles têm que levar pessoas que realmente vivam e que possam representar e que possam ter pessoas dizendo: ‘Eu vivi isso, eu moro dentro da Amazônia, eu moro na aldeia e vivo isso'”, afirma Neurilene. Sua defesa por representatividade não é simbólica, “é prática, urgente e real”.

A necessidade de maior inclusão dos povos indígenas, sobretudo das mulheres, também é evidenciada pelo levantamento “Sumário Executivo do Perfil Social, Racial e de Gênero das 1.100 maiores empresas do Brasil e suas ações afirmativas 2023-2024”. O estudo sobre o cenário corporativo apontou que, nos altos níveis hierárquicos das maiores empresas, o “perfil menos presente” é a mulher, negra ou indígena, com deficiência e LGBTQIA+.
As lideranças corporativas reconhecem essa baixa representatividade, atribuindo-a à ausência de programas de liderança que impulsionem esses profissionais para cargos mais estratégicos, à ausência de políticas, ações afirmativas e práticas de diversidade e inclusão, e, por vezes, à falta de qualificação profissional. Isso reforça a importância do caminho do empreendedorismo como alternativa e espaço de afirmação e autonomia para essas populações.
Sofia alerta para a distância entre o discurso institucional e a luta nos territórios. “No fundo, o desafio maior é estar em contato com a luta real acontecendo nos territórios indígenas que, muitas vezes é difícil de conciliar no mercado e afasta até mesmo outras questões de mercado que não querem se envolver nas questões mais complexas”, explica. “A bioeconomia indígena tem que ser discutida com quem realmente vive a floresta, com quem cuida dela, com quem depende dela para viver, não só com o mercado e com a indústria”, reforça Nice.
“Mostrar o meu trabalho é mostrar a minha avó”, repete Neurilene, e “com ela ecoam outras vozes, de outras florestas, outros rios, outras aldeias”.

Lucas Veloso
É jornalista audiovisual, documentarista e cofundador da Mural – Agência de Jornalismo das Periferias. Colabora com portais da mídia brasileira, como TV Cultura, UOL, Folha de S.Paulo e Alma Preta. Em 2023 e 2024, venceu o prêmio + Admirados jornalistas negros e negras da imprensa brasileira.