Como tantas outras, essa história começa com um processo seletivo. Antes de estudar jornalismo, cogitei aplicar minha nota do Sisu para cursar Artes Visuais-Bacharelado. O desejo durou um dia apenas, mas suas raízes já eram firmes e desenvolvidas. Desde a infância, na contramão da família gaúcha interiorana, tenho aptidão a desenvolver habilidades mais inclinadas ao campo do sensível do que àquelas que requerem mais ação do que reflexão. Como consequência, mesmo sem referência alguma, fui arranjando algum jeito de me interessar por arte. Aos poucos, penetravam na família a câmera digital, a televisão a cabo, e o maior portal de todos: a internet.
Entre pesquisas inocentes e respostas algorítmicas fui encontrando universos onde o teatro, a música e o desenho existiam enquanto algo a ser considerado. A sorte foi ter o espaço de embarcar nesses universos recém descobertos a partir do solo fértil da escola, das peças organizadas pela turma ao longo do ano e oficinas em horários alternativos. A educação, sem sombra de dúvidas, foi a base sob a qual se construiu a ponte de interesse entre o estudante e as artes.
No ensino médio, essa relação assumiu uma nova forma. Foi quando conheci o canal de Vivi Villanova (VIVIEUVI), através do qual diz vulgarizar a história da arte. O trabalho dela, nesse projeto, é um de comunicação, envolvendo a arte. Apresentação de artistas, exposições, movimentos de arte. Fui me inteirando daquele universo que parecia endoidecido logo após o episódio de censura da exposição Queermuseu. Alguns anos depois, eu estaria no lugar que foi palco desse evento todo, o Farol Santander, na cidade de Porto Alegre (RS).
Isso pois, em outro processo seletivo, já cursando jornalismo, fui selecionado para integrar a equipe do educativo da 14ª Bienal do Mercosul, atrasada em alguns meses em função das inundações que tiveram início em maio de 2024. Mais especificamente, fui selecionado para integrar o quadro de mediadores de arte que ocupariam o espaço do Farol, um dos 18 espaços expositivos desta edição que veio a acontecer em 2025.
Anterior aos trabalhos, os mediadores tiveram todos uma formação, onde pouco se falava sobre as obras que compunham a curadoria ou mesmo do que se tratava o “Estalo”, palavra que nomeou a edição. O principal assunto desses encontros era a própria função do mediador e o papel que desempenha no espaço. Ainda que eu soubesse reconhecer a importância da educação em me aproximar das artes, foi nessa formação que aprendi de fato a valorizá-la.
Estamos sempre a pedir por aumento de investimento no setor da educação, mas fora as pessoas imersas na área e seus debates, nem sempre visualizamos as razões da importância desse investimento. De fora, por mais tolo que pareça afirmar isso, educar parece uma tarefa simples.
Construir essa ponte entre o estudante e o universo, de algum modo, é de secundária importância quando comparada a outras funções ou mesmo ao bombardeamento conteudista que prepara sujeitos homogeneizados para o vestibular. Esse descaso, pude aprender, é refletido também na forma como muitas instituições de arte tratam suas equipes educativas, de mediação. Nesse caso, a Curadoria do Educativo da 14ª Bienal do Mercosul parece ter feito um bom trabalho ao valorizar a função dos contratados e acompanhar de perto os desdobramentos da equipe de cada espaço, tentando na medida do possível fornecer os materiais possíveis para a construção de pontes.
O mediador é, no fim, um construtor de pontes e não um professor. Essa dinâmica precisava ser elucidada inúmeras vezes ao público, que desconhece ao certo o papel daqueles sujeitos que nessa edição vestiam colete verde escuro. “Não estamos aqui para ensinar, estamos aqui para conversar. É uma troca”. As pessoas parecem ter medo de trocar, a imponência das instituições parece afugentar as opiniões. A minha esperança, em particular, era poder ser a referência para crianças e adolescentes como alguém já foi para mim, um elo que firmasse um vínculo entre os já minimamente interessados e o desbunde de peças artísticas diluídas no magnânimo prédio do Farol Santander.
Recebemos escolas, públicas e particulares, universidades e visitantes espontâneos. De todos os espaços que compuseram a Bienal, o Farol foi um dos mais movimentados, como costuma ser. Dos grupos grandes de escola, existe gente de todo o tipo. Quanto mais interessados os professores que acompanhavam as turmas, mais interessados seus alunos pareciam ser. Existiam também aqueles professores que não pareciam interessados em nada, comportamento que refletia em grandes turmas que só pensavam em ir ao banheiro.

A passagem de visitantes internacionais e de outros estados do Brasil alegram ao romper com a ideia de que apenas porto-alegrenses circulam por Porto Alegre. Essa circulação de pessoas diversas traz vitalidade à cidade que parece sempre habitada pelas mesmas pessoas que, com o olhar acostumado, pouco se deslumbram. Pude, junto a um colega, ministrar uma oficina de colagens, onde recebemos três estudantes estrangeiros que falavam coreano. Por sorte e beleza, uma das participantes brasileiras da oficina também tinha conhecimento da língua, e um vínculo inesperado emergiu do espaço expositivo.
Quanto às crianças, outro jogo de cintura é exigido. Optei pela não repressão, e deixei que as turmas agitadas e curiosas me guiassem pelas obras que mais as interessavam. Diferente de muitos adultos, o interesse especial das crianças costumava estar direcionado às obras que envolviam vídeo e som. Àquelas que as imergiram em um universo outro e extrapolavam a imaginação.
Em uma dessas visitas de escola, uma criança em especial ficou próxima de mim durante toda a visita. No final, me mostrou um caderninho de desenhos que levava consigo. “Eu gosto de desenhar pessoas estranhas e monstruosas”, ela me disse, pouco após ter assistido o curta-metragem de Vitoria Cribb echoes of a wet finger: [ecos de um dedo molhado:], que integra a exposição no farol, onde um avatar se funde com uma lagartixa. Compartilhei com ela o trabalho artístico de um amigo que desenha seres humanóides de aparência monstruosa, que ao invés de assustá-lá, despertou ainda mais seu interesse artístico.
A mediação é um jogo que, se jogado sozinho, não avança de fase. Quando construída em coletivo, seja com a ajuda dos alunos e professores e mesmo do restante da equipe de mediação, todos podem sair ganhando. Na equipe do Farol, estava acompanhado de mediadores com formação em licenciatura, estudantes de arte e “outsiders” como eu, uma menina da psicologia e outra da arquitetura.
Nas primeiras semanas, a equipe precisou desmentir informações que foram veiculadas por um veículo local sobre a obra Dust of Suns II [Poeira dos Sóis II] do artista sul-coreano Yunchul Kim. Os visitantes chegavam acreditando que o material utilizado na solução que se movia dentro dos painéis da escultura era areia do próprio Guaíba. Também imaginavam ser uma obra sobre a retomada pós-inundações, como afirmado pela matéria do telejornal. O jornalista, na pressa da pauta, deve ter esquecido que seu papel ali era o de mediar a informação, e no descuido que,para uma pauta de arte parece ser permitido, construiu uma desinformação.
Com o tempo, me dei conta de que o trabalho do jornalista é um trabalho de mediador. Ambos constroem pontes entre sujeitos e a informação, a diferença é a forma como essa informação se articula em espaços diferentes. Em uma bienal, as obras de arte exigem envolvimento e interpretação, estão abertas à inserções de quem as quiser fazer.
No jornalismo, a informação é objetiva e não pode dar espaço, precisa ser exclusiva, não podem restar dúvidas. Nos dois casos, o mediador é quem aproxima, seja ajudando a dar sentido a algo que não aparenta nenhum, seja problematizando ou complexificando dados materiais. Se a educação e o jornalismo já me pareceram universos distintos, cada vez mais me torno capaz de construir uma ponte entre eles. Como cabe a um mediador fazer.