Foto: Marcelo Rocha/Mídia Ninja

5 anos da Queermuseu: “Os efeitos mais nocivos da censura são silenciosos”, diz Gaudêncio Fidelis

Era 15 de agosto de 2017, em Porto Alegre, quando foi inaugurada a exposição Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no Santander Cultural, atual Farol Santander. Uma mostra de grandes dimensões, com 223 obras de 84 artistas, que se propunha a falar sobre gênero e diversidade. O que era para ser três meses de período expositivo tornou-se o caso mais emblemático de censura contemporânea no país. 

Menos de um mês depois da abertura, em setembro daquele ano, a Queermuseu foi cancelada pelo banco após uma série de ataques virtuais, que afirmavam que a mostra fazia apologia à pedofilia e zoofilia, além de ser ofensiva à moral cristã. Dias depois, entretanto, o Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul concluiu que as obras da Queermuseu não faziam “nenhuma apologia ou incentivo à pedofilia” e recomendou a reabertura da exposição pelo Santander – o que não foi cumprido pelo banco. A mostra só voltou a público 11 meses depois do fechamento, quando foi remontada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage (EAV), no Rio de Janeiro, graças a uma campanha de crowdfunding, que captou mais de R$ 1 milhão.

Passados cinco anos, o curador Gaudêncio Fidelis analisa o caso como um prenúncio de um tempo ainda mais difícil para as liberdades de expressão. “ A censura da Queermuseu não era um incidente isolado, mas uma investida precisa de setores da ultradireita e dos fundamentalistas, direcionada àquela plataforma para alavancar uma agenda regressiva que teria continuidade”, afirma em entrevista ao Nonada por email. 

Em 2018, Gaudêncio relatou que havia recebido mais de cem ameaças de morte. As perseguições após o fechamento da exposição não cessaram até ele deixar o país, conta. “Evitei falar sobre isso, porque nunca quis desviar o foco de atenção da narrativa da censura e as importantes questões que ela envolvia.” 

O curador lembra também que os cerceamentos das produções não acontecem apenas aos artistas e trabalhadores da cultura, mas atingem também pesquisadores e acadêmicos. “A área da ciência ganha menos publicidade quando tais ataques acontecem, mas sabe-se que muitos pesquisadores tiveram que deixar o Brasil em situações de muita gravidade. É preciso que os artistas e agentes culturais sejam mais conscientes de que estes ataques não são restritos a eles.”

Como gestor, esteve à frente de instituições culturais no Rio Grande do Sul, como o Instituto Estadual de Artes Visuais do Rio Grande do Sul, o Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul (MAC) e o MARGS. Ele acredita que hoje, as instituições deveriam ter como uma de suas funções principais a defesa da liberdade de expressão.  “Muitas têm, não só promovido censura, como recuado ao primeiro sinal dela”, afirma.

Gaudêncio chama atenção para as estratégias de reação. Ele defende um olhar menos individualizado, ou restrito aos episódios e aos censurados, para uma visão crítica, que percebe os danos públicos comuns causados pela censura.

Confira a entrevista completa a seguir: 

Nonada – Em setembro, fará cinco anos da censura à Queermuseu, e a exposição segue sendo um marco no cerceamento de liberdades artísticas do passado recente no Brasil. Com distância de cinco anos, como você percebe o que aconteceu? 

Gaudêncio – Minha percepção sobre o que aconteceu mudou pouco. O tempo só trouxe a confirmação daquilo que me parecia evidente: que a censura da Queermuseu não era um incidente isolado, mas uma investida precisa de setores da ultradireita e dos fundamentalistas, direcionada àquela plataforma para alavancar uma agenda regressiva que teria continuidade. Por isso, foi fundamental ter empreendido uma luta em favor das aspirações da exposição, para que a sociedade em geral adquirisse mais consciência da gravidade do que estava por vir. Algumas ainda olham em retrospecto apenas com a visão de uma batalha a ser vencida, e lamentam que, mesmo assim, a censura tenha progredido. Mas cabe colocar a história em perspectiva e observar o quão pior estaríamos se esta reação não tivesse sido contundente de parte dos setores progressistas da sociedade brasileira e não tivéssemos levado a cabo aquela campanha de defesa dos princípios democráticos.  

Gaudêncio Fidelis (Foto: Raul Hotz/divulgação)

Nonada – A partir da multa imposta ao Santander, houve o edital “Eu Sou Respeito”, em que foram selecionados trabalhos artísticos , para serem executados, com destaque para autores LGBTQIA+. Você foi um dos jurados e participou do processo de seleção. Como você avalia essa medida? O que você percebeu nos trabalhos enviados e selecionados?

Gaudêncio – Desde o início da censura da exposição, as ações do Ministério Público Federal foram extremamente importantes porque trouxeram a público a determinação da lei sobre os direitos assegurados pela constituição, especialmente aqueles relacionados à liberdade de expressão. A multa foi a culminância de um conjunto de ações do MPF que se mostrou sistemática desde os primeiros dias do fechamento da exposição para o público. Cabe lembrar que o MPF visitou a exposição na segunda-feira, depois de seu fechamento, e constatou a inexistência de qualquer “irregularidade” em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente, eximindo a exposição das acusações que lhe haviam sido imputadas e o fez através de nota pública. A multa, que foi resultado de um acordo descumprido pelo banco Santander para realizar duas exposições reparatórias voltadas para a diversidade, foi bem aplicada pelo MPF através deste edital, lembrando ainda que recursos da multa também financiam a Parada Livre por três anos. 

A ação do MPF não só está em consonância com o legado desta exposição, que sempre foi voltada para uma abertura para a sociedade no que se refere às lutas da comunidade LGBTQ+ e de outros setores desprivilegiados da sociedade que a exposição também contempla em sua abordagem política, como também é inédita na história  da cultura brasileira, onde a aplicação da justiça frequentemente se perde da poeira do tempo. Quanto à seleção de projetos, cabe apenas dizer que eles se mostraram os mais representativos do conjunto de inscritos e propiciam contribuições complementares àquelas trazidas pela Queermuseu. 

Nonada – Na sua avaliação, a medida reparatória foi suficiente?

Gaudêncio – Creio que não podemos falar em “suficiência” neste caso, porque nada pode reparar o crime cometido contra a arte e a cultura brasileira através de um processo de censura como o da Queermuseu. A ação do Ministério Público Federal teve um impacto que também é simbólico, realizado através de uma medida prática constituída dentro dos limites razoáveis de ação institucional e, neste sentido, foi fundamental e cumpriu seu papel. O banco Santander perdeu sua legitimidade com a comunidade artística e cultural e mostrou que é uma instituição censora e descomprometida com os princípios básicos da institucionalidade. Isso a história não irá mudar, por mais que eles tentem convencer o público do contrário.   

Nonada – Através do Observatório de Censura à Arte, realizado pelo Nonada, já mapeamos pelo menos 70 casos de censura noticiados desde a Queermuseu. Se olharmos por categorias, boa parte dos episódios acontecem com trabalhos ou artistas LGBTQIA+, ou com temas específicos que envolvem as comunidades, como a linguagem não binária. Poderia comentar sobre isso? 

Gaudêncio – Em 2017/18 isso era um fato, mas hoje a censura expandiu-se para a academia, para os ramos da ciência, imprensa, e para os mais diversos setores da sociedade. Ela é agora pervasiva. Naquele dia do protesto em frente ao Santander Cultural, que foi organizado por inúmeras organizações LGBTs, de classe e direitos humanos, me convidaram para fazer uma fala e eu disse exatamente isso, que deveríamos prestar muita atenção com a expansão da censura que viria a seguir. Eu mencionei especificamente a academia e a imprensa. Na semana seguinte, os primeiros ataques desta nova fase iniciaram contra as universidades. Nunca foi objetivo destes setores ultraconservadores produzir censura apenas contra a arte e a cultura, mas utilizá-la como uma última fronteira a ser explorada, justamente pelo seu impacto simbólico no universo dos costumes e da produção de conhecimento. 

Uma vez que esta primeira fase tivesse atingido um volume considerável de ataques, ela naturalmente se espalharia para outros setores da sociedade, inclusive para setores mais progressistas. A área da ciência ganha menos publicidade quando tais ataques acontecem, mas sabe-se que muitos pesquisadores tiveram que deixar o Brasil em situações de muita gravidade. É preciso que os artistas e agentes culturais sejam mais conscientes de que estes ataques não são restritos a eles. Em verdade, nunca foram, apenas tiveram por um período mais agudo seu foco de atenção voltado para área de produção cultural. Também não é possível dizer que estes “ataques” são dirigidos prioritariamente a uma produção de caráter LGBTQ+, porque esta distinção já não mais existe. Isso aconteceu porque os ataques foram direcionados à criminalização da comunidade LGBTQ+, visto que é um recorrente histórico que possui grande eficácia no imaginário social ultraconservador. Assim como existem outras investidas desmoralizantes historicamente reconhecidas, como a criminalização do Funk, do aborto, ou da maconha, cada um deles colocados em curso na forma de ataques com objetivos diferentes. 

“O banco Santander perdeu sua legitimidade com a comunidade artística e cultural e mostrou que é uma instituição censora”

Nonada – O que mais está em risco quando uma obra, uma exposição ou um artista é censurada?

Gaudêncio – O maior risco é tomarmos a censura como uma investida simplesmente conservadora, resultante de “ausência de compreensão” da arte e do mundo, e não como uma incidência de base política e ideológica. E, com isso, nos distrairmos na resposta que é preciso dar ao crescimento da censura, o que, muitas vezes, é o que acontece. É frequente incorrer na ingenuidade de tentar contemporizar com a “fonte” da censura, ou dar uma resposta estrategicamente errada, por recuo ou por excessivo contra-ataque, que geralmente não inclui setores significativos da sociedade e constituem, no mais das vezes, respostas muito autocentradas na figura individual do censurado e não nos danos públicos comuns causados pela censura. A censura é um problema para todos os membros de uma sociedade que se quer democrática.  A defesa da liberdade de expressão precisa ser voltada para os interesses da maioria da sociedade

Nonada – No debate sobre censura, um aspecto recorrente são os malabarismos retóricos. Por exemplo, na época da Queermuseu, políticos de direita tentaram dizer que era apenas “um boicote”, ou então uma questão de gosto, de interesse público. Até mesmo no jornalismo, é possível perceber uma dificuldade de nomear os casos, ou de colocá-los enquanto “polêmicos”. O que você analisa sobre a questão discursiva, sobre dizer que censura é censura?

Gaudêncio – Eu acompanhei todas as publicações da mídia tradicional e alternativa sérias e, em sua grande maioria, a abordagem da censura da Queermuseu foi correta. Nós tínhamos uma equipe de monitoramento destas notícias que permaneceu ativa por todo aquele ano depois da censura. Me parece evidente que houve uma espécie de consternação em relação ao acontecido e uma compreensão da gravidade do incidente e seus desdobramentos. Dito isso, não há por que ter expectativas de uma resposta mais precisa sobre a dinâmica destes acontecimentos, uma vez que os fatores que levam uma notícia a ser publicada são inúmeros.  É extremamente difícil ter controle de uma narrativa, mas, de certa forma, conseguimos isso, em parte pelo meu comprometimento como curador e disponibilidade de dialogar incessantemente por diversos meios (entrevistas, notas de imprensa, palestras pelo país, etc.), tais como a imprensa e os setores progressistas envolvidos nos desdobramentos desta narrativa. Quando a narrativa se desvia muito do curso é preciso intervir publicamente e corrigir o curso. Se esta consistência for mantida, a imprensa inclina-se a acompanhar. Mas não é uma estratégia fácil e exige disposição e envolvimento integral.

Quanto ao “boicote”, eu sempre deixei claro que este processo nunca foi um boicote. Boicote é uma ação legítima que se utiliza de recursos legítimos de ação dentro de uma sociedade democrática e capitalista como a nossa. Utilizar táticas de fake news e de milícia digital e até violência, como foi o caso desde o início, não constituem legitimidade. Privar as pessoas de acesso ao conhecimento através de uma exposição por quaisquer meios constitui censura, conforme a constituição brasileira. Foi isso de fato o que aconteceu. 

Exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no Parque Lage, no Rio. (Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil)

Nonada – Em 2018, você relatou à Agência Pública ter sofrido mais de cem ameaças de morte, tendo precisado, inclusive, andar acompanhado com seguranças. Como você se sente sobre sua segurança hoje? Os ataques cessaram?

Gaudêncio – Eles nunca cessaram até eu deixar o país em 2019, mas eu evitei falar sobre isso porque eu nunca quis desviar o foco de atenção da narrativa da censura e as importantes questões que ela envolvia, para um processo de vitimização que, aliás, sou contra. Todos têm direito a uma denúncia pública de ações de violência, mas existem diversas maneiras de fazer isso e eu quis evitar que tal narrativa tomasse precedente sobre o que era fundamental para o conjunto da sociedade: os ataques à liberdade de expressão, aos princípios democráticos e de acesso, e à criminalização da arte e dos artistas, entre outros. Sobre isso eu dei apenas uma entrevista para o jornal El Pais na segunda metade de 2018 sobre este assunto das ameaças de morte e os ataques, próximo à abertura da exposição na Escola de Artes Visuais do Parque Laje (EAV). 

Nonada – Com o que você está trabalhando atualmente? 

“A Queermuseu foi feita para alavancar um conjunto de problemas artísticos ligados ao impacto artístico e cultural do queer sobre a contemporaneidade.”

Gaudêncio – Eu continuo escrevendo e publicando, e dando aulas de história da arte em uma universidade em Nova Iorque. Também estou trabalhando em algumas exposições monográficas de artistas que tenho acompanhado. Este é um momento de extrema complexidade, então estou escrevendo projetos curatoriais para um futuro, que podem ou não vir a ser realizados. Eu não tenho interesse intelectual de realizá-los no momento porque a curadoria está passando por uma crise de princípios e creio ser prudente esperar para que estas “intervenções” tenham eficácia cultural e artística e não se percam em meio a uma falta de distinção conceitual e política pela qual a prática curatorial está passando, em minha perspectiva. 

Nonada –  Na Queermuseu, o público teve uma participação expressiva no enfrentamento à censura. Primeiro, um protesto em frente ao Santander Cultural, em Porto Alegre. Depois, um arrecadamento de Crowdfunding de cerca de R$1.100.000. O que o envolvimento das pessoas pode significar?

Gaudêncio – A campanha de crowdfunding da Queermuseu foi a mais bem sucedida da América Latina na área de arte até então e mostrou o engajamento dos setores progressistas da sociedade brasileira na luta que resultou na censura da Queermuseu. Isso tem vários significados. Talvez o mais importante seja de que é possível empreender uma luta legítima e vencê-la. A luta pela Queermuseu e tudo que ela envolveu foi uma luta extremamente bem-sucedida, para além inclusive dos limites da exposição. A exposição tinha uma enorme relevância artística pois sua plataforma era ampla e inclusiva e, portanto, permitiu que ela se transformasse em um campo de lutas para onde uma diversidade de interesses legítimos pudesse convergir.

Creio que já é possível agora, com distanciamento, ver que se trata de um caso único neste aspecto. Por outro lado, de minha parte, eu nunca fechei a narrativa, fazendo com que sempre fosse possível trazer para a defesa dos princípios da exposição todos e todas que desejassem com ela se envolver. Mas a Queermuseu também mostrou o quão bem-sucedido um empreendimento curatorial pode ser, e o quanto ele pode ser popular, amplo e diverso, sem negligenciar o rigor intelectual e acadêmico da plataforma. É uma lição que deveria ser aprendida por curadores e empreendedores no meio. Cabe dizer ainda que a Queermuseu deixou um legado de lutas contra a censura. Estaríamos em meio a uma tragédia muito maior, em uma escuridão estratégica, se não tivéssemos esse marco de lutas para vislumbrarmos, na medida que seguimos resistindo.

Nonada – Em uma entrevista sobre a Queermuseu, você fala que seu desejo enquanto curador era “investigar” a questão Queer e não “ilustrar”. Poderia comentar um pouco sobre a diferença? 

Gaudêncio – Creio que essa prerrogativa “ilustrativa”, que é quase a regra em exposições, deve ser complementada com algo que falei constantemente desde antes da exposição abrir. De que esta não era uma exposição essencialista. Eu escrevi sobre isso em artigos de imprensa, nos catálogos da exposição, e em várias publicações. A Queermuseu foi feita para alavancar um conjunto de problemas artísticos ligados ao impacto artístico e cultural do queer sobre a contemporaneidade. Tratava-se de uma abordagem de gênero como um dispositivo político de relevância para a cultura e, portanto, para a arte. Por isso a exposição incluiu uma variedade de obras canônicas e não-canônicas de artistas LGBTQ+ e não LGBTQ+. 

Esse é o modelo daquela exposição. Nada impede que se façam outras. Mas esta exposição segue uma história de exposições internacionais que abordaram o queer em plataformas de grande envergadura e levou em conta esta história pregressa, distanciando-se delas com vistas a avançar em sua contribuição. Olhando em retrospecto, ela se mostra ainda mais acertada na minha opinião. A exposição teve excelente repercussão internacional e é reconhecida dentro desta história. E ela inaugurou para a sociedade brasileira de forma definitiva o debate sobre gênero que antes estava restrito a determinados círculos acadêmicos.

Nonada – Você já esteve à frente de diversas instituições no RS, como o Margs, MAC e IEAVi. Na sua percepção, quais devem ser as preocupações centrais das instituições no Brasil hoje? 

Gaudêncio – O principal problema que vejo nas instituições museológicas brasileiras hoje, é a falta de uma política de exposições que seja de médio e longo prazo, portanto voltada para uma estratégia de colecionismo. Existem exceções, como a atual gestão do MASP por exemplo, ou o MON de Curitiba. Os museus não têm, em sua grande maioria, produzido conhecimento avançado com rigor acadêmico. Muitos viraram locais de exposições temporárias, sem publicações consistentes e sem política de aquisição de obras. Os artistas ficam felizes de participar e as instituições utilizam-se desta prática populista. Mas exposições sem estarem inseridas em um plano estratégico voltado para a produção de conhecimento devem ser deixadas para outros mecanismos. É preciso também que esta política tenha em conta a recepção, legibilidade e a garantia desta produção para gerações futuras, três aspectos que raramente passam pelas cabeças de seus diretores e curadores. Além disso, instituições deveriam ser o último bastião de defesa da liberdade de expressão, o que raramente é o caso no campo institucional brasileiro de hoje. Muitas têm, não só promovido censura, como recuado ao primeiro sinal dela.

Exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, no Parque Lage, no Rio. (Foto: Thomaz Silva/Agência Brasil)

Nonada – Estamos novamente em um momento pré-eleitoral. Pensando na cultura, vivemos em um período de guerra contra artistas e profissionais das artes, de modo geral. Como você avalia as perseguições organizadas contra os artistas?

Gaudêncio – Eu creio que é muito mais complexo do que uma guerra contra os artistas. Trata-se um processo de ataques ao universo simbólico da arte e da cultura (assim como da ciência), como meio de relativizar a noção de verdade e a estabilidade do conhecimento. Os processos de censura que conhecíamos historicamente atuavam em outra frequência. Eles lançavam mão da repressão como dispositivo de contenção da informação pública. Em ambos os casos, como essa produção é realizada por agentes culturais, eles transformam-se em foco de ataque. Mas o problema é bem mais grave. Com a censura que estamos vendo agora, o conhecimento é desacreditado diante do imaginário da sociedade e ele perde a relevância como instrumento de compreensão e atuação no mundo. Trata-se de um processo progressivo de desmoralização pública. Mas há algo ainda pior: em meio a este processo, gera-se uma transformação cognitiva (sobre a qual falei e escrevi já em 2017, logo depois da censura), que altera definitivamente a maneira como as pessoas passam a perceber a realidade e, por consequência, a reagir em relação a ela. Trata-se de uma transformação muito grave, destas que acontece a cada um século e praticamente irreversível. Cinco anos depois da censura da Queermuseu, quando esse processo acelerou vertiginosamente, já é possível ver as consequências. Basta observar com mais atenção.

Nonada – Depois de cinco anos, e quatro anos do atual governo, o  medo à censura e à violência continuam presentes. O que podemos levar desse episódio para o período social e político que vem pela frente nos próximos meses?

Gaudêncio – As pessoas deveriam ter tanto medo da censura, como das consequências dela. A autocensura, o mais nocivo efeito colateral da censura, corrói o pensamento, altera a percepção da realidade e interfere no livre arbítrio. E pior que isso, produz uma excessiva contrarreação que é improdutiva e colabora com a agenda dos setores ultraconservadores que querem acirrar a divisão entre os setores da sociedade. Censura não é necessariamente uma restrição de uma “liberdade sem limites”, porque limites são parte de viver em sociedade. Censura é ainda uma interferência no processo de decisão que está circunscrito ao livre arbítrio. Um dos efeitos mais nocivos do processo de censura é gerar a convicção de que um impedimento objetivo está sendo imposto quando na verdade, na maioria dos casos, a censura é posta em curso de maneira que sequer percebemos, gerando seu mais nocivo efeito colateral, que é como eu havia dito, uma interferência cognitiva no pensamento, na regulação da motricidade e no comportamento. Passamos a agenciar e administrar as distrações dela decorrentes, enquanto nosso corpo cada vez mais fica confinado a um campo repressivo do pensamento. Ressurgem os tabus, reaparecem os limites da criatividade. A violência resultante da censura, por outro lado, precisa ser abordada em separado deste contexto porque ela é uma barbárie. É difícil julgar sob o ponto de vista moral os danos causados pela censura não-física. Os mais nocivos efeitos da censura são uma catástrofe silenciosa.

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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