Manaus (AM) — Professor, escritor e Doutor em Educação, Ytanajé Coelho Cardoso, 34, carrega em suas palavras o som da floresta, da resistência e da memória ancestral. Nascido na aldeia Kwatá, às margens do Rio Canumã, no Amazonas, o autor de Canumã: a travessia escreve para manter vivas as histórias de seu povo Munduruku, e para lembrar que a literatura também é um ato político. O autor faz questão de explicar que histórias indígenas não são lendas, como frequentemente os brancos costumam classificar narrativas dos povos originários.
O primeiro romance de Ytanajé narra a saga de uma família Munduruku que deixa a aldeia rumo à cidade grande — trajetória que espelha a sua própria vivência. Desde o nascimento, Ytanajé esteve envolvido com o movimento indígena. “Sua avó, Ester Caldeira Cardoso foi a última falante da língua Munduruku no estado do Amazonas e sempre o orientou a manter viva a língua tradicional.”Minha avó, Ester Caldeira Cardoso, foi a última falante da língua munduruku do Amazonas. Devo ela muito do que sou e do que sei hoje”, diz.
Apesar de ter passado os primeiros dez anos de vida entre a aldeia e a área urbana de Nova Olinda do Norte (a 234 km de Manaus), a ausência de escola na aldeia obrigou Ytanajé a buscar educação formal na cidade. Mais tarde, ele e sua família seguiram para Manaus, onde ele finalizou o ensino fundamental e médio.
Viver em Manaus não foi fácil logo no início. Além de precisar juntar frutas nas feiras, ele teve que vender picolé nas ruas da cidade. O escritor também lembra que sempre que pegava a caixa, seu pensamento já era de voltar para casa: “Precisava estudar”.
Tanto é que foi ainda no ensino médio que começou a escrever seus primeiros poemas inspirados na floresta amazônica e no povo Munduruku. A mãe não ficou de fora, foi ela, junto com a escola, quem incentivou o ainda jovem escritor, que não demorou muito para experimentar a prosa e lançar seu primeiro romance.
Em sua tese de doutorado na Universidade Federal do Amazonas, ele defende a necessidade de uma didática própria para as escolas de aldeias Munduruku que considere a língua do povo e as práticas culturais com base na literatura. “Atualmente, os munduruku reivindicam, cada vez mais, o domínio da escrita. A meu ver e com base nas vozes das lideranças Munduruku, dos estudantes e dos professores, a escrita é uma técnica de interação no mundo e com o mundo. Assim, já é consenso, tanto entre lideranças quanto entre todos os centros de valores do povo Munduruku, que a escrita é uma ferramenta de luta e de resistência, imprescindível para a vivência e sobrevivência do povo na atualidade. Se antes o povo munduruku lia o mundo de maneira direta, agora teve que aprender a fazer isso por meio da escrita, do texto”, escreveu.
Hoje, ainda morando em Manaus, Ytanajé atua como professor da rede estadual, colaborador da UEA (Universidade do Estado do Amazonas) e integrante da Gerência de Educação Escolar Indígena. Para ele, ser pesquisador, escritor, professor e ativista é inseparável do compromisso político com seu povo e com a floresta.
“Para mim, essas quatro condições não se separam, pois quando escrevo estou agindo no mundo, de maneira que minha ação tem efeito nos meus outros”, conta ao Nonada.
Confira a entrevista na íntegra:
Nonada Jornalismo — Quando você começou a escrever e por qual motivo?
Ytanajé Coelho Cardoso — Comecei a escrever ainda no ensino médio. Escrevia poemas inspirado pela floresta amazônica e pelo meu povo Munduruku. Minha grande motivação foi minha mãe, que dizia que eu tinha que aprender a ler e a escrever para ser alguém na vida. Também a escola me motivou, quando havia eventos culturais. Gostava de construir versos. Era como montar um quebra-cabeças.
Na graduação comecei a experimentar a prosa. No final da graduação em Letras escrevi meu primeiro e único romance, de 2014 para 2015. O título do romance é Canumã: a travessia, cujo enredo conta a história de uma família munduruku que sai da aldeia e vai morar na cidade. Nesse processo ocorre uma série de eventos reveladores de uma das realidades indígenas do Brasil.
Nonada — Você é ativista, escritor, professor e pesquisador, como consegue conciliar?
Ytanajé Coelho Cardoso — Para mim, essas quatro condições não se separam, pois quando escrevo estou agindo no mundo, de maneira que minha ação tem efeito nos meus outros. Escrever um texto interessante exige pesquisa, acho que até mais do que escrever uma dissertação de mestrado ou tese de doutorado. Quanto a ser professor, é uma de minhas ações mais emocionantes na vida. Gosto de dar aulas, de compartilhar conhecimentos com meus interlocutores, sobretudo quando se trata da temática indígena. Cada revelação de sala de aula, por parte dos alunos, eu enxergo possibilidades de mais uma história a ser levada para os livros.
“Ler escritores e escritoras indígenas é imprescindível para construirmos um país menos preconceituoso. A falta de políticas públicas para a promoção da leitura e da escrita, em especial a leitura de literatura indígena, é um dos principais problemas a serem enfrentados.” — Ytanajé Coelho Cardoso
Nonada — Você sempre se viu como indígena? Caso não, como foi para se descobrir?
Ytanajé Coelho Cardoso — Nasci e cresci no meio do movimento indígena. Desde criança sempre ouvi falar na resistência, principalmente por parte dos meus avós paternos. Minha avó, por exemplo, sempre nos orientava a falar a língua munduruku, não queria que perdêssemos. Minha avó, Ester Caldeira Cardoso, foi a última falante da língua munduruku do Amazonas. Devo ela muito do que sou e do que sei hoje.
Nonada — Quais experiências mais memoráveis que você tem como indígena e quais foram as dificuldades que enfrentou?
Ytanajé Coelho Cardoso — Quando vim morar em Manaus, cheguei a juntar frutas e legumes nas feiras, em especial na Feira do São José, que existe até hoje. Passei alguns anos vendendo picolé, nas ruas. Mas quando eu pegava a caixa de picolé, eu já pensava em voltar para casa, porque precisava estudar. Não cheguei a passar fome porque minha mãe nos ajudava bastante. Ela trabalhava como doméstica. Saía quatro e meia da manhã e chegava seis da tarde. Às vezes ela trazia restos de pão ou de comida. Ficávamos felizes com isso.

Nonada — Qual a importância de um professor/escritor se posicionar politicamente? Qual seu maior objetivo como alguém do Norte?
Ytanajé Coelho Cardoso — A política é inerente ao ser humano. Escrever literatura é um dos atos políticos mais interessantes que a humanidade já desenvolveu. Meu maior objetivo é contribuir com a literatura da minha região e do meu país, apresentando as vozes dessa região do mundo.
Nonada — Qual a importância de ler e compartilhar escritores indígenas? Qual você acha que é a maior dificuldade relacionada a isso atualmente?
Ytanajé Coelho Cardoso — Ler escritores e escritoras indígenas é imprescindível para construirmos um país menos preconceituoso. Pois, se o brasileiro não consegue chegar até uma aldeia para conhecer sua realidade, a literatura pode levar a aldeia para dentro da casa de qualquer brasileiro. A falta de políticas públicas para a promoção da leitura e da escrita, em especial a leitura de literatura indígena, é um dos principais problemas a serem enfrentados.
Nonada — Quem são suas duas principais inspirações e por qual motivo?
Ytanajé Coelho Cardoso — A ideia de inspiração depende de qual aspecto da vida se está falando, mas pessoalmente, minha esposa e meu filho, de quatro anos, são minhas principais motivações para continuar lutando por um futuro melhor. Todos os dias chego em casa querendo cheirar e abraçar meu filho. Também minha mãe, meus irmãos, minhas cunhadas e muitos outros parentes vivemos em grande harmonia, numa união que também me inspira.