Comunidades tradicionais relatam perdas com crise climática e se preparam para buscar direitos na COP30

Escassez de peixes, seca prolongada e cheias inesperadas são algumas dos efeitos mais ouvidos pela reportagem do Nonada
Jovens reunidos na Terra Indígena Capoto Jarina, Mato Grosso (Foto: Thaís Seganfredo/Nonada)

Manaus (AM) e Capoto Jarina (MT) — Na estrada que leva para a Terra Indígena Capoto Jarina, que circunda parte do rio Xingu, em Mato Grosso, não é difícil encontrar algum caminhão  madeireiro circulando pela região, já dentro do território demarcado. Capoto Jarina é um oásis preservado na Amazônia Legal, um contraste em relação ao norte do estado — um dos mais deflorestados nos últimos anos, com média diária de 492,1 hectares desmatados desde 2019, segundo dados do MapBiomas.

Sob o sol forte do estado e às margens do sagrado rio Xingu, o território, casa dos Kayapó, dos Yudjá (Juruna) e dos Tapayuna, foi palco de um encontro que reuniu jovens ativistas e lideranças de diversos povos e comunidades tradicionais para debaterem a crise climática. No evento, que o Nonada acompanhou nos últimos dias de agosto, o desmatamento dos biomas e o impacto de grandes empreendimentos de energia nos territórios foram apontados como os principais causadores de emergências climáticas nas comunidades. 

No Amazonas e em Mato Grosso, a reportagem ouviu mais de 15 pessoas de diferentes territórios. Elas relatam efeitos que se repetem no Cerrado e na Amazônia Legal: falta de peixes para alimentação, calor extremo que prejudica o trabalho nas roças familiares, cheias inesperadas que alagam territórios rurais e periféricos e ainda secas frequentes que acarretam em insegurança alimentar para as famílias. 

Antônia Cariongo, liderança do Quilombo de Cariongo, no Maranhão, aponta como a destruição do Cerrado causa um êxodo involuntário em comunidades locais.  “Com isso, se destrói a floresta, se acaba com a fauna e com a flora, se expulsa diversas comunidades dos seus territórios.” O estado também está na lista dos mais devastados nos últimos anos, com média diária de 541,9 hectares desmatados desde 2018, de acordo com o MapBiomas.

Antônia Cariongo, liderança do Quilombo de Cariongo, no Maranhão (Foto: Thaís Seganfredo/Nonada)

A liderança critica a atuação de grandes empreendimentos que têm chegado na região nos últimos anos. “Na sua maioria das vezes, esses empreendimentos não respeitam a Convenção 69 da OIT, que é o processo de consulta e consentimento prévio, livre e informado das comunidades tradicionais quilombolas”, denuncia. 

Antônia aponta que até o momento o território em que vive não recebeu nenhum tipo de recurso do chamado financiamento climático, criado para que os governos promovam ações de mitigação e adaptação das mudanças do clima. 

Moradora da Volta Grande do Xingu, no Pará, Sara Lima vê cotidianamente os efeitos da usina hidrelétrica de Belo Monte. “Está tendo uma mudança radical no território em si. Está afetando tanto o rio, que está secando muito, está afetando a reprodução do peixe. Esse colapso climático também está afetando a nossa vida em si.  Se roubam as águas do nosso rio para geração [de energia] ou qualquer outro tipo de empreendimento, acaba com o nosso território, acaba com a nossa vida, acaba com as vidas dos não humanos”.

“Eu tenho o Xingu como a mãe e o pai, e ele está passando por um momento difícil, está quase infértil por falta de água para a piracema. Para resolver essa crise climática, é preciso parar de destruir os nossos rios. É preciso parar de destruir as nossas florestas. Chega de empreendimentos de morte para os nossos territórios, chega do desenvolvimento do branco para nos destruir. Para o mundo não chegar a um colapso, é parar de destruir os nossos territórios”, pede.

Filha e neta de extrativistas e moradora de Rio Branco, no Acre, Gleiciane de Oliveira relembra a grande enchente que o estado viveu em 2015, quando mais de 100 mil pessoas foram atingidas. Desde então, a liderança conta que o estado vive cheias periódicas. “A casa minha e da minha família alaga praticamente todos os anos, desde então. A gente tem que levantar os móveis para que a água não os alcance, e também sair de  casa para acampamentos temporários feitos pelo governo do estado. E é uma situação muito caótica, todo mundo acaba tendo muitos prejuízos, perdendo móveis. Ninguém nunca quer deixar essa casa, ainda mais de uma forma forçada, como é o que aconteceu.”

Enchente em Rio Branco (AC) em 2024 (Foto: Pedro Devani/Secom)

Gleiciane integra a Aliança dos Povos pelo Clima, “uma rede de luta ancestral articulada a partir de uma proposta de envolvimento pela defesa da floresta, da Amazônia e da vida, em tempos de colapso climático”. Responsável pelo evento que a reportagem presenciou em Capoto Jarina, a iniciativa ressurge inspirada na Aliança dos Povos da Floresta, idealizada por Chico Mendes na década de 1980. “A primeira Aliança foi um grito para afirmar que dentro da floresta existem pessoas. Hoje o grito ecoa outra vez, da boca de jovens indígenas, quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, beiradeiros, pescadores artesanais. E na liderança há muitas mulheres. Agora a revolução também é delas”, diz o manifesto oficial, publicado inclusive nos idiomas dos povos Mebêngôkre, Yudjá, Waura e Munduruku.

A auonomia das comunidades tradicionais no combate à crise climática é uma das frentes de atuação da rede, uma vez que os impactos do aquecimento global são sentidos com cada vez mais efeitos em diversos territórios. “No trabalho que eu tenho feito nas reservas extrativistas do Acre, eu escuto muitos relatos de que a crise climática vem afetando, principalmente, a produção de borracha, de castanha, de açaí, que são produtos florestais não madeireiros que compõem a renda das famílias dentro das reservas”, conta Gleiciane, destacando que essas perdas afetam não só a renda das famílias, como sua segurança alimentar. “As secas também são um grande problema, levando à falta de água para beber e reduzindo o número de peixes, que também é uma base da alimentação dessas populações”.

Cacique Raoni fala com juventude de comunidades tradicionais em Capoto Jarina (Foto: Thaís Seganfredo/Nonada)

Agora, essas jovens lideranças se preparam para buscar seus direitos na COP30, com foco na busca da autonomia e no financiamento climático, frente às ações de mitigação e adaptação que a crise climática vem provocando nos territórios. Além de Chico Mendes, a atuação é inspirada na luta da grande liderança da região, Raoni Metuktire. Chamado de avô pelos Kaiapó, Raoni esteve presente no primeiro dia do encontro em Capoto Jarina e conversou com a juventude, um dos momentos mais esperados do encontro. “A nova geração precisa manter esse propósito, essa união de vários povos. A luta é constante até hoje e vocês, a nova geração, precisa continuar”,pediu.

“Não adianta discursos bonitos sem ações concretas”

Ainda que a COP30 seja realizada em Belém (PA), no entanto, o evento é visto com um misto entre cautela e esperança por representantes de comunidades tradicionais ouvidos pelo Nonada. Quilombolas e indígenas do Pará e da Amazônia apontam a necessidade de que a conferência seja mais do que um palco de discursos. Para eles, a prioridade deve ser garantir políticas públicas, recursos e respeito aos povos que protegem a floresta.

No arquipélago do Marajó, na fronteira com o Tocantins, a agricultora familiar Marinilva Arnaud Martins, liderança no território da Associação das Comunidades Remanescente de Quilombo de Igarapé Preto e coordenadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, lugar em que vive há 27 anos, já sente os efeitos da transformação do clima. “Antes, na região, tinha um determinado tempo de verão e inverno, agora com o desmatamento o clima mudou. Nossos igarapés estão secando, nossas plantações, que são fonte de renda e nossa cultura alimentar, estão sofrendo”, conta Marinilva.

As obras de infraestrutura, como a PA-368 e a BR-422, também trouxeram impactos diretos ao território. Segundo a liderança, as estradas fecharam nascentes de igarapés, criaram represas artificiais e resultaram em inundações que atingem diversas comunidades. 

O avanço desordenado sobre a floresta vem alterando ciclos de chuva e aumentando a intensidade do calor. A liderança conta que já denunciou o caso ao Ministério Público do Amazonas, mas não obteve retorno. O Nonada entrou em contato com a assessoria da instituição, porém não recebeu resposta até o encerramento desta publicação.

Às vésperas da COP30, Marinilva vê com ceticismo a possibilidade de que vozes quilombolas tenham espaço para se manifestar. “Minha expectativa em relação à COP30, pra mim, nada mais é do que mídia, já que não teremos espaço de fala”, desabafa.

Ainda assim, ela reforça o recado que gostaria de transmitir aos governantes durante a conferência: “Para manter a mata em pé é preciso garantir a vida dos guardiões da floresta. Onde tem floresta, têm vidas sendo tombadas.”

No Quilombo do Igarapé Arirá, em Oeiras do Pará, a mudança climática também já deixou de ser uma previsão científica distante para se tornar parte do cotidiano. Cristivan da Silva Alves, comunicador social e liderança quilombola, descreve um cenário em que a agricultura, a pesca e até mesmo a saúde das pessoas são impactadas por calor extremo, secas prolongadas e enchentes inesperadas.

As enchentes inesperadas alagam plantações e estradas, enquanto as secas prolongadas reduzem o tempo de trabalho no roçado. “Antes ficávamos mais tempo na roça, hoje não conseguimos, por causa do calor extremo”, lembra. A solução encontrada por seu pai, por exemplo, foi sair cada vez mais cedo para o campo, numa tentativa de escapar do sol forte. 

A agricultura familiar, fonte principal de renda e alimento, sofre com a instabilidade climática. A produção da farinha, central para os quilombolas do Arirá, já enfrenta perdas, enquanto a pesca está ameaçada pela alteração dos igarapés e do lago da região, já que essas alterações afetam a permanência de peixes.

Diante desse cenário, Cristivan olha para a COP30 com esperança e cautela. Ele defende que o encontro não pode se restringir a discursos diplomáticos, mas deve garantir políticas públicas e recursos reais para os povos da Amazônia. “Espero que a COP30 seja um espaço onde as vozes dos povos da floresta sejam ouvidas de fato”, diz.

Sua mensagem aos líderes mundiais reforça a urgência: “Não adianta discursos bonitos sem ações concretas. Nós, povos quilombolas, estamos há séculos preservando a Amazônia e precisamos de apoio para continuar essa luta”.

Seca do rio Negro (AM) em 2023 (Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil)

A frustração com a distância entre discursos e prática é compartilhada por Gildo Feitoza, do povo Mucuxi, doutorando em Botânica no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Ele foi convidado para a COP pelo movimento dos estudantes indígenas do Amazonas e pela Articulação dos Povos Indígenas da Amazônia (Apian). 

“A gente vai debater entre a gente, entre os povos indígenas, na esperança de que alguma ideia chegue a alguns tomadores de decisão. Mas a questão é: por que poucas pessoas no planeta determinam a vida de milhares?”, questiona.

Para Gildo, há um impasse: enquanto povos indígenas conhecem suas necessidades, como a demarcação de terras e a autonomia sobre os territórios, as decisões continuam concentradas nas mãos de poucos líderes globais. “Poucos brancos têm o poder no mundo, mas eles têm essa capacidade de deixar grande parte das populações passando por problemas. A gente tem muita esperança na COP30, mas não sei se essa esperança vai se reverter em ações práticas”, diz.

O pesquisador e padre Justino Sarmento Rezende, do povo Utãpinopona (Filhos-da-Cobra-de-Pedra), conhecidos como Tuyuka e presentes no Alto Rio Negro (AM), acrescenta uma crítica sobre a forma como governos e grandes interesses econômicos direcionam as decisões. “Existem muitas disputas nos modos de ter, com contribuições ou implicâncias políticas durante a conferência. Do lado do governo, com certeza, já está tudo encaminhado o que eles vão estabelecer como acordos entre estados e nações. E muitos conteúdos e contribuições das parcelas ou instituições da margem da sociedade ficarão de lado, embora de grande importância. Essa é a minha preocupação.”

Padre Justino Sarmento Rezende (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Para ele, a COP30 na Amazônia não significa, necessariamente, maior atenção aos povos da região: “É mais uma conferência acontecendo aqui, porque, para os governantes, há muito apoio de grandes empresários, de quem detém grande poder econômico. Eles têm maior interesse que sejam aprovadas leis ou propostas que ajudem a obter resultados conforme seus interesses”. 

A pesquisadora Maria Gracimar nasceu e cresceu em meio à floresta amazônica, morando em um barco até os nove anos de idade. Suas lembranças da infância são vívidas: “Cresci tomando banho de rio e igarapé, brincando nas praias, andando de canoa, comendo fruta no pé. Uma lembrança nítida é do dia que aprendi a pescar, eu era muito pequena. Foi no Rio Água Boa, afluente do Rio Branco, em Roraima, água cristalina, eu via os peixes no fundo: tucunarés, aracus, carás… Tudo era abundante.”

Ela recorda também a riqueza sensorial da Amazônia: os sons de aves e macacos, esturros de onças, e cheiros como o tucupi saindo da prensa, a mandioca puba, o leite da castanha e a terra molhada após a coivara. “Nos dias de sol eu brincava na canoa, ou subia no teto do barco e pulava no rio, ou cultivava flores e hortaliças plantadas na bacia. Comia açaí, buriti, patauá e bacaba.”

Em relação à COP30, a pesquisadora reforça a necessidade de foco na dimensão humana: “A conferência vai debater estratégias ambientais, mas uma questão que me apavora é a produção excessiva de lixo. Manaus, por exemplo, enfrenta crise urbana: excesso de carros, falta de espaços verdes, acúmulo de lixo. Sem políticas públicas eficientes, as decisões acabam nas mãos de governos estrangeiros, com interesses socioeconômicos diversos. Espero que cientistas e lideranças de povos tradicionais sejam escutados, mas não guardo grandes expectativas.”

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