Foto: “O Pulo do Gato”, de Froiid, instalação vencedora no Prêmio SESC da Bienal VideoBrasil, RAP guiado por I.A.
A artista e pesquisadora Giselle Beiguelman tem acervo suficiente para montar uma coleção de todos os ataques que já recebeu direcionados aos seus textos e trabalhos artísticos que colocam em diálogo arte e inteligência artificial generativa. Professora da USP e referência no campo de arte e novas tecnologias, ela não está imune de ter seu trabalho menosprezado em comentários nas redes sociais que optam pelo ataque ao invés do questionamento.
Um desses trabalhos é Venenosas, Nocivas e Suspeitas, onde a artista constrói retratos especulativos de importantes mulheres esquecidas pela história junto de plantas que estas estudavam, muitas vezes relegadas pelo colonialismo. O trabalho rendeu à Giselle uma exposição solo no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo.
“Eu acho que as críticas à inteligência artificial repetem uma série de cacoetes que foram muito recorrentes na época em que a internet apareceu e o fundamento delas é de cunho absolutamente conservador, não é uma preocupação com o direito autoral do artista, isso é legítimo, muito embora eu acho que isso tem que ser pensado à luz do século XXI e não do XIX”, comenta a professora.
“Ninguém começa do zero. Nós somos o produto dessas camadas de legados, histórias, imaginários, e a espessura dessa lente, do meu ponto de vista, reverbera também na espessura de uma obra como obra de pensamento ou como mera aplicação de fórmula, porque a IA te permite isso também”.
O debate acerca da autoria de um trabalho artístico não surge com o advento da IA generativa. Ele atravessa o campo da criação artística pelo menos desde o início do século XX, quando Duchamp resolveu expor um mictório ou quando, mais tarde, Warhol reproduz imagens de Marilyn Monroe, Mao Tse-Tung e Elvis Presley, diz a artista.
Nesses casos, Giselle avalia que “nós estamos transitando num campo que opera pela apropriação como citação explícita”. Segundo a professora, os trabalhos desses artistas também carregam, de certa forma, a lógica dos sistemas generativos com os quais nos familiarizamos hoje, onde o conhecido é reconfigurado.
Enquanto a grande maioria dos artistas não trabalha com a IA generativa, alguns se propõem a utilizá-la e problematizá-la em seus trabalhos. Para o mineiro Froiid, ela é uma ferramenta e também uma linguagem. Na instalação sonora Carnavais na Bienal (2025), comissionado para a 14ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre (RS), o artista utiliza a IA generativa para a produção de uma série de ilustrações e uma composição sonora de geração imediata a partir da obra de Heitor dos Prazeres, alimentada por um banco de dados construído pelo trabalho de músicos com os quais o artista cooperou. Em um televisor, o processo de produção da música ouvida no ambiente é exibido. “Expor um programa de computador em uma galeria tem uma certa potência”, diz Froiid.

Em outro trabalho, O pulo do gato, Froiid se inspira em um livro de poesias de Raymond Queneau feito inteiramente de tiras para construir um rap infinito. Beats, sonetos e versos elaborados pelo rapper Matéria Prima passaram a integrar a base de dados que teria esses elementos intercalados pela inteligência artificial na produção da música.
Ele explica: “A inteligência artificial é uma técnica. Eu escolhi a IA por ser uma ferramenta que a gente tem hoje na contemporaneidade, que consegue executar padrões, que consegue visualizar possibilidades. Ela me permite o descontrole, o erro, que é o mesmo descontrole que eu tenho na música. Então eu estou usando de forma conceitual.”
Para Giselle, a inteligência artificial pode sim ser uma ferramenta, mas não somente. “Eu acho que não é à toa que ela [IA] se populariza no momento em que nós passamos a problematizar cada vez com maior rigor e amplitude a necessidade de considerar inteligências não humanas. Então tem um campo do abalo a um certo status antropocêntrico [o Homem no centro de tudo] que vem embarcada nessa tecnologia e, desse ponto de vista, ela não é uma mera ferramenta”, explica a professora.
Essa concepção da inteligência artificial como outra forma de consciência complexifica um pouco as questões referentes aos direitos autorais no Brasil. Cecilia Rabêlo, do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) explica: “um dos pontos fundamentais é que a lei de direitos autorais diz que a obra intelectual é uma criação humana. Se a consciência não é humana, então ela teria que ter uma outra legislação que não seja a legislação das coisas humanas”.
O que diz a legislação
Cecilia conta que a legislação de direitos autorais no Brasil data de 1988 e que pouco mudou nesses anos todos. “Nem da internet ela fala. [Mas] não significa que ela não é aplicada na internet”, explica. Contudo, quanto mais as novas tecnologias são desenvolvidas e complexificadas, mais tortuoso fica o trabalho dos juízes que terão de julgar esses casos. Para tanto, seria necessária uma regulamentação específica que delimitasse melhor as ações a serem tomadas em um caso de direitos autorais envolvendo Inteligência artificial generativa.
A advogada ressalta ainda uma diferença entre propriedade intelectual, que é protegida por direitos autorais, e estilo. “Ao que parece, não há um direito autoral sobre o estilo. Assim como não tem um dono do pop, do rock, do piseiro, não existe um autor do estilo, até porque isso inviabilizaria a criação”, diz, rememorando a tendência de gerar imagens com o estética semelhante a das animações japonesas do estúdio Ghibli.

No entanto, as imagens utilizadas para treinar uma inteligência artificial generativa são, muitas vezes, protegidas por direitos autorais. Elas passam a ser catalogadas e a integrar uma base de dados em muitos casos sem a autorização de seus criadores. Isso está sendo discutido pelo PL 2338/2023, que propõe uma remuneração justa para aqueles que têm imagens nas bases de treinamento das IAs. O projeto propõe a regulamentação da inteligência artificial no Brasil, passando pelas mais diversas instâncias.
“A ideia é que a IA, ao utilizar a base de dados e ao utilizar a obra de alguém, ela remunere. E dá para fazer isso. Porque, por exemplo, o YouTube tem um algoritmo incrível que consegue catalogar se você está utilizando um trecho do filme da Marvel. O YouTube consegue saber e consegue dizer para a Marvel que está sendo utilizado um trecho do filme. Então, dá para monitorar, dá para fazer”, acrescenta Cecília.
“Ao que parece, não há um direito autoral sobre o estilo. Assim como não tem um dono do pop, do rock, do piseiro, não existe um autor do estilo, até porque isso inviabilizaria a criação”, diz Cecilia Rabelo, presidente do IBDCult
O secretário de Direitos Autorais e intelectuais do MinC, Marcos Souza, acompanha com atenção o PL 2338/2023, que foi aprovado no Senado e agora tramita na Câmara dos Deputados. “Ele, sem dúvida, é o PL mais importante e que está liderando as discussões porque tem uma comissão especial criada para debater ele”, diz o secretário.
Ele acrescenta: “é bom que se diga que não tem ninguém que é contra a inteligência artificial. É um avanço tecnológico que veio para ficar. Outra coisa é a IA generativa, que é aquela que primeiro para funcionar teve como seu insumo principal os dados e dentre os dados, os mais valorizados pelas empresas de IA são os conteúdos protegidos por direitos de autor e direitos conexos. Esse tipo de IA suscita essa questão da utilização dos conteúdos”.
O PL também interessa muito à União Democrática dos Artistas Digitais (UNIDAD), que surgiu visando a integração da classe e acompanhou de perto o percurso do PL no Senado. Carlos Ryal Dias, vice-presidente do movimento, acredita que no âmbito de direitos autorais, se aprovado como está agora, o projeto seria um dos mais avançados do mundo. Com o restante do texto, ele tem algumas ressalvas: “Até chegar à versão final, ele perdeu muito das garantias trabalhistas por pressão das empresas, como a proibição de demissão em massa por substituição de mão de obra”.
A questão do trabalho, impactado por uma adoção massiva da IA generativa pela sociedade, é uma das principais preocupações de Carlos e da UNIDAD. Ele compartilha que a queda de ofertas para ilustradores freelancer [trabalho autônomo] é perceptível. “[IA generativa] É um serviço para substituir mão de obra em qualquer profissão. Seja de tradutor, dublador, artista visual, músico, até chegar em engenheiro, advogado e médico”, afirma Carlos.
No caso de quem se mantém em um emprego fixo, Carlos conta que a ordem de usar IA generativa vem de cima, mesmo que não seja exatamente necessária ao longo do processo de produção. Ele cita uma dessas tarefas como exemplo: “na etapa de pré-produção, as ideias iniciais, você gera algumas ideias com inteligência artificial e depois você desenha por cima delas e vai corrigindo questões de perspectiva e tudo mais”.
Outra preocupação do vice-diretor é o impasse entre a velocidade com que as tecnologias avançam e o tempo necessário para debater as regulamentações: “[dois anos] não é nada em termos de a gente ter tempo de discutir essas mudanças. E as big techs ganham nisso, elas ganham nesse mercado sem legislação.”
Para além do PL, o secretário de Direitos Autorais já pensa em outras ações acerca do assunto: “Uma coisa que a gente vai ter que fazer infralegalmente, ou seja, por meio de decreto, portaria, instrução normativa que seja, é definir o que é e o que não é obra quando se usa inteligência artificial. Uma portaria que vai definir como que o órgão de registro deve agir perante o fenômeno da inteligência artificial.”
Para ele, o direito autoral estaria relacionado à influência exercida pela pessoa no trabalho: “Se o aporte criativo e o grau de interferência dela for tal que define o rumo daquele conteúdo, eu acredito que isso possa ser considerado como uma obra. Agora, se for apenas preenchimento de prompts [instruções para a IA], é difícil considerar que esse trabalho é um trabalho criativo”.
Por trás da máquina
Pensar essa tecnologia contemporânea como algo material é um dos maiores interesses do artista e pesquisador Bruno Moreschi. Ele explica: “Por mais que a gente esteja falando de um processo automatizado, a gente tem trabalho humano, a gente tem data centers [centros de processamento de dados] que estão gastando energia. E eu acho que a arte, especialmente essa arte conceitual, ela consegue se infiltrar um pouco nesses sistemas para poder chamar a atenção nisso.”
Esses centros de processamento de dados citados por Bruno concentram os computadores que dão vida às inteligências artificiais e as mantêm operando. Quanto ao trabalho humano, existem pessoas responsáveis por catalogar as figuras presentes em uma imagem que vai constituir um “dataset”, um banco de imagens de onde a IA vai ser treinada. Esses trabalhadores são o centro de um projeto de pesquisa artística de Bruno, intitulado Exch w/ Turkers [trocando com os Turkers].

No site de Bruno, um resumo do projeto o apresenta da seguinte forma: “A automação na IA só é possível pelo amplo emprego de força humana de trabalho. Então vamos ouvir os trabalhadores”. É essa a proposição do site construído para o projeto. Nele era possível conversar por mensagens de textos com pessoas que trabalham nas “tarefas de inteligência humana” importantes para a construção dos bancos de dados. Após o fechamento do site, foi construído um livro com algumas dessas conversas e fotografias do ambiente de trabalho dos “turkers” (funcionários da Amazon Mechanical Turk).
Montar um banco de dados exige um esforço tremendo e bilhões de dinheiro, especialmente quando nos referimos aos bancos de dados dos sistemas de IA generativa que o artista experimental e pesquisador Fabio FON associa a ideia de “mídia de massa”. O Chat GPT, Midjourney e outros sistemas de IA generativa das grandes empresas como Google são exemplos disso.
“Na televisão, mesmo no cinema, você tem muito essa questão do clichê, da repetição, da informação que muitas vezes precisa ser mediana para poder chegar a um público mais amplo. Acho que a inteligência artificial hoje, pensando especificamente nessas ferramentas de texto para imagem, estão um pouco nesse sentido de buscar algo que seja para um público que busca algo mediano, algo já convencionado, um clichê, um lugar comum”, explica.

Testar os limites desses sistemas e tentar produzir imagens não hegemônicas é o que Fabio tenta fazer em seu trabalho de web art AIꓷOႱ. A inspiração foi a dupla de artistas Jodi, conhecida por trabalhos disruptivos e inóspitos, a exemplo de sites onde tudo pisca e a ameaça de um vírus é detectada. “Eu questionei se seria possível que um sistema de inteligência artificial criasse um trabalho tão disruptivo quanto o trabalho dessa dupla”, diz.
O artista foi pedindo para que a IA elaborasse páginas com códigos HTML que dessem vida a esse site disruptivo. Acontece que a cada nova proposição de Fabio, o sistema pedia para que o artista tomasse cuidado porque o resultado poderia não ser agradável ao público: “o público pode não entender, o público pode não ficar no seu site”. Era justamente o que Fabio queria.
Para Giselle Beiguelman, “o grande momento da criação é quando você consegue sair do que era previsível”. E é isso que ela faz em seu trabalho Venenosas, Nocivas e Suspeitas. Nele, a artista negocia com a IA a construção de imagens que relacionam plantas malquistas pelo colonialismo com artistas, cientistas ou feiticeiras que com elas trabalhavam. O resultado são retratos especulativos que buscam representar essas mulheres na sua idade de morte, em grande parte bem avançada.
“[Esta tecnologia] é um interlocutor que também executa funções, mas que toma decisões. Isso é o contra e o a favor da inteligência artificial. Como é uma tecnologia capaz de tomar decisões e essas decisões são tomadas a partir de padrões, ela se torna tendenciosamente hegemônica por essa natureza, entre aspas, estatística que ela tem”, explica.

O retrato especulativo de Luzia Pinta, que foi escravizada em seu tempo, demorou quase seis meses para ficar pronto. A IA tinha dificuldade de construir a imagem dessa mulher negra em uma idade avançada, com as marcas que o terrível processo de escravização teria deixado. “As primeiras imagens [geradas] pareciam umas Naomi Campbells, felizes da vida”, lembra.
A professora defende que as big techs abram seus data sets, além de precisarem ter mais transparência. “O que a gente tem feito é ir se apropriando de pedaços de modelos comerciais”. Atualmente, ela tem trabalhado com programas open source em um projeto temático que ela coordena na FAPESP. “A gente está desenvolvendo uma série de tecnologias de arquivo para a catalogação de arquivos com IA e com visão computacional, e uma das nossas prioridades é que o código seja passível de ser reproduzido, melhorado, mas o que a gente faz e opera não é nada do zero”.
Até chegar no resultado desejado, a artista diz que é preciso passar pela “censura algorítmica”: “essas empresas se protegem de processos. A IA não tem visão contextual, é só relacional. Ela acaba abstraindo o trabalho que você está fazendo. Cada vez que eu mencionava tortura, escravidão, mulheres pretas, eu fui entrando num grupo de risco”. Ao testar o limite da IA, a artista recebia avisos de que estava contrariando as regras do sistema e que poderia ser impedida de utilizar caso continuasse. “Você vai aprendendo a mudar as palavras, a reconstruir”, explica.
A arte e o debate público sobre IA
Para Froiid, esses sistemas tecnológicos já estão impregnados na nossa vida, assim como a internet e as redes sociais. Ele não considera a relação que faz da arte com a IA uma experimentação: “Eu acho que é algo da vida. E esse algo da vida vai cair dentro da arte.”
Bruno acredita que museus podem ter o papel de trazer essas discussões para o debate público, provocando reflexões acerca do rumo dessa tecnologia na sociedade: “Tudo bem, é potente, dá para criar um monte de coisa. Mas o que a gente quer com isso? E a gente pode querer várias coisas, mas várias outras coisas a gente pode não querer. A gente pode querer cada vez mais memes realistas. Mas talvez a gente não queira não saber se o que a gente está assistindo é de fato uma matéria jornalística ou não”, diz.
Essa penetração desse tipo de arte em instituições como museus, para Giselle, não pode se dar devido a tendências de mercado, mas sim devido a emergência e criatividade que obriga esses espaços a repensarem, por exemplo, suas lógicas de catalogação, que muitas vezes não batem com as produções dos artistas. “Eu acho que a arte não é salvadora. Ela tem a capacidade de fazer as perguntas que ainda não foram feitas, ou fazê-las de outras formas. Tensionar o real dentro do qual estamos vivendo e com isso empoderar determinados vetores de mudança”, completa.