Axé pra quem é de axé, saravá pra quem é de saravá, aleluia pra quem é de aleluia, amém pra quem é de amém. A professora de teatro e doutora em Educação pela UFRGS Dedy Ricardo abre a roda, convida os alunos do Comunica, trilha formativa promovida pelo Nonada, a se sentarem no chão e saúda as diferentes crenças antes de dar início à segunda aula do projeto, cujo tema é oralidade, expressão e ancestralidade. Abrandando a timidez dos integrantes da trilha formativa, a arte-educadora os convida a se apresentar e pensar em uma qualidade sobre si mesmos usando a primeira letra do seu nome.
Nessa breve introdução, a temática da aula já se introduz, seja através da rememoração daquilo que cada um carrega consigo a partir de sua árvore genealógica, seja a partir do jogo de corpo que envolve as interações entre os presentes na roda, invocando oralidade e corporeidade numa trama conversacional que remete à ancestralidade. De nome em nome e de qualidade em qualidade, e numa ação coletiva, os integrantes foram aderindo à proposição da professora, que navegou nessa aderência para sedimentar os caminhos para trabalhar as culturas populares como metodologia pedagógica a partir do fazer teatral.

Oralidade, religiosidade, ludicidade, ancestralidade, memória e corporeidade são alguns dos valores civilizatórios afro-brasileiros – conceito formulado pela pesquisadora e educadora Azoilda Loretto da Trindade – que Dedy utiliza como forma de encontrar um ponto de partida para essa metodologia. De acordo com a professora, esses valores podem ser considerados como tecnologias pedagógicas ancestrais. Manifestações culturais populares como as rodas de samba, a capoeira, as batalhas de rima e as festas religiosas são expressões dotadas desses valores.
Pelas culturas de rua na escola
“A gente precisa olhar com atenção para as culturas que vêm das ruas e das comunidades, porque elas nos apontam pistas, nos dão caminhos para mudar a educação tradicional, essa educação encaixotada”, ressalta a professora Dedy. Para ela, o encontro entre cultura popular e educação é imprescindível na formação dos sujeitos, uma vez que a inserção dessa cultura no ambiente escolar permite uma educação mais identificável com o cotidiano de quem está sendo educado.
Num país em que apenas 11% das escolas fazem saídas culturais com frequência com seus estudantes, deixar de fora o universo cultural que reside nas comunidades é um desperdício de potencialidades. Segundo a pesquisa do Observatório Fundação Itaú, a maioria das atividades realizadas estão relacionadas com a área da Linguagem, com as festas folclóricas ou de culturas populares representando 48% do total. Para os professores entrevistados para a pesquisa, a cultura popular é uma das expressões artísticas mais utilizadas como forma de facilitar a aprendizagem, representando 79% das respostas.

O trabalho com a cultura popular como uma metodologia pedagógica perpassou praticamente toda a vida profissional de Dedy, que enxerga na cultura que vem das ruas e das comunidades uma potência transformadora. Desde 2015, ano em que ingressou no mestrado, a professora tem se dedicado a pesquisar e trabalhar questões que dialogam com a cultura do povo negro em interface com o Teatro. Dedy articula sua pesquisa por meio de práticas no ambiente escolar, no Colégio Aplicação da instituição, onde é professora.
A arte-educadora defende que a abordagem dos valores civilizatórios afro-brasileiros enquanto metodologia pedagógica dentro das escolas permitiria uma relação racial mais equânime nesses espaços, e consequentemente na sociedade como um todo. Para Dedy, os valores cunhados por Azoilda Loretto da Trindade são o grande caminho para uma virada educacional no Brasil, “mas a maioria dos professores nunca ouviu falar deles”.
“Na prática, essa abordagem em sala de aula depende da formação de professores. Nos cursos de licenciatura, precisa se ter acesso aos valores civilizatórios afro-brasileiros. Todos os cursos, de humanas e exatas. Porque só tendo contato com esses valores que esses professores poderiam entender que, ‘ah, na geografia a gente pode usar oralidade dessa forma; na matemática a gente pode usar circularidade dessa forma; a gente pode usar a musicalidade em artes visuais dessa forma’”, exemplifica.
Festas populares como metodologia
Jarlisse Nina da Silva é professora da Rede Municipal de Educação de São Luís, no Maranhão. A proximidade dos trabalhos desenvolvidos na educação com a cultura popular que predomina na cidade aproximou a professora dessa metodologia de ensino através da pesquisa, principalmente com os estudantes da educação infantil e dos anos iniciais.
Conforme ela destaca, o próprio contexto geográfico da escola, delimitada no centro da cidade, convoca o trabalho pedagógico realizado na instituição para um contato com a cultura popular. Manifestações culturais populares como o bumba meu boi e o tambor de crioula são uma constante na comunidade, principalmente no período junino. A culinária também é outra manifestação.
“A cultura popular, por sua natureza envolvente e familiar, tem o potencial de capturar o interesse dos alunos de maneira única. Ao incorporar elementos da cultura popular no currículo, os educadores podem despertar essa motivação, criando um ambiente de aprendizagem mais estimulante e participativo”, escreveu Jarlisse, em artigo publicado na Revista Ibero-Americana de Humanidades, Ciências e Educação. A professora detalha que a cultura popular fornece uma plataforma natural para conectar os conceitos escolares às situações reais. “Isso não apenas facilita a compreensão, mas também ajuda os alunos a enxergarem a relevância dos conteúdos para suas vidas”, escreve no artigo.

Na compreensão da professora, nas danças típicas do estado é possível perceber como as fronteiras entre o profano e o sagrado se transformam, com a fé se manifestando através da coletividade, da corporeidade e da oralidade, valores civilizatórios afro-brasileiros. “Especialmente aqui no estado do Maranhão, a expressão do tambor de crioula representa muito bem essa transformação de fronteiras porque articula cultura, religiosidade e identidade étnica, expressada por meio da dança circular das mulheres, do toque dos tambores feitos artesanalmente, do canto em ladainhas e da reverência simbólica ao sagrado. Isso constitui uma ritualística que rememora práticas de resistência e celebração da fé dos povos africanos e afro-brasileiros”, diz em entrevista ao Nonada.
O projeto O São João do Nordeste, realizado em junho de 2023 por uma escola vinculada à Rede Municipal de Educação de São Luís, foi o objeto de pesquisa do artigo escrito por Jarlisse junto de outras duas pesquisadoras. O projeto visava ampliar os conhecimentos dos estudantes sobre as festas típicas brasileiras, com enfoque nos festejos juninos da região Nordeste.
A professora acredita que “um trabalho pedagógico com a cultura popular também contribui para descolonização do currículo, reconhecendo e valorizando a pluralidade cultural brasileira como estratégia potente de ressignificação do espaço escolar”. A evasão escolar e demais formas de desvio de intelecto do aprendizado, como o déficit de atenção promovido pelas redes sociais, são desafios contemporâneos da educação brasileira que podem ser mitigados através dessa metodologia, aponta Jarlisse.
Com rodas de leituras, escuta musical, exibição de vídeos, barraca junina com venda de lanches típicos e seminários e oficinas com profissionais de diferentes áreas como Artes e Religião, o projeto permitiu que a escola articulasse as áreas do conhecimento definidas pela Base Nacional Comum Curricular, como a Linguagem, por meio da leitura de textos como poemas, cordel e receitas típicas; Matemática, através da habilidade de interpretação e da análise de dados; Ciências da Natureza, ao trabalhar receitas típicas, as unidades de medida e a influência do Meio Ambiente para a escolha de ingredientes, como o milho e a mandioca; e as Ciências Humanas e o Ensino Religioso, por meio de danças como bumba meu boi, cacuriá e quadrilha. Tudo isso explorando as maiores festas juninas que acontecem na região.
Para Jarlisse, o trabalho interdisciplinar do projeto, ao levar a cultura popular para dentro do ambiente escolar, colabora na luta por uma educação antirracista e intercultural. Os valores civilizatórios afro-brasileiros, que são parte fundamental da prática pedagógica da professora Dedy Ricardo, também integram as perspectivas pedagógicas de Jarlisse. A educadora observa que esses valores foram articulados ao longo das atividades promovidas pelo projeto O São João do Nordeste.
Conhecer as manifestações culturais populares e descobrir suas histórias permitiu aos alunos que eles refletissem sobre suas origens ao indagar, de acordo com as próprias palavras deles, ‘como elas vieram parar aqui no Brasil? Por que eram proibidas? Por que o milho faz parte de grande parte das receitas do período junino?’”, pontua a professora.
Peneirando até fazer poesia
“Passa a peneira menina, menino vem peneirar/ Diga um verso com rima, quando a peneira parar/ Peneira, peneira, peneira, passar/ Peneira, peneira, quando a peneira parar.” Esses são os versos cantados no ritmo de um tambor bumbo legueiro na brincadeira da peneira, idealizada pela diretora de teatro Jacqueline Baumgratz, que a professora Dedy Ricardo realiza na aula com os integrantes do Comunica, projeto do Nonada que forma lideranças periféricas em comunicação cultural.

Em roda, uma peneira que guarda poemas dobrados em papel e escritos em quadras populares, com o segundo verso rimando com o quarto, passa de mão em mão. Quando a canção para, também para a peneira, e quem a segura retira um poema e vai até o centro da roda declamar.
A partir da brincadeira, Dedy articula quase todos os valores civilizatórios afro-brasileiros, como a memória, a circularidade, a musicalidade, a ludicidade, a ancestralidade, e a corporeidade, razão pela qual escolheu a brincadeira para fazer com os alunos. Ao longo da aula, a palavra falada (e rimada, remetendo às manifestações artísticas afrobrasileiras contemporâneas como o slam, o rap e o hip hop) assume o protagonismo.
A dinâmica destaca os saberes tradicionais que se caracterizam pela oralidade, pela aproximação de um povo com o intuito de ouvir, partilhar, se tornar guardião e guardiã de um conhecimento. As reflexões sobre ancestralidade, expressão e oralidade, tema da aula, são promovidas a partir desses valores, intimamente associados à cultura popular.
Ao final da aula, depois que o corpo e a palavra circunscreveram no tempo impressões indeléveis por meio de brincadeiras, os ânimos do corpo de quem participou não estão exauridos, mas pelo contrário. A salva de palmas faz o ambiente vibrar e o que fica é a vontade de reabrir a roda e começar tudo de novo.