Saravá! Prepare o corpo, porque na roda vamos entrar. Na obra de Luiz Rufino, não há educação sem gingar. O aprendizado é na Encruzilhada, precisa atravessar. Dúvida é importante. Deixe o corpo vacilar. Coloque o ouvido no chão. Deixe a terra falar.
Luiz Rufino é autor de diversos livros, entre eles Pedagogia das Encruzilhadas (Mórula, 2019), Vence-Demanda: educação e descolonização (Mórula, 2021) e o mais recente Ponta-Cabeça: educação, jogo de corpo e outras mandingas (Mórula, 2023). Carioca criado no subúrbio, filho de pai e mãe cearenses, neto de vaqueiros e lavradores, ele tem a roda, as esquinas e os terreiros como lugar de formação. Em parceria com o historiador Luiz Antonio Simas, também já escreveu Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas (Mórula, 2018) e Flecha no Tempo (Mórula, 2019), sempre na interlocução entre os saberes afro-brasileiros e a educação.
Ao ouvir o professor, vozes diversas ecoam junto, como as de Ailton Krenak, Leda Maria Martins, Antônio Bispo dos Santos e Paulo Freire. Em seus escritos, escuta-se também os mais velhos e os mais novos, sem fronteiras delimitadas entre eles. Nesta entrevista vamos conversar sobre seu livro publicado em 2023, além de saudar o corpo. Vamos Saravar!
Nonada – Em Ponta Cabeça, por que você traz o corpo para o centro da roda?
Luiz Rufino – O Ponta Cabeça tem como principal argumento que a educação é um fundamento corporal. Me parece que é um argumento que recorre a uma série de experiências de saber que ao longo do tempo foram descredibilizadas. A gente vem de uma tradição marcada por violências sistemáticas no bojo da colonização, da catequese, da própria hipertrofia da racionalidade moderna ocidental, que recusam o corpo como lugar de conhecimento. Recusam porque, de certa forma, é extremamente interessante para um projeto que quer fazer do corpo um lugar de dominação político, ideológico, e principalmente, castrador de diferentes potências que se inscrevem nessas culturas que contrariam a lógica de dominação colonial.
Então, o Ponta Cabeça vai reivindicar o corpo como fundamento educador e vai traçar em alguns ensaios a possibilidade de defesa desse argumento, partindo de uma interlocução com diferentes práticas de saber – recorre à capoeiragem, à cultura dos quintais, à cultura das matas, às crianças, à dimensão da brincadeira como uma política de vínculo e proteção comunitária. Por isso que o livro traz como mote o “jogo de corpo”, uma relação onde o corpo opera sempre em uma frente dupla de defesa e ataque – como cantam os capoeiristas. Também traz em seu título “as outras mandingas”, que são essas inúmeras práticas de saber que o modelo dominante sequer reconhece, ou até, conhece. Por não reconhecer, seja por arrogância ou por uma política de inferiorização, essas práticas de saber vão escapando, e vira e mexe, dando umas rasteiras.
Nonada – Você menciona a “educação como capoeiragem”, assim como a “educação como roça”, e até mesmo “a educação com/como Exu”. Por que não é uma metáfora?
Luiz Rufino – Não é uma metáfora. É importante sua pergunta, porque é fundamental que a gente ressalte que no mundo há inúmeras experiências de saber, que são, primeiramente, estéticas, na dimensão do sentir e na produção de presença. Isso se reflete na dimensão da existência e do conhecimento. Essas coisas emergem como elementos constitutivos do mundo – esses vários mundos que estão aí em choque, ou em relação. Por exemplo, eu sou filho de pais nordestinos e cearenses. Por parte de mãe, uma família de lavradores, por parte de pai uma família de vaqueiros. Quando a gente pensa na roça, ela tem uma dimensão comunitária, ela é uma presença. Nesse livro há, inclusive, um diálogo com meu pai, em que ele fala que quem faz a roça é o próprio tempo. Quem faz a roça são as estações. A roça se faz. Na verdade, aqueles que pegam a labuta do trabalho, os humanos, estão ali como espécie de co-autores da roça.
Então há uma dimensão da roça que implica uma experiência que transborda uma ideia de vida centrada somente no humano. Quando eu trago essas questões, seja da capoeiragem, da roça, da rua, o que eu estou falando é que há uma dimensão da vida que é muito mais plural. A gente tem ainda uma ideia de pensar a educação centrada exclusivamente nos ditos humanos. Há um esforço para deslocar a ideia de um processo educativo e diferentes formas de aprendizagem que escapam do humano, ou que o colocam em uma relação de intimidade com a vida expressa em outras formas.
Nonada – E fico pensando que a própria ideia de reduzir a um jogo de palavras, faz com que se negue a existência concreta dessas expressões de saber no mundo.
Luiz Rufino – Percebo até que há uma tendência, um esforço, para fixar esses saberes como metáforas. E isso diz mais sobre a nossa limitação e a nossa arrogância em percebermos como metáfora ao invés do que eles são realmente. É uma arrogância etnocêntrica que centraliza a ideia de conhecimento como apenas aquilo que a gente consegue alcançar. Por exemplo, quando as comunidades de terreiro dão de comer a uma mata, a um rio, isso não é uma metáfora. Isso é, de fato, uma experiência comum, comunitária, política e ancestral daqueles que o fazem.
Nonada – Pensando no labor da roça e comunidades de terreiro, os dois compartilham um outro pensar no tempo. Os dois acontecem na continuidade no tempo. O que educação tem a ver com tempo?
Luiz Rufino – Esse livro tem um passeio que dialoga com as crianças, com os velhos, com os mortos, com a terra, onde a dimensão de tempo se desloca para além da narrativa linear. Há interlocuções importantes no campo das ciências humanas, como o trabalho da professora Leda Maria Martins, o do Antônio Bispo dos Santos (Nêgo Bispo), o próprio trabalho do professor Muniz Sodré e as reflexões de Ailton Krenak. Eles vão nos ajudando a pensar a questão do tempo. Para além dessas contribuições, há uma experiência vivida de muitas comunidades, que vão estabelecendo ritos cotidianos e práticas educadoras que percebem esse tempo como algo mais amplo.
Nonada – No livro, você fala sobre “uma educação revolucionária como um menino, e firme como a pisada de um velho”. Qual a importância do encontro entre os mais novos e os ancestrais?
Luiz Rufino – Isso não é uma coisa nova no campo da literatura da educação e também de diferentes tradições plantadas e roçadas nesse lugar que chamamos de Brasil. Mas eu tenho tido um certo chamego com a ideia dos meninos e dos velhos. Até porque eu tenho trabalhado na formação de professoras – mulheres em sua maioria – e tenho percebido que a formação precisa estar atravessada por essas duas agências, que tecem muita intimidade. Isso reconta também uma experiência minha. Eu sou uma criança – não vou falar que fui – criada no quintal, nos subúrbios, com a presença de muitos velhos. Eles estavam sempre presentes. Me parece que é muito nítido, no sentido mesmo da força e da grandeza da presença, como essa fronteira entre ‘ser menino’ e ‘ser velho’ é muito estreita, principalmente quando se brinca e se cultiva rituais cotidianos.
Então, me remonto a esse tempo de estar menino no quintal, ou, de repente, o tempo em que as comunidades de terreiro vivem, onde, muitas vezes, o mais novo pode ser o mais velho. Nas rodas de capoeira, os mestres estão lançados a uma condição sacana de uma brincadeira, uma traquinagem de moleque. Me parece que essa dimensão de ‘onde o menino habita no velho’ e onde ‘o velho habita no menino’ é uma força dessas tradições que têm a ancestralidade e a comunidade como firmezas.
Isso garante um cultivo da continuidade, e talvez isso seja uma política de vida, em um mundo dito como ‘padrão’, em que o tempo é apenas da produção, consumo e descarte. Essa dimensão de uma política de vida plantada na continuidade desse ciclo, onde há todo tempo se está fazendo uma volta, onde se brinca com a roda, onde se dá uma volta ao mundo, traz as crianças e os velhos para cena. Tenho conversado em sala de aula que a gente ganharia muito com a presença dessas crianças e velhos como grandes protagonistas de nossos processos formativos.
Nonada – Interessante que você fala de “ser criança” no presente, de manter viva a criança. Em alguns diálogos de Ponta Cabeça, em que você faz perguntas aos mais velhos – como ‘para que serve o Boldo?, ou então ‘o que você vê na mata?’, parecem frases que sairiam de uma criança. Você sempre foi curioso? A sua criança que brincava no quintal já gostava de fazer perguntas e se inquietar com as respostas?
Luiz Rufino – Acho que mais ou menos. Isso existe, em mim e em nós, mas se eu te disse que existe sempre, de uma forma muito livre, eu vou estar mentindo. Eu sou uma pessoa que passa por uma formação acadêmica, que aquebrantou muito isso. O quebranto é um termo que eu tenho trazido para as minhas análises, como essa espécie de perda de força vital. Por mais que eu tenha essa vontade de estar sempre reivindicando essa brincadeira, ela é, ao mesmo tempo, uma dança de guerra como a capoeira. A tempo todo estou batendo na ideia de fuga, de batalha, ao ponto que vou muito fácil da kizomba para brincadeira, e da brincadeira para kizomba. Existe também disputa. A educação é um trabalho de disputar mundos. Não acho que me cabe escolarizar ninguém. Pelo contrário, nem quero. Não estou advogando por uma escolarização em massa, porque isso o projeto moderno, ocidental e colonial já fez. A catequese tem feito.
Quando eu penso nos termos freireanos, de uma educação como prática de liberdade, estou pensando, capoeiristicamente, em um jogo de corpo. É importante falar que a gente é muita coisa, somos formados em muitos lugares, então eu permaneço muito mais tempo no universo da capoeira do que no universo formal e acadêmico de educação. Eu passo muito mais tempo envolvido com algumas dimensões da cultura e da cotidiano, então essas coisas aparecem muito fortes no que estou pensando e no que estou escrevendo. E não as coloca como verdade, pelo contrário. São inscrições do sentir e do ser.
Nonada – Como o jogo de corpo da capoeira nos ajuda a pensar no jogo de corpo da educação?
Luiz Rufino – Tenho me dedicado a um tempo ao que eu prefiro chamar de crítica ao colonialismo, recorrendo a uma tradição mais antiga que observa esses acontecimentos e se debruça a pensar nesse problema. Muitas vezes a gente pensa a educação como uma abstração, como uma mudança de consciência. Nós ainda carregamos a ideia da educação como promessa, conversão e salvação. – não à toa, é um indicador da nossa experiência colonial. São três elementos muito fortes no discurso sobre educação.
Se a educação se dá como um acontecimento radicalizado na vida, ela vai se expressar no corpo e na corporeidade. O Frantz Fanon chamou muito bem atenção na sua análise sobre o problema colonial que o sistema radicalizado na violência e no terror vai ter o corpo como primeiro lugar de investimento de ataque. Então, a educação não entra meramente como salvação, mas primeiramente como um lugar de afetação. E de afetação do corpo. Me parece que a gente tem feito muitos esforços para negar isso, ao ponto que uma sala de aula bem sucedida é, muitas vezes, lida pela capacidade de controle dos corpos. Não à toa se faz uso do termo ‘domínio de classe’, que significa uma percepção do quão apaziguado é aquele ambiente. Na verdade, há uma dimensão da educação que se dá em uma causticidade, na inscrição de dúvida, que é comunicada a partir do corpo. Isso eu falei bastante na Pedagogia das Encruzilhadas.
O Ponta Cabeça continua sendo um livro que está perseguindo uma dimensão entre educação e o contrariar a colonização. Ou pensar, como foi dito lá no Vence Demanda que a principal tarefa da educação no Brasil é descolonizar. Quando eu digo isso, não me interessa pensar se é ‘descolonial’ ou ‘decolonial’, me interessa que até os dias de hoje a colonização permanece como um ativo, e que no cotidiano isso está sendo sentido no corpo, nas comunidades, nos rituais, nas práticas de saber comuns. E, de certa forma, ela precisa de uma resposta, e quem vai dar essa resposta é o próprio corpo. Por isso, a capoeira aparece como um elemento que vai fiando grande parte dessas reflexões. A capoeira é uma invenção contrária ao paradigma colonial, e que se inscreve como uma prática de batalha. Ela não só faz do corpo uma arma, mas faz do rito um lugar de cuidado desse corpo.
Não à toa a capoeira é acolhida como força de cuidado terapêutica de cuidado para muita gente, inclusive para as crianças. Porque entende que ali é uma esfera de brincadeira. Então, veja como as invenções são sofisticadas, especialmente a capoeira que é uma invenção negro-africana na diáspora. Ela entendeu que precisa preparar esse corpo para dar cabeçada, pernada, para desestabilizar aquele outro que tenta dominar. Ela construiu uma inscrição do ser em ginga, que é o tempo todo vacilante. Eu estou falando com você e estou o tempo todo me balançando, porque é encarnada. Ao mesmo tempo, a capoeira entendeu que brincar e ritualizar a vida é também uma forma de passar o pé nessa lógica aquebrantadora.
Nonada – Você pode contar mais sobre essa ideia de quebranto, de olho grande colonial, que aparece em suas obras?
Luiz Rufino – Tenho tido muita dificuldade com quem pensa a colonização como algo datado, ou que pensa a descolonização como um passe de mágica. Como uma coisa que vai acontecer do dia para noite. Como se fosse, meramente, um problema conceitual. Não é, pois é um problema de guerra, de batalha. Me parece que os capoeiras, os pajés, as ialorixás, as crianças, as professoras do cotidiano entenderam isso. E, muitas vezes, há um debate que não entende, porque descorporifica o problema. Quando eu trago o quebranto colonial como uma categoria é um desdobramento do que lá atrás eu já havia chamado de carrego colonial, é também para dimensionar como isso se corporifica, como isso se somatiza no corpo.
Nonada – Para ti, qual a importância da dúvida na educação? O que pode um corpo vacilante?
Luiz Rufino – A dúvida, para mim, é fundante do processo educativo. Isso faz com que, lá na Pedagogia das Encruzilhadas, a gente perceba que tudo que reside como força constitutiva do fenômenos educativo está presente também em Exu. Por isso, Exu como educação. Na Capoeiragem, há até uma nomeação ativa, dada pelos capoeiras, que é a ideia de “negaça”. Você negacia, ou seja, você diz não dizendo e você não diz dizendo. Você o tempo todo opera em uma esfera profundamente comum a uma filosófica de Exu, um pensar com Exu, que é buscando um terceiro espaço. Parte do princípio que em um mundo ocidental, que opera o tempo todo em binarismos, em uma lógica dicotômica, você está o tempo todo passeando e atravessando por duas esferas para se ocupar com uma terceira.
Quando eu converso sobre o Ponta Cabeça, eu estou tendo que me movimentar. Em algum momento do livro, em que eu falo sobre a dúvida, eu tenho conversado com as pessoas gingando. Algumas entendem como uma alegoria, mas não é. A ginga comunica para gente não um pisar de um lado, e um pisar de outro, mas exatamente aquilo que pode acontecer no entre. O que pode acontecer é inapreensível, indeterminado.
Como registrado por Mestre Pastinha, a capoeira é inalcançável ao mais sábio dos capoeiristas. Por quê? Porque ela está sempre em uma constante prática de criação e recriação no entre. É no diálogo com o Mestre Cobra Mansa, e com o professor Eduardo Oliveira, que chamamos isso de ‘ser em ginga’. Esses inventores da capoeira, as pessoas pretas na diáspora, principalmente no Brasil, constituíram uma criação no entre, negando a condição de ser um desvio, reescrevendo-se quase como um pêndulo, e operando nessa fresta, nesse vazio onde o outro não alcança. A capoeira não só narra isso para gente, como canta através da ginga, do rolês, das esquivas, dos ataques,. “Oi, sim sim sim, oi não não não. Hoje tem, amanhã não. Trabalha o tempo todo com essa esfera da contradição.”
Nonada – É como se Ponta Cabeça fizesse também um movimento de retorno à Pedagogia das Encruzilhadas. Como se andando sempre voltasse a Exu.
Luiz Rufino – Esses livros todos conversam. É interessante observar o pensamento que está por trás. O Pedagogia das Encruzilhadas é um livro que se desdobra de uma tese de doutorado, onde Exu é o grande mote da investigação dessa pesquisa. Mas tem uma defesa que Exu fundamenta um conhecimento. Ele é o conhecimento. Pensa-se com Exu. Tem muitas teses, muitas pesquisas. Ele talvez seja o Orixá mais estudado no mundo. No Brasil, há produções fantásticas que investiram sobre o questionamento de Exu ou da própria encruzilhada.
Eu tenho pensado a encruzilhada como sendo o corpo de Exu. Então, o trabalho do professor de Wagner Gonçalves, do Mestre Didi, da professora Leda Maria Martins. Houve uma explosão em diferentes áreas. Na Pedagogia das Encruzilhadas, há uma defesa de que Exu é o autor de sua própria teoria. E quem sabe disso, até melhor do que os pesquisadores, é quem pratica Exu. Nós estamos conversando aqui em uma segunda-feira e, certamente, alguém desse Brasil já acordou convocando Exu a se inscrever no tempo.
O pensamento de Exu está sendo praticado em seus ritos comuns, seja na cachaça que se cospe, seja na cantiga que vai se dar daqui a pouco, seja no galo que ele vai comer. Essa é uma grande defesa presente em meu trabalho: Exu é conhecimento. A capoeira é uma produção sofisticadíssima de conhecimento, é uma filosofia negro-africana na diáspora. Implica sobre questões profundas no campo da cognição, da educação, da ética, da ancestralidade. O próprio Ponta Cabeça traz uma experiência da roça, dos vaqueiros, do samba – inclusive com Paulinho da Viola trazendo um debate sobre educação. Ele diz: “As coisas estão no mundo e eu preciso aprender.”
Me parece que a gente tem um cenário muito rico, uma mata. Esse livro não à toa vai para diferentes lugares. Ele vai para a roda, para o sambaqui, para o chão. Tem uma convocação profunda de a gente pensar isso tudo como uma floresta – mais uma vez, não como uma metáfora, mas em sua dimensão de signos que vão se compondo, fazendo e performando um jogo de corpo. Como diz a avó no livro, se você planta o umbigo no chão, é porque você é chão. Você é terra e a terra é você. Quando você quer saber quem são os seus mais velhos, você tem que perguntar a terra, porque ela também é a mais velha.