A revolução do brincar: coletivos resistem unindo arte, cultura popular e brincadeira

Laura Galli

Fotos de capa: Tuane Eggers/Bloco da Laje

A palavra brincar, na etimologia, vem do latim vinculum – ligação, vínculo, consigo e com o outro, com o mundo. Uma experiência do espaço tempo diferente daquela organizada cronologicamente no cotidiano. Uma atividade que não só prepara um caminho para a vida, mas que é a vida mesma, no presente. 

Brincar, para a pesquisadora Lydia Hortélio, é afirmar a vida, é viver em plenitude e liberdade. Educadora e especialista na área da etnomusicologia, Lydia é uma guardiã da cultura da infância. Seu trabalho gira especialmente em torno das cantigas infantis do interior do Brasil, que dão ritmo ao brinquedo, ao ato da criança entreter-se interagindo com pessoas e objetos. Lydia busca a educação pela sensibilidade e pelas manifestações do corpo, muitas vezes ignoradas na experiência de ser adulto. Jogos, cantigas de roda, brincadeiras, hábitos que com o passar dos anos vamos abandonando, o que faz com que muitas vezes se entenda o brincar como atividade exclusiva das crianças. 

A revolução que falta, para a pesquisadora, é a revolução da criança, da brincadeira, e brincar é sobretudo liberdade de tempo, espaço e criação, independente da idade. Brincar desperta nosso lado mais criativo e investigativo e não há nada mais sério do que uma criança brincando, conforme o filme Tarja Branca – A Revolução que Faltava, com direção de Cacau Rhoden e produção da Maria Farinha Filmes. O psicanalista Ricardo Goldenberg, no documentário, comenta que se seriedade é permanecer focado e levar alguma atividade até as últimas consequências, então quando uma criança brinca é um momento profundamente sério. A pedagoga Maria Amélia Pereira complementa: “a criança não vive para brincar, brincar é viver”. 

Segundo Raquel Grabauska, atriz e diretora do grupo Cuidado Que Mancha, brincadeira e arte estão relacionadas naquilo que há de mais básico, que “constrói quem a gente é”. Ao observar o filho mais velho “brincar de fazer arte”, Raquel percebeu mais de perto a criação de relações e a vivacidade que isso proporciona. Para ela, “a brincadeira promove o prazer de descobrir o fazer artístico” com foco no processo sem necessariamente se preocupar com resultados. Esse pensamento permeia a relação do filho com a arte, mas já estava presente nas criações do grupo Cuidado Que Mancha.  “Brincar, estar vivo no palco é a força da nossa arte. Experimentar é o caminho mais bonito para qualquer artista, se permitindo viver os processos. E isso é para a vida, poder rir de si mesmo, não se levar tão a sério, e poder achar o prazer das coisas”, acredita Raquel.

O Cuidado Que Mancha é um grupo de teatro e música em atuação há mais de 20 anos em Porto Alegre, com inúmeros espetáculos para crianças, além de livros e CDs/álbuns publicados. A partir da vontade de aprofundar a relação com o público infantil e com a comunidade de maneira geral, surgiu a ideia de abrir um espaço próprio, que as crianças pudessem frequentar e brincar de fazer arte: pintura, teatro, música e o que mais quiserem experimentar, em que “as crianças não percebessem o fazer artístico como uma tarefa, e sim como algo natural, uma possibilidade, uma continuação da brincadeira”, diz Raquel. As experiências do grupo de teatro, da observação dos filhos e do Espaço Cuidado que Mancha se cruzam: a forma de ver o público infantil no teatro influencia o trabalho com as crianças que frequentam o espaço, e a experiência da brincadeira com essas crianças possibilita e gera novas criações artísticas.  

O Bando de Brincantes atua em diversas frentes, produzindo espetáculos teatrais, oferecendo também oficinas e palestras para educadores (Foto: Christian Benvenuti)

A preocupação com o público infantil também aparece nas atividades do Bando de Brincantes, que tem a atriz, diretora e pesquisadora Viviane Juguero como figura central. Ela chama a atenção para as especificidades do pensamento infantil, com o que chama de lógica lúdico infantil, que cria uma coerência pluriperceptiva, multisignificativa e socioemocional. Ou seja, reforça o aspecto essencial da arte feita para as crianças respeitarem sua linguagem, convidando para o lúdico. O Bando de Brincantes atua em diversas frentes, produzindo espetáculos teatrais, oferecendo também oficinas e palestras para educadores, além de livros e produções audiovisuais. Viviane acredita que a criação artística pode se basear nas distintas brincadeiras para dialogar com os distintos públicos Para ela, o adulto também brinca, mas de um jeito diferente: “brinca com as ideias, com metáforas, com o corpo… a forma de brincar vai se modificando”. Viviane acredita que é fundamental que as pessoas sigam brincando.

As fronteiras entre brincadeira e arte são permeáveis, e, para Viviane, ambas as atividades trabalham com a forma como a gente se compreende no mundo. “Como a gente se relaciona com as emoções, os valores e os referenciais que a gente constrói no mundo. E, nesse sentido, ambas tanto podem potencializar novas formas de percepção quanto podem reforçar o status quo. Uma brincadeira que reforça ideias racistas, xenofóbicas, de preconceito de gênero, não é uma brincadeira positiva. A arte e a brincadeira refletem a sociedade ao mesmo tempo que propõem transformações, ou seja, elas podem também propor novos modos de emocionar com base em distintos referenciais”, diz.  

Seu trabalho de pesquisa – atualmente, Viviane realiza um pós-doutorado na Noruega –, assim como as criações artísticas do Bando de Brincantes, parte da investigação da cultura da criança. Cantigas populares, jogos e brincadeiras são o motor para a criação artística. A dramaturgia das peças é baseada em cantigas de roda, brincadeiras infantis, brinquedos e jogos populares. A escolha do termo “brincante” também está associada ao folclore popular e às construções tradicionais, com um olhar de entendimento de que as culturas tradicionais estão vivas e pulsantes junto a todas essas possibilidades. 

Os brincantes das festas populares 

Em atividade desde 2004, o grupo Paralelo 30 pesquisa e vivencia manifestações da cultura popular utilizando a dança como foco (Foto: Paralelo 30)

Brincar é, em algumas concepções, a essência da vida humana. A bailarina e coreógrafa Andrea Jabor diz no filme Tarja Branca: “A grande riqueza da cultura popular é que é a chance de você ter uma segunda infância”, porque são inúmeras as festas populares brasileiras em que se brinca. Em festejos como o carnaval, o jongo, as congadas, o frevo, o maracatu, as festas de São João, entre outras, quem participa é chamado de brincante. A palavra pode designar quem assiste, quem toca instrumento, quem dança, quem canta, quem carrega estandarte. Brincante é quem vive a experiência da festa em todas as suas dimensões e que se diverte na relação com os outros.

Para a pesquisadora Laura Bauermann, integrante do Grupo de Brincantes do Paralelo 30, a relação entre a brincadeira das crianças e a atividade dos brincantes das festas populares está na ideia de que ambas são experiências extracotidianas que acontecem num momento específico e, citando o filósofo alemão Hans-Georg Gadamer, diz que a festa é uma experiência por onde a gente caminha sem querer chegar ao final. “E a brincadeira da criança”, complementa, “tem isto: tudo o que existe está ali no momento da brincadeira. Quando uma criança brinca, não está pensando em terminar para fazer outra coisa, está vivendo plenamente aquele momento. As festas populares nos proporcionam esse estado de arte, essa sensação de viver o tempo presente sem dar conta do que vai acontecer depois, é uma oportunidade de viver aquele presente com a coletividade, o movimento, a alegria, o prazer, tudo isso de uma forma inteira”. 

O Grupo de Brincantes do Paralelo 30 é um projeto de extensão da Escola Superior de Educação Física, Fisioterapia e Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenado pelo professor Jair Felipe Bonatto Umann. Em atividade desde 2004, o grupo pesquisa e vivencia manifestações da cultura popular utilizando a dança como foco, como por exemplo o jongo, o batuque de umbigada, o maculelê, o baião, danças de povos indígenas como Guarani, Munduruku, Kalapalos, entre outros. A atuação do Grupo de Brincantes do Paralelo 30 busca proporcionar a vivência da diversidade das culturas populares brasileiras, destacando a importância da manutenção dessas manifestações e da sua articulação com as reflexões produzidas no ambiente acadêmico. 

O ator e palhaço Márcio Libar, em depoimento sobre o papel dessas festas no imaginário popular brasileiro, afirma que “se você perguntar a esse povo o que eles pensam sobre o mundo, eu não sei o que vão dizer, mas vão dizer cantando, dançando, com penas coloridas, com plumas, com cores, é dessa forma que vão dizer.” Essa forma festiva e brincante está presente em inúmeras manifestações culturais do Brasil, e contar histórias brincando é uma de nossas grandes riquezas.

Deixa brincar!

O Bloco da Laje utiliza o carnaval como uma linguagem para manifestar a arte na rua em uma ocupação criativa e saudável. (Foto: Tuane Eggers/Bloco da Laje)

Criado em 2011 por artistas em sua maioria do teatro, em um contexto de crescimento de ocupações de espaços públicos, o Bloco da Laje utiliza o carnaval como uma linguagem para manifestar a arte na rua em uma ocupação criativa e saudável. A atriz, cantora e brincante Martina Fröhlich comenta que o Bloco da Laje pensa no cortejo como uma obra com narrativa, com a preocupação de contar uma história da forma mais alegórica, colorida e vibrante possível, usando de recursos cênicos, atuação, coreografia e brincadeira, sem deixar de lado seus posicionamentos políticos sobre a sociedade em que se insere. 

O Bloco da Laje oportuniza a experiência de entrar na brincadeira não sendo mais criança. Para participar, basta se permitir, porque “todo mundo tem a brincadeira dentro de si”. Nas palavras de Martina, para ser brincante na Laje não tem pré-requisito, a proposta é que todos participem e que seja feito um grande contágio pela brincadeira. A escolha dessa palavra não é ao acaso e vem carregada de simbolismo durante a pandemia de coronavírus neste maio de 2021 em que esta reportagem está sendo escrita.  “Em meio a tantas notícias ruins, ideias equivocadas, visões violentas da realidade, atitudes antivida, o que a gente quer contagiar é o contrário, é a vida, é o respeito por nós enquanto coletivo de cidadãos e por cada indivíduo.” 

Brincar é criar vínculos, se permitir ser o que se é e se permitir criar. A brincadeira está presente em diversas manifestações culturais brasileiras e pode ser um instrumento importante para criar arte e para sobreviver em tempos difíceis. O brincante tem o corpo como ofício da alegria e a alegria consciente, sem perder a indignação, pode ajudar a refletir sobre a realidade e estabelecer trocas afetivas. Brincar é coisa séria porque possibilita imaginar outras realidades e vivenciar a liberdade plenamente. E retomando Lydia Hortélio: “todo mundo tem um corpo com uma criança dentro, deixa ela brincar”.

Esta reportagem integra a Revista Nonada: sobre viver de cultura. Saiba como adquirir sua edição. 

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