Um manifesto pela Amazônia: em Belém, Arraial do Pavulagem sai às ruas pedindo proteção às florestas

Tradicional boi bumbá paraense intensifica temática socioambiental que já estava presente nas preocupações dos brincantes

Alicia Lobato, especial para o Nonada*
Foto: Filipe Bispo/divulgação

Vem chegando mês de Maio
E eu já vou me preparando
Com bandeiras, fitas, flores
Com as cores do arco-íris

Vou serenando e imaginando o boi azul
Balanceando com seu batalhão da estrela
E pelas ruas de Belém vira um folguedo
Vira um tesouro da cultura popular

Um tesouro da cultura popular. É com esses versos tão famosos na boca do povo paraense que Belém vivencia os festejos juninos, ao som do Arraial do Pavulagem. Já são mais de 35 anos saindo do imaginário da população e indo para as ruas da capital paraense. Os arrastões acontecem em dois grandes momentos na cidade, primeiro durante o período das comemorações juninas, entre os meses de junho e julho e durante o Círio de Nazaré, em outubro. 

Hoje, já são milhares de pessoas participando do cortejo, seja como público ou brincante – como são conhecidas as pessoas participantes do corpo musical, de dança ou de artes circenses, como “pernaltas”. Misturando diversos ritmos musicais, o Arraial tem marcado a história paraense com as suas fitas coloridas nos chapéus de palhas e o arrastões com a presença do Boi Pavulagem. 

Neste ano, o Arraial traz o tema “Arraial da Floresta” para as ruas, com o objetivo de celebrar a aproximação da cultura popular com a natureza, um lema que também remete a outro momento que a capital paraense vai passar. A 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP30), acontece em novembro de 2025, em Belém, e tem sido um marco para movimentos, coletivos e organizações culturais que têm aproveitado o momento para também discutir sobre o papel da cultura na luta contra a crise climática.  

Na nova edição do Arraial, o objetivo desta vez será promover ações durante os dias de cortejo que incluem oficinas de plantio e reaproveitamento de materiais recicláveis na produção de instrumentos musicais. Mas a preocupação com as florestas não é de hoje. Além das ações, o grupo tem discutido sobre o tema em diversas edições do cortejo, trazendo a pauta ambiental para as ruas e para o público dos arrastões. Uma nova forma de alertar a população sobre o tema.  

Mulher vestindo camiseta azul segura chapéu de palha com fitas coloridas me meio a multidão de brincantes na rua
Foto: Filipe Bispo/divulgação

E para além do Arraial da Floresta, o grupo também pretende trazer um novo formato pensando na COP, um arrastão especial COP30 que acontecerá em novembro na cidade, que vai ser o “Cordão do Peixe-boi”. O cordão já esteve presente em alguns festejos no carnaval, e dessa vez  trará a temática ambiental ainda mais forte. O peixe-boi surgiu há dez anos atrás e costumava sair às ruas  durante o período de chuva na capital, também conhecido como inverno amazônico. Junior Soares, um dos fundadores do Arraial, declara que foi natural trazer ele novamente em um ano marcado pela COP30, como analisa:

“Vamos intensificar mais o debate, já estamos fazendo isso de certa forma, como a emergência climática impacta nós que somos artistas de rua e fazemos atividade durante o dia, o calor está cada vez maior, tem menos árvores, como isso está impactando a gente. Isso pode nos levar a modificar a forma de acontecer do cortejo”, reflete o cofundador do Arraial do Pavulagem.

Helena Berbário, professora de português e inglês e brincante no Pavulagem desde 2022, do segmento de dança, compartilha que o tema da conscientização ambiental sempre esteve presente no Pavulagem desde os ensaios e oficinas. E que o tema deste ano é uma forma de ampliar ainda mais essas discussões, para que o assunto também possa se fortalecer junto com a cultura. Para ela, é nítido como a cultura tem sido impactada com as mudanças climáticas, e como é importante espaços culturais discutirem também sobre o assunto, como enfatiza:

“Todos os aspectos das nossas vidas sentem os impactos da crise climática, a cultura não foge disso. O papel da cultura é se posicionar em relação a isso também, é lutar pelo o  que é nosso, é o nosso movimento cultural, ancestral de tradição. Nós estamos extremamente conectados com a terra que nascemos, estamos em um estado de constante ameaça e constante luta”, pontua Helena. 

Duas mulheres brincantes de camiseta azul dançam na rua
Brincantes do Arraial do Pavulagem (Foto: Marina Cangussu/divulgação)

Trazer as mudanças climáticas e a COP para a rua é uma forma que o grupo encontrou de acessibilizar ainda mais a discussão. Essa é uma ação importante, visto que 71% dos brasileiros ainda não sabem o que é a COP30, de acordo com o levantamento ‘Protagonismo do Brasil na COP30’ lançado em junho pelo Instituto IDEA, com apoio da LACLIMA. 

Para André Pompeu, professor de história da rede pública de Belém e brincante do batalhão da estrela há 10 anos, atuando na percussão, o Arraial sempre foi um espaço onde “se bateu muito nessa tecla que a floresta vive em conjunto com a gente”. Ele destaca que essa interação com a natureza é fundamental para entender a cultura do povo paraense e do povo amazônida, visto que elas são muito permeadas dessa vivência com a floresta e seu ambiente. 

“A natureza tem que viver dentro da gente, nós somos parte desse grande ambiente e precisamos cuidar dela e isso obviamente para um público maior não está muito claro, e essa mensagem pode ser passada dentro dos arrastões para essas milhares de pessoas. Não é um trabalho pensado na COP, é um trabalho de anos e anos e que a gente vem fortalecendo”. 

Multidão de brincantes

Quando o Arraial surgiu, há 38 anos, a ideia inicial era divulgar as músicas do grupo de amigos. Um espaço simples de partilha de escritas e novas produções musicais entre os artistas com o objetivo de formar uma plateia para as músicas criadas pelo grupo. Mas o que começou de forma intimista conquistou um espaço muito além do esperado. 

“Olha, para falar de 38 anos é quase uma tese de mestrado. Muitas coisas aconteceram nesse período, muitas transformações, muitos ajustes”. A frase de Junior Soares reflete sobre a caminhada do grupo, como complementa:

“Quando nós reunimos na Praça da República, nós e vários artistas, coletivos, para pensar algo sobre a valorização da nossa cultura, nós tínhamos um trabalho musical, eu e o Ronaldo Silva. Quando fizemos a primeira formação musical, percebemos essa necessidade de formar público, porque sempre tivemos aquela ideia do colonizador ‘tudo que presta é o que vem de fora’, acabamos tendo uma aversão maior do que fazemos aqui e do que precisamos fazer para melhorar a nossa importância. Mas como projetar a nossa cultura e a nossa arte para os outros?” relembra Junior. 

Foto; Filipe Bispo/divulgação

Ele compartilha como no início do projeto foram pensadas diversas formas de atrair o público para acompanhar as apresentações do grupo. Entre as ideias que surgiram, houve a vontade de “brincar” com a imaginação das pessoas, com uma coisa própria da Amazônia. Assim pensaram sobre o formato tradicional, presente nos bois bumbás: passar o boi na rua para as pessoas seguirem atrás. 

“Apostamos um pouco nessa curiosidade das pessoas de uma maneira muito criativa naquele momento, dadas as condições que tínhamos. Um boi artesanal pequeno em uma tala de churrasco. Então saímos, algumas pessoas tocando banjo, cantando, atraindo as pessoas, dávamos uma volta na praça e entramos no Teatro Waldemar Henrique onde estava nosso coletivo musical para se apresentar”, explica Junior. 

E o plano inicial deu certo, tendo em vista que nos anos seguintes a brincadeira cresceu ainda mais. De acordo com Junior, no terceiro ano o grupo já reunia cerca de cinco mil pessoas dando voltas na praça. E durante o processo o grupo foi aprendendo e dando ainda mais formato para a manifestação cultural que acontece hoje, durante esse tempo foram diversas as transformações no formato do cortejo. Como o percurso, que com o aumento do público precisou também ser alterado. 

Inicialmente, o trajeto se encerrava com um grande show na Praça da República, mas precisou ser alterado, visto o impacto sonoro que estava causando na área, pois o entorno conta com a presença de muitos prédios residenciais. A nova rota agora é finalizada na Praça Waldemar Henrique, localizada na parte central de Belém. O percurso é conduzido pelo batalhão da estrela formado pelos brincantes que guiam o boi pavulagem, no qual hoje conta com cerca de 1200 pessoas, tendo um público de mais de 30 mil pessoas.  

Entre as 1200 pessoas, está Alexandre Mafra, ambientalista, estudante e pernalta no batalhão, que participa há 7 anos. Ele conta que nunca imaginava que fosse sair às ruas como pernalta durante o cortejo e que fosse ter coragem para subir em uma perna de pau. E compartilha como as atividades viraram uma verdadeira paixão, seja as oficinas, o confeccionamento dos enfeites ou pôr as fitas no chapéu de palha. 

Duas mulheres de camiseta azul integram cordão no arrastão do pavulagem
Foto: Filipe Bispo/divulgação

“Sempre temos uma certa expectativa, digo enquanto brincante, antes dos domingos de cortejo acontece a chegada dos mastros na escadinha da estação das docas, às vezes é esperado um público grande ou às vezes essa expectativa não é atendida, mas nos domingos essa expectativa sempre é atingida, expectativa de muitos brincantes e público em geral”, relata Alexandre, que acrescenta, “em ano de COP30 a cidade está movimentada e por sorte temos o nosso Arraial do Pavulagem este ano, uma chance de trazer mais públicos de fora do país para conhecer a cidade e os cortejos”.

Da tradição ao fomento da cultura na capital paraense

Com a longa trajetória, o Arraial conseguiu construir um papel importante no fomento à cultura em Belém, por meio das oficinas promovidas nos meses que antecedem os cortejos que ensinam de percussão a artes circenses. As oficinas surgiram da necessidade de mais formações para o público interessado em participar como brincante, mas também geraram um espaço diverso e de um respiro a arte na cidade. 

Por conta do elevado número de interessados em participar das oficinas, o processo precisou ser modificado por conta das limitações existentes do grupo. De acordo com Junior, atualmente, eles têm buscado estruturar o Instituto Arraial do Pavulagem, enquanto número de pessoas, com o objetivo de poderem atender um maior público, no entanto as mudanças ainda não foram possíveis. 

“Quando eu falo no plural, eu falo envolvendo todos esses brincantes, porque nós também falamos isso com eles e nós somos um corpo, digamos assim, não estou falando por mim. Isso que nós fazemos é levar esta percepção para eles de que ali a gente está construindo uma cidadania importante”, completa Junior.

Mulher brincante abraça o boi pavulagem, boi de pano confeccionado em azul escuo
Foto: Filipe Bispo/divulgação

Para Junior, o interesse das pessoas surge por conta das experiências que o Arraial tem proporcionado na cidade, o que faz com que o grupo vire uma referência para alguns grupos culturais. Mas que isso não interfere em outros trabalhos desenvolvidos por diferentes espaços na cidade. Ele acredita que o diferencial do Instituto é o formato de trabalho pensando formação com responsabilidade socioambiental.

Assim como Junior, a brincante Helena também enxerga o Arraial como esse espaço que vai além de uma manifestação popular, sendo também um espaço cheio de oportunidades, para ela esses lugares ainda são ausentes em Belém, “mas não por falta de vontade do povo”, e acrescenta:

“É muito bonito, ele dá oportunidade para todas as pessoas que tem um sonho, que tem a vontade de fazer parte de algo, de aprender algo. Nós temos as oficinas abertas, , é um espaço inclusivo, temos idosos, PCDs, crianças, e isso aumenta nosso senso de comunidade e cuidado e carinho com o próximo” conclui Helena.

Alicia Lobato

Graduada em jornalismo, natural de Belém, no Pará, vivendo em Manaus, Amazonas. Tem interesse em pautas socioambientais, de gênero e culturais.

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