*Este artigo integra o projeto LAB Futuro Ancestral: co-criando estratégias de mobilização, com realização do Nonada e do coletivo NoiteSuja e apoio do UMI Fund.
O movimento do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+, que mesmo sem o financiamento necessário, expôs em dados que o Brasil permanece assassinando nossos corpos e no outro dia se perguntando “por que falar disso é importante?”. Foram 273 mortes e violências com pessoas LGBTQIA + em 2022 no país.
Entre os grupos mais impactados, estão as travestis com 58,24%, e 35,16% referente aos homens gays. O marcador da feminilidade parece ser o maior alvo daqueles que odeiam o gênero. Um ódio que se reflete nos 83,53% de assassinatos com requintes de crueldade. A idade? nossos jovens de 20 a 29 anos são os mais assassinados. Em 171 dessas mortes, não foi possível identificar a ocupação profissional, demonstrando um país que se importa mais com quem vamos dormir, do que se teremos dinheiro para comer. Não dão emprego, não dão sossego.
No sistema capitalista, retirar a dignidade através da falta de dinheiro para viver em insalubridade parece ser uma brincadeira entre eles, nossos algozes. Mas além disso, nos desumanizar em parlamentos, redes sociais e nas “brincadeiras” de família, é um passatempo perverso. Em tempos de crise, são esses corpos, que já são cotidianamente deixados para trás, que ficam cada vez mais distantes da proteção do estado e da própria sociedade.
Se tiram nossa dignidade e nossa humanidade, o que fica? Fica a voz travada de uma mãe que se pergunta até hoje por que espancaram seu bom filho até a morte. Fica o abandono no meio das águas turvas de um corpo rechaçado pelo conservadorismo.
Em 2024, com as enchentes no Rio Grande do Sul, tivemos contato pela primeira vez com o conceito de Transfobia Ambiental, estamos nos deparando com mais uma perversidade do povo brasileiro: na crise ambiental, também há seleção de quem merece ser salvo. A descriminação surge como mais um par de águas densas que compõem a violência de uma enchente para a população trans, encontraram mais uma estratégia de nos matar. Os afetos pela perda de casas, segurança e alimentação, fecharam as portas para um corpo que estava na mesma vulnerabilidade, mas era trans.
Em 2025, escrevo esse artigo com dor no peito, e trago à memória nosso menino Fernando Vilaça da Silva, um homem honesto, íntegro e bom, como disse sua mãe, ao velar o corpo do jovem de 17 anos assassinado em Manaus por homofobia pelas mãos de outros dois jovens de sua escola.
Desde 2022, falamos sobre Manaus (AM) liderar o ranking de mortes violentas de LGBTQIAI+. Tanto se fala de adaptação ao novo mundo que se apresenta com as crises ambientais, mas para nós, corpos LGBTQIA+ a crise ocorre desde quando nascemos, e aprender a se adaptar, se tornou tática de sobrevivência. Estudando Foucault de 1984, entendi que a sexualidade foi manipulada enquanto um dispositivo de poder, colada inteiramente nos corpos, nas almas, nas individualidades e na história, sob os prazeres e os desejos, constituídos pelo Ocidente.
Essa reflexão me fez compreender como nossos corpos estão pré-definidos socialmente sob a ótica da cisgeneridade, movendo um padrão de direcionamentos dados por uma sociedade baseada nas normas ‘corretas’ e ‘erradas’ de ser ou não ser, levando a punição dos que transgridem tais orientações. A punição de Fernando foi a morte.
Como continuar escrevendo depois disso? Esse texto deveria ser relacionado apenas para a pauta ambiental, mas me questionei em número e grau, quais são as chances de darmos visibilidade a essa violência sem atrelá-la a uma pauta do povo? As transições e adaptações que deverão ocorrer em nosso território para vencermos a crise ambiental, de nada adiantará se a justiça social não for uma norteador primário nas discussões e nos esforços de salvaguardar nossa população, nossos jovens e famílias do ódio e da construção ideológica do que é pecado e deve ser punido com tanta crueldade. E é por isso que estamos aqui.
Em desenvolvimento de ideias com meu companheiro de pesquisa Wagner Cardoso, entendemos que a crise climática, embora afete a todos, tem um impacto desproporcional sobre grupos vulneráveis socialmente e economicamente, como a comunidade LGBTQIA+.
Essas mudanças climáticas, sendo um problema global, têm consequências mais severas para as populações marginalizadas, que enfrentam desigualdade de acesso a recursos e oportunidades de adaptação. A comunidade LGBTQIA+ já enfrenta exclusão social, discriminação e pobreza, e esses fatores se agravam com a crise.
Dados parciais da pesquisa Fala Juventudes Amazônidas, em andamento pelo Instituto COJOVEM (2025), apontam que as juventudes LGBTQIA+ da Amazônia Legal (que compõe 44,4% dos respondentes do estudo que relaciona crise climática com a população jovem), afirmam estarem preocupados com a crise climática, e que os impactos dela já podem ser sentidas física e emocionalmente.
Quais seguranças teremos em relação ao cuidado com a vida dessa juventude? Visto que se olharmos para trás, todas as juventudes LGBTQIA+ que atravessaram crises humanitárias, foram negligenciadas e marcam em seus movimentos um tópico inteiramente dedicado à luta pela sobrevivência em um estado que pouco ou quase nunca nos olha com seriedade.
Temos uma longa história de lutas e conquistas. Pandemias e crises sociais, econômicas e de saúde pública sempre levaram a população LGBTQIA+ para um estigma que nos violentava. Em 1980 com a AIDS, e toda a ignorância de líderes e profissionais que imputaram o vírus à nossa população, e anos depois o reflexo desse erro segue firme na sociedade.
Em 2020, com a pandemia da COVID-19, que promoveu o aumento da invisibilidade de nossas demandas, as dificuldades no acesso a medicamentos, serviço de acolhimento e suporte psicossocial, os nossos em situação de rua, além de uma intensificação dos discursos de ódio e violência intrafamiliar. Agora, em 2025, com o agravamento da crise climática, com os casos de LGBTIcídio e ainda pela onda ideológica de ódio aos nossos corpos, que ganha força em 2018, o que tenderá a nos afetar?
Temos a capacidade de nos reerguer, reconstruir e acreditar num futuro mais justo. Isso nos faz corpos importantes para construir políticas públicas de adaptação climática, já que essa é a nossa maior missão desde quando sentimos a primeira dor da rejeição: sobreviver. Tudo que nossas cidades irão precisar nos próximos anos. Sabemos que a adaptação climática é definida pelo ajustamento de sistemas naturais e humanos ao clima atual e futuro.
Seguindo o objetivo de reduzir os impactos negativos das mudanças climáticas e aproveitar as oportunidades que possam surgir para, enfim, promover territórios resistentes e que enfrentam os impactos da crise climática protegendo seus habitantes, e isso inclui a população dissidente, aqueles que foram limitados dos direitos e proteção social e política. A luta pelo direito de existir em sociedade da população LGBTQIA + é diretamente proporcional à preservação dos seus territórios. Se descumprirmos os acordos de proteção nacional de pessoas em vulnerabilidade, falhamos enquanto sociedade, e a crise vencerá.