O significado de economia criativa é, muitas vezes, atrelado ao comércio ou mercantilização. O termo pode significar isso, mas é também chave para a conservação e manutenção do patrimônio cultural brasileiro.
Essas nuances sociais da economia do patrimônio são o foco da pesquisa Patrimônio Cultural, Economia e Sustentabilidade, desenvolvida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e pelo Observatório de Economia Criativa (Obec-BA), cujo relatório da primeira etapa foi divulgado na semana passada em transmissão ao vivo pelo Youtube. A pesquisa foi realizada a partir do estudo de 12 bens materiais e imateriais de 8 estados brasileiros diferentes, sendo um deles, a Roda de Capoeira, tido como de nível nacional.
Entre os bens materiais reconhecidos como Patrimônio Mundial estão o Centro Histórico das cidades de Salvador (Bahia), de Olinda (Pernambuco) e de São Luís (Maranhão); as Ruínas de São Miguel das Missões, no Rio Grande do Sul; o Parque Nacional da Serra da Capivara, no Piauí; e a Praça São Francisco, em São Cristóvão, Sergipe.

Já os bens imateriais reconhecidos como Patrimônio da humanidade selecionados foram para pesquisa foram: O Samba de Roda do Recôncavo Baiano; o Frevo, de Pernambuco; o Complexo Cultural do Bumba Meu Boi do Maranhão; a Arte Kusiwa – Pintura Corporal e Arte Gráfica Wajãpi, do Amapá; o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, do Pará; e a Roda de Capoeira, a nível nacional.
Segundo o relatório divulgado, “enquanto a dimensão ambiental da sustentabilidade do patrimônio cultural está presente em boa parte das publicações analisadas, a questão econômica surge frequentemente de forma secundária, sendo abordada em muitas pesquisas apenas indiretamente”. O documento destaca que o conceito de sustentabilidade, apesar de estabelecido e presente em discussões desde 1970, carece de estudos aprofundados quando se trata de sua aplicação ao patrimônio cultural.
O objetivo da pesquisa é “fazer uma imersão na dimensão econômica do patrimônio cultural brasileiro para identificar como elas contribuem para a sua sustentabilidade, preservação, salvaguarda e promoção”, além da contribuição na formulação de políticas culturais para o setor. A pesquisa também visa fortalecer a autonomia e as condições de trabalho dos agentes culturais detentores e detentoras desses patrimônios, como forma de assegurar a sua transmissão para gerações futuras.

Para Alexnaldo dos Santos, coordenador financeiro da Associação dos Sambadores e Sambadeiras do Estado da Bahia (Asseba) e convidado do lançamento, o estudo sinaliza uma mudança na maneira como o patrimônio cultural brasileiro e seus agentes são percebidos nas políticas públicas. “A pesquisa também é importante para que se fale sobre as dificuldades financeiras de quem trabalha no setor. Se fosse pra viver do samba de roda, a gente morreria de fome, porque não dá. A gente faz por amor, porque a gente quer ver acontecer”, relata.
Outro fator que Alexnaldo ressalta como importante é a metodologia da pesquisa, que priorizou a consulta aos e às agentes patrimoniais e culturais que se encarregam da manutenção desses espaços e tradições. “É como numa construção, não se constrói um prédio de cima para baixo, mas de baixo para cima.”
Para a coordenadora do Obec, Daniele Canedo, é necessário distinguir o social do rendimento financeiro. “Pensar na dimensão econômica não significa pensar na dimensão do lucro, do comércio apenas. Significa pensar em todo um sistema de relações econômicas que certamente se dão em todas as expressões culturais”, explica.
Ela ainda destaca que a pesquisa pretende discutir o patrimônio como um campo de disputa simbólica, política e econômica, no qual se articulam práticas sociais, memórias coletivas, identidades e relações de poder. “Se a gente não falar de economia cultural e criativa, vamos continuar vendo os recursos sendo distribuídos de forma centralizada, sem equidade, sem justiça social”, defende.

Por políticas culturais direcionadas
Segundo a coordenadora do Obec, a pesquisa é o primeiro espaço de discussão pública sobre as dinâmicas econômicas associadas ao patrimônio cultural brasileiro. “É preciso criar dentro da institucionalidade das políticas públicas do Brasil esse espaço para falar da dimensão econômica. Isso ainda é um tabu, ainda é difícil para muitas pessoas entenderem. Às vezes as pessoas associam a economia do patrimônio com as perspectivas da mercantilização, da comercialização exacerbada”, explica Daniele.
A secretária de economia criativa do Ministério da Cultura, Cláudia Leitão, entende que é preciso olhar para cada um dos territórios que existem com a devida sensibilidade e singularidade. “Nós temos que falar cada vez mais de uma economia que tem um sentido amplo da palavra oikonómos [origem grega da palavra economia, que significa algo como ‘administrar a casa’]. É cuidar da casa, da relação da casa com o meio ambiente, a relação com viver”, defende a secretária.
“Como eu posso reconhecer e chamar o mestre da cultura para certificá-lo se esse mestre vive numa subcidadania, se ele não tem banheiro, se não tem direito a transporte e a uma alimentação digna? Se não tem direito, portanto, às condições para que ele possa fazer o que faz?”, argumenta Cláudia. Para ela, políticas culturais direcionadas são cruciais para que haja maior eficácia em sua aplicação.
A secretária ainda cita o programa Brasil Criativo, cujo lançamento está previsto para o dia 19 de novembro. Entre algumas das diretrizes propostas pelo programa, estão a ampliação do acesso e do protagonismo da população à economia criativa brasileira; o desenvolvimento de territórios e ecossistemas criativos e seus modelos de governança; e a promoção da diversidade e da identidade cultural brasileiras com ênfase nos seus produtos.
As próximas etapas da pesquisa são a realização do segundo e do terceiro relatório, focados em aspectos das dimensões econômicas dos bens materiais e imateriais investigados; a elaboração de uma cartilha com reflexões e sugestões sobre a sustentabilidade do patrimônio cultural brasileiro; e o oferecimento de uma capacitação com equipe interna do Iphan, trabalhadores da cultura e organizações atuantes no campo do patrimônio cultural brasileiro nos oito estados selecionados.
De acordo com Daniele, os dados utilizados na pesquisa serão anonimizados e divulgados para que possam fundamentar outros estudos no campo da cultura. “A meta é levar a pesquisa para todos os estados do Brasil”, revela.