*Esta reportagem integra o projeto Jornalistas pelo Clima, realizado por Repórteres Sem Fronteiras, Nonada e Matinal Jornalismo
A desinformação se impôs como um dos principais obstáculos na emergência instaurada pelas enchentes no Rio Grande do Sul. Quase um ano e meio depois – 478 municípios atingidos, 184 mortes e 25 desaparecidos – autoridades revisam falhas e preservam acertos. Há o entendimento de que o poder público precisa estar melhor preparado para lidar com informações falsas. Especialistas afirmam que a ausência de educação midiática e de manuais de prevenção são um empecilho em caso de uma nova tragédia climática.
Uma pesquisa divulgada pela AtlasIntel/CNN Brasil, em 23 de maio do ano passado, mostrou que 62,5% dos gaúchos compreendiam que a disseminação de informações falsas atrapalhou o gerenciamento da crise. Já outros 24,7% discordavam e 10,1% não souberam responder.
O gestor de tecnologia Júnior Alves, de Canoas, viu de perto como a desinformação se tornou uma barreira no momento mais crucial da tragédia: o resgate das pessoas quando as cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre começaram a alagar. Sua residência não foi atingida, mas diante da gravidade da situação, ele não via outra possibilidade a não ser ajudar.
“Lembro de terem dito que os policiais militares estavam impedindo as pessoas de resgatar com lanchas e jet skis. Isso não foi verdade. Eu estava lá e justamente no local onde mencionaram que isso estava ocorrendo. O que havia, sim, era uma preocupação deles, pois as pessoas que estavam indo lá não tinham experiência em conduzir embarcações naquelas condições e poderiam colocar em risco a sua vida, deixando a situação de resgate ainda mais crítica”, comenta.
Segundo Alves, as informações falsas acabaram afastando a ajuda, já que diversas pessoas não se dirigiam até esses pontos com receio de serem impedidos de entrar na água. A major da Brigada Militar, Andressa Dias, também aponta o caso dos jet skis como o mais emblemático, já que a repercussão foi grande e rápida. Além disso, ela também cita publicações alegando que a corporação estaria proibindo a passagem de caminhões com donativos devido a uma suposta falta de notas fiscais.
“Outra situação que nos marcou foi a narrativa de que o poder público não estaria agindo diante da catástrofe. Para que se tenha uma ideia, mais de 900 policiais militares tiveram perdas na enchente. Alguns perderam tudo, mas seguiram trabalhando, com as condições que tinham naquele momento, em prol da comunidade”, relata a major.
Casa de cultura Mario Quintana inundada por enchente no RS (Foto: Rafael Gloria/Nonada Jornalismo)
O Corpo de Bombeiros do Rio Grande do Sul, via Assessoria de Comunicação Social, informou que além de realizar toda a parte operacional de auxílio – como resgates, buscas e salvamentos – precisava ainda desfazer informações falsas que deixavam a população ainda mais em pânico.
“A notícia falsa que mais incomodava era a de uma quantidade enorme de corpos boiando. Isso não foi comprovado. Nunca se viu inúmeros corpos boiando nas áreas alagadas. Além disso, diziam que as autoridades estavam escondendo informações”, disse o Corpo de Bombeiros.
Outra corporação que atuou na linha de frente foi o Exército, que também não deixou de ser alvo de desinformação. Conforme o coronel Fabiano Simon, chefe da Comunicação Social do Comando Conjunto da Operação Taquari 2 (resposta das Forças Armadas às enchentes), as informações falsas buscavam prejudicar a imagem das instituições e agravar ainda mais o caos em que se encontravam as pessoas acometidas pela enchente.
Simon cita o caso de vídeos em que o Exército não estaria permitindo o resgate de pacientes em hospitais e outros em que, ao invés de estar realizando resgates, os militares estariam fornecendo e montando tendas para a imprensa.
“Porém, o que mais me marcou foram os recortes de vídeos antigos, de militares do Exército que mostravam parte de atividades fora de contexto, com o único intuito de prejudicar a imagem da nossa instituição”, argumenta o coronel.
Desinformação preenche o espaço da incerteza
A estudante de Direito e moradora de Canoas, Liandra Castro, não precisou sair de sua residência porque mora em um bairro mais alto, porém a experiência foi uma das mais difíceis que ela já enfrentou porque havia uma sensação de incerteza o tempo todo.
“Tenho uma doença rara e estava internada durante parte desse período. Vi muitas pessoas compartilhando no Instagram que determinadas regiões estariam seguras, quando, na realidade, continuavam alagadas. Também circularam vídeos antigos, de outras regiões do Brasil ou do mundo, como se fossem daqui. Isso só aumentava a angústia”, relata Castro.
A bióloga e jornalista especializada em pautas ambientais, Jaqueline Sordi, afirma que, em momentos de catástrofe, as pessoas estão emocionalmente vulneráveis. Há medo, dor, sensação de injustiça, e uma necessidade quase desesperada de compreender o que está acontecendo.
“É justamente nesse vácuo de certezas que a máquina da desinformação atua com mais força, oferecendo explicações simples, culpados fáceis, narrativas sedutoras que trazem ordem a um cenário de caos”, comenta Sordi.
É o mesmo entendimento da jornalista e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Eloisa Loose, que atua com comunicação de riscos de desastres e jornalismo ambiental, com ênfase na crise climática. Segundo ela, neste tipo de situação, há uma ruptura da “normalidade”, o que provoca uma mudança repentina de rotina, imposta pela calamidade, e deixa as pessoas sem referências.
“Não há razão para o trabalho habitual em um contexto de emergência. Há uma desorganização da vida, que pode, em diferentes graus, afetar a percepção da população sobre a situação, somada à comoção e ao sentimento de perdas. A falta ou demora de informações confiáveis gera um vazio, que pode rapidamente ser preenchido por opiniões, especulações ou mentiras – pois, especialmente nesses casos, buscamos por respostas para tentar dar sentido ao que estamos vivendo”, explica Loose.
Conforme Sordi, sem uma referência e com exposição constante à desinformação, com o tempo, isso provoca na população um ceticismo até mesmo diante de informações corretas e enfraquece a mobilização social. A bióloga considera a desinformação uma das barreiras mais perigosas à ação climática.
“Entendo que combater a desinformação exige dois tipos de educação igualmente fundamentais. Primeiro, é preciso educar sobre a ciência: mostrar como o conhecimento científico é construído, com base em evidências, revisões e consensos, e não em opiniões isoladas. Segundo, é essencial educar sobre a desinformação: ensinar como essa máquina funciona, quais são suas estratégias mais comuns e por que ela se espalha tão rápido em momentos de crise”. (Jaqueline Sordi, bióloga e jornalista especializada em pautas ambientais.)
A jornalista e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Luciana Carvalho, líder do grupo de pesquisa Desinfomídia UFSM/CNPq, destaca que faltam campanhas educativas para que as pessoas saibam o que fazer em momentos de crise.
Bairros Periféricos da Região Metropolitana dois meses após enchente de 2024 (Foto: Foto: Desirée Ferreira/Nonada Jornalismo)
“Na Europa, por exemplo, existem manuais e protocolos de prevenção para crises, até em caso de guerra. E nós aqui acabamos só agindo quando as coisas acontecem. Pessoas ficaram sem energia elétrica nas enchentes de 2024, e o rádio a pilha precisou entrar em cena para terem acesso à informação. O ideal seria fazer campanhas preventivas. Quando acontecer de novo, todo mundo terá seu rádio de pilha em casa, vão saber quais fontes acessar para pedir ajuda ou para ajudar”, ensina Carvalho.
O diretor-adjunto de Jornalismo da Secretaria Estadual de Comunicação, Dario Panzenhagen, afirma que o principal aprendizado trazido pela enchente foi a importância da resposta rápida e técnica, com checagem jornalística profissional e protocolos claros de atuação. A estrutura do Núcleo de Combate à Desinformação segue ativa e pode ser acionada sempre que há identificação de desinformação com potencial de prejudicar a população em relação a serviços e ações do governo.
“Hoje, além do reforço no monitoramento de informações falsas no ambiente digital, estão em elaboração protocolos de contingência em parceria com o Ministério Público e a Secretaria da Reconstrução Gaúcha (Serg), tendo a comunicação como eixo estratégico. Também está sendo desenvolvido, em parceria com o Núcleo de Pesquisa sobre Gestão de Crises do PPG de Comunicação da PUCRS, um protocolo específico para comunicação do governo em eventos naturais adversos”, disse Panzenhagen.
A virada veio com informação de qualidade
Uma reportagem publicada pela Lupa, em 18 de maio do ano passado, identificou que a onda de desinformação durante as enchentes foi caracterizada em três eixos principais: doações, resgates e alarmismo. Entre 1º e 16 de maio de 2024, 1,7 milhão de interações no Facebook e 27,7 milhões no Instagram mencionavam os termos “resgate” e “Rio Grande do Sul”. As mentiras atacavam, sobretudo, as forças de segurança que, junto a voluntários, tentavam salvar vidas. A ausência de informações à medida que a água avançava gerou uma carga extra de tensão.
Em comum, Bombeiros, Brigada Militar e Exército relataram que, em vez de se dedicarem cem por cento no auxílio à população, precisaram direcionar esforços para combater as fakes. A Brigada Militar, por exemplo, adotou a estratégia de realizar uma rápida manifestação para desmentir boatos e informar o público sobre as ações de seus 19 mil militares perante a crise.
Para mudar a situação, as corporações relatam que foi importante contar com a ajuda da imprensa, que levou informação precisa e verificável do trabalho realizado.
“No começo, a percepção que tivemos é que parte da população estava sendo influenciada negativamente pelas fakes lançadas nas mídias sociais. Mas com o passar do tempo e o apoio irrestrito da imprensa, o nosso trabalho foi sendo reconhecido, tendo um retorno positivo e o agradecimento por parte das pessoas que tivemos a oportunidade e a felicidade de ajudar”, disse o coronel Fabiano Simon.
A mesma percepção possui o Corpo de Bombeiros: “Por termos realizado as missões que surgiram naquele momento, salvando e resgatando o maior número possível de pessoas e animais, e mostrando todo esse trabalho conjunto de esforço e dedicação, desmentindo notícias falsas por meio da boa comunicação, acreditamos que o saldo é positivo. As pessoas reconhecem o trabalho feito pelos bombeiros militares e nos agradecem até hoje. Creio que a relação com as comunidades não ficou abalada”, informa a corporação.
Entre erros e acertos, poder público se adaptou à crise
Durante a enchente, a Prefeitura de Porto Alegre e o governo do Estado do Rio Grande do Sul atuaram de forma semelhante, desmentindo, por exemplo, fakes que orientavam de forma equivocada sobre evacuações – e divulgando as informações corretas, como medidas de prevenção, em sites, redes sociais e encaminhando dados diretamente à imprensa.
Porém, também ocorreram alguns equívocos. Em 5 de maio do ano passado, o Matinal noticiou que a Defesa Civil do estado havia publicado um alerta de inundação severa, orientando a imediata evacuação de diversos pontos da capital e da região metropolitana. O problema é que o post possuía um link para um mapa que mostrava regiões altas da cidade como inundáveis. A publicação causou grande repercussão nas redes sociais, uma vez que foi compartilhada também pelo governo estadual no Instagram e no X.
Outro problema constatado pelo Matinal foi o atraso em um dos alertas do Poder Executivo de Porto Alegre. No começo da tarde de 6 de maio, uma segunda-feira, foi publicado um alerta na conta oficial da prefeitura para que os moradores dos bairros Cidade Baixa e Menino Deus deixassem suas casas e procurassem abrigo seguro em casas de familiares ou abrigos disponibilizados pela prefeitura. Todavia, o alerta chegou tarde, uma vez que a água já estava avançando pelas ruas dos bairros.
O secretário do Gabinete de Comunicação Social da Prefeitura de Porto Alegre, Luiz Otávio Prates, considera que – naquele momento – foi realizado tudo o que era possível com os instrumentos que o Poder Executivo dispunha.
“Um ganho que tivemos foi a abertura de um canal de relacionamento direto com as companhias responsáveis pelas principais redes, como Meta (Instagram, Facebook, WhatsApp e Threads) e TikTok. Isso proporciona celeridade no encaminhamento de denúncias”, explica Prates.
O diretor-adjunto de Jornalismo da Secretaria Estadual de Comunicação, Dario Panzenhagen, explica que, a partir dessa aproximação com as big techs, diversos conteúdos tiveram alcance limitado ou foram derrubados, especialmente aqueles usados para golpes ou para disseminar informações com potencial de risco à população. “Ao todo, 40 sites, domínios ou perfis foram retirados do ar e nove pessoas foram presas por criar perfis falsos do governo”, afirma Panzenhagen.
Ainda segundo Panzenhagen, ao longo do período das enchentes a Polícia Civil prendeu 13 pessoas por aplicarem golpes na internet, não exclusivamente utilizando perfis falsos do governo. Isso ocorreu devido a uma articulação do Núcleo de Combate à Desinformação, criado dentro do Gabinete de Crise de Comunicação do governo do Estado, que atuou com a Polícia Civil e o Ministério Público para investigação de perfis falsos e conteúdos criminosos. Os casos comprovados foram encaminhados para responsabilização judicial.
Os golpes geraram problemas não apenas para quem perdeu dinheiro. Vários grupos de ajuda no WhatsApp foram criados durante a enchente e, em diversas publicações, alguns usuários precisavam explicar que não estavam aplicando golpes.
É o caso, por exemplo, da administradora Daniela Fernandes, de Porto Alegre. Segundo ela, a desinformação desviou o foco e causou atrasos e falhas na logística de resgate e assistência.
“Como resultado direto disso, muitos amigos ficaram sem a ajuda da Defesa Civil por um tempo considerável, pois os esforços e os recursos, que já eram limitados, foram redirecionados para atender a notícias e pedidos fraudulentos”, explica Daniela.
Para combater as informações falsas, ela comenta que passou a analisar os números dos telefones que postavam pedidos de ajuda nos grupos. Segundo Daniela, diversos números possuíam DDDs que não correspondiam às regiões do Rio Grande do Sul. “Esse detalhe simples se tornou um critério fundamental para questionar a veracidade das informações e dos apelos de socorro. Posso afirmar que foram muitos telefones com essas características”, disse Daniela.
Conforme o Ministério Público do Rio Grande do Sul, 163 chaves Pix foram bloqueadas, mas, até o momento, não existe uma estimativa de valores recuperados, já que as investigações ainda estão em andamento.
“Sabe-se que a legislação brasileira ainda é muito leniente na repreensão aos crimes digitais, mas o MP sempre busca a atuação de forma proativa, nos limites da legislação vigente”, avalia o promotor de Justiça André Dal Molin, coordenador do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP/RS.
A desinformação também mobilizou a Advocacia-Geral da União (AGU). O órgão assinou um Protocolo de Intenções nº 1/2024 com Google/YouTube, Meta, TikTok, X, Kwai e LinkedIn para garantir a integridade da informação sobre a calamidade. O documento – que vigorou por 90 dias – previa que as plataformas deveriam facilitar o acesso a informações oficiais e confiáveis sobre a calamidade, incluindo a prestação de serviços públicos no estado.
A professora da UFSM Luciana Carvalho comenta que as leis existentes ajudam a punir, mas ainda não são suficientes. Uma solução, segundo ela, poderia estar no Projeto de Lei nº 2630/2020 (conhecido como PL das Fake News), paralisado no Congresso após forte lobby das big techs.
“Ainda não temos uma clareza sobre a responsabilidade das plataformas para tirar conteúdo danoso de forma ágil ou que impeça os golpes. Então, não há nada que garanta que em uma próxima catástrofe a situação não se repita e, talvez, de forma ainda mais potente. Lembrando que a catástrofe de 2024 ocorreu em um ano eleitoral e que muita gente se aproveitou desta situação para politizar a tragédia”, relata Carvalho.
Jornalista formado no Centro Universitário Franciscano (Unifra), em 2006, em Santa Maria (RS). Possui pós-graduação em Finanças e tem experiência como repórter (áreas de política, agronegócios e economia), assessor de imprensa e produtor de conteúdo para sindicatos e cooperativas. Hoje, atua como repórter na Agência Lupa (combate à desinformação) e no Site Claudemir Pereira (cobertura política de Santa Maria). Reside em Porto Alegre desde 2022.
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