“Muitos mestres, líderes de nossa cultura, têm sido esquecidos e até perdidos devido à falta de acesso a uma saúde digna, alimentação adequada e o reconhecimento necessário”. A fala foi feita por Mestre Damasceno, criador do Búfalo-bumbá, durante o Encontro da Cultura com Lula, em 5 de setembro de 2022, no Theatro da Paz, em Belém (PA).
Na ocasião, ele pediu ao então candidato à presidência a retirada dos entraves legais sobre a cultura popular e a criação de mecanismos que garantissem uma renda mensal a mestres e mestras, em reconhecimento à dedicação de toda uma vida às tradições. Três anos depois — 1.084 dias, Damasceno morreu em decorrência de câncer com metástase, sem resposta concreta ao pedido.
A realidade da falta de amparo a mestres se repete de norte a sul do país: cirandeiras, sambadores, congadeiros, griôs e mestres de maracatu enfrentam a velhice sem a rede de proteção da previdência social formal. Sem acesso a aposentadorias convencionais, a sobrevivência passa a depender de alternativas criadas pelas próprias comunidades: vaquinhas, bingos, oficinas, apresentações e redes de apoio que funcionam, na prática, como uma “previdência social” não oficial.

Além disso, é importante destacar que os mestres, muitas vezes responsáveis por essas iniciativas, são também guardiões de bens culturais imateriais do Brasil, protegendo conhecimentos ancestrais que são fundamentais para a preservação da identidade e das tradições de suas comunidades.
Esses mestres não só preservam saberes e práticas tradicionais, como também os transmitem para as novas gerações. Por exemplo, mestres da congada mantêm vivas as tradições dessa manifestação cultural por meio de danças, cantos e celebrações religiosas, compartilhando com os mais jovens as histórias e os significados que envolvem a festa. Eles ensinam os rituais, as músicas, os passos de dança e as técnicas de confecção dos figurinos, como as roupas de rei e rainha. Através dessas atividades, os mestres garantem a continuidade dos bens culturais imateriais e fortalecem o vínculo da comunidade com suas raízes ancestrais.
Alternativas que viram sustento
No Marajó (PA), o carimbozeiro e puxador de Boi-Bumbá Mestre Robledo, 57, relata que a permanência de mestres no território se viabiliza por oficinas, apresentações e eventos comunitários. “A comunidade apoia dentro do que pode, mas esse apoio também é restrito porque todos enfrentam dificuldades. Sem políticas públicas, fica pesado demais manter tudo apenas com a boa vontade”, diz.
Mesmo reconhecido como Mestre da Cultura Popular, afirma não contar com aposentadoria ou benefício específico: “Não há nenhum tipo de aposentadoria ou benefício garantido. A realidade é difícil. O sustento vem de pequenos trabalhos e da solidariedade. A cultura nos dá orgulho, mas não nos dá segurança de vida”.

Em São Paulo e Mato Grosso do Sul, as soluções coletivas também aparecem como eixo de sobrevivência. Em São Paulo, oficinas, editais pontuais e redes de solidariedade sustentam sambadores, congadeiros, mestres de maracatu e griôs. Em Mato Grosso do Sul, o quadro é mais agudo entre comunidades quilombolas, onde mestres e mestras mantêm tradições e lutam por dignidade na velhice sem proteção social. Em alguns territórios, a renda dos mais jovens e eventos comunitários é o que sustenta os mais velhos.
As campanhas comunitárias mobilizam a comunidade da Banda Dançante do Rosário de Santa Efigênia, em Barbacena (MG). Lançada em 2020, o grupo arrecadou doações financeiras e mão de obra voluntária para construir a sede do congado, manifestação de raízes afro-brasileiras dedicada a Nossa Senhora do Rosário e a São Benedito. A iniciativa surgiu diante da ausência de recursos públicos ou privados suficientes.
No nordeste do Pará, Marapanim, conhecida como a “capital mundial do carimbó”, reúne 42 grupos e, em todo o território, com mais de 30 festivais anuais. A dinâmica entre os grupos também é constituída por uma rede de apoio mútuo: compartilhamento de recursos para manutenção de barracões, compra de instrumentos e pagamento de mestres e mestras. Para a fotógrafa e pesquisadora Amanda Rabelo, “esses eventos funcionam como uma previdência social não formal”.
A trajetória de Raimunda Vieira Freire de Carvalho, a Mestra Bigica, 63, evidencia o papel dessa rede. Agricultora, mãe de nove filhos, cantora, compositora e cofundadora do Sereia do Mar – primeiro grupo de carimbó com protagonismo feminino, criado em maio de 1994 -, ela relembra: “Era a única coisa que a gente tinha: fazer a farinha, plantar o milho, plantar o feijão. Muitas vezes não tínhamos nem alimentação saudável para os nossos filhos”. Na velhice, surgem obstáculos ligados à saúde. “Muitas vezes a gente vai se consultar e não é bem atendida”, cita. “Com a idade, vêm as dores, os problemas, e não temos apoio médico disponível”.
Viúva, diz que recebe a pensão do esposo e já dá para sobreviver. “Tenho uma vida melhor, um tratamento melhor na alimentação”, emenda. O apoio comunitário completa a renda. “As pessoas sempre ajudam. Eles compram as cartelas, compram um prato de refeição, um refrigerante, e participam das festas. Da maneira que podem, estão sempre junto com a gente”.
Um agravante do problema é a ausência de levantamentos nacionais sobre a situação desses mestres. Sem dados consolidados sobre quantos vivem em vulnerabilidade social ou recebem apoio efetivo, o tema permanece invisível nas estatísticas oficiais, o que dificulta a formulação de políticas públicas específicas.
Segundo a pesquisadora de cultura popular e ativista pela causa Amanda Rabelo, muitos mestres com mais de 50 anos continuam trabalhando como agricultores, pescadores ou em outras ocupações informais, sem um sistema de previdência que reconheça a contribuição cultural.
Para muitos, quando há aposentadoria, o valor fica limitado a um salário mínimo. Hoje, no valor de R$ 1.518,00. Como contou o Nonada em reportagem especial, a pesquisadora afirma que a situação se agravou durante a pandemia de Covid-19: “Presenciei mestres com insegurança alimentar durante o período, de saúde e de abandono”. Ela também aponta a perda de territórios por falta de documentação de terra, com impacto direto em casas e modos de vida.
Lei Federal a passos lentos
No plano federal, uma das soluções citadas por entrevistados é o Projeto de Lei 1176/2011, apresentado em 27 de abril de 2011 pelo deputado Edson Santos (PT-RJ). O PL foi aprovado por unanimidade na Comissão de Cultura (2014) e na Comissão de Finanças e Tributação (2016), mas sofreu arquivamentos em 2015 e 2019.
Desde que chegou à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), enfrentou obstruções: em 2022 foi retirado de pauta em votações nominais; em maio de 2023 teve o parecer lido e foi adiado; em julho de 2025 recebeu parecer vencedor do deputado Patrus Ananias (PT-MG) pela constitucionalidade; em 9 de setembro de 2025, novamente retirado de pauta na CCJC.
No último dia 7 de outubro, 14 anos depois, o projeto foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara Federal e segue agora para o Senado Federal. Paralelamente, nestes anos todos, houve mobilização nacional em prol do projeto. Atualmente, o Fórum para as Culturas Populares e Tradicionais lançou um abaixo-assinado que reúne mais de 12 mil assinaturas em apoio à aprovação da chamada Lei dos Mestres.
Neste ano, o MinC lançou uma inciativa desenvolvida de apoio a Mestras e Mestres das Culturas Tradicionais e Populares, para que promovam ações educativas de transmissão de seus conhecimentos. Inédita, a Bolsa Cultura Viva garante à pessoa contemplada o pagamento mensal de R$2.100,00 (dois mil e cem reais), equivalente à Bolsa de Mestrado do CNPq, para realizar atividades em escolas, Pontos de Cultura e outros espaços. O valor pode ter duração de 6 seis a 12 doze meses, prorrogáveis por igual período.
A aplicação da Bolsa fica a cargo das secretarias de cultura estaduais, do Distrito Federal e dos municípios por meio dos recursos da Política Nacional de Cultura Viva, no âmbito da Política Nacional Aldir Blanc.
Nordeste é destaque em políticas de salvaguarda

Nas políticas estaduais, o Ceará é considerado pioneiro no Brasil. A Lei Estadual, de 2003, instituiu o Registro dos “Tesouros Vivos da Cultura” para reconhecimento dos saberes e fazeres dos mestres e mestras da cultura tradicional e popular. Selecionados pela Coordenadoria de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural da Secult, após apresentação de propostas pela sociedade civil, os mestres da cultura passam a contar com reconhecimento institucional e recebem um subsídio no valor de um salário mínimo mensal, como auxílio para a manutenção de suas atividades e para a transmissão de seus saberes e fazeres.
O programa Mestres da Cultura se tornou um referencial do Ceará para o Brasil, recebendo, à época de sua criação, prêmio do Ministério da Cultura, pelos efeitos da iniciativa. Em 2017, o estado ampliou de 60 para 80 o número de Tesouros Vivos do Ceará. Em 2022, o número chegou a 100.
Pernambuco também se destaca como um dos estados com política mais antiga de reconhecimento cultural de mestres. Desde 2002, a secretaria de cultura exercita a política de Registro do Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco, realizado concursos anuais de seleção de mestres para registro e inscrição em um valor mensal, como subsídio direto às atividades ligadas à preservação e à transmissão dos saberes. Segundo a lista disponibilizada, 72 pessoas eram consideradas Patrimônio Vivo e recebiam a bolsa em 2024.
Em Sergipe, está em tramitação a criação de uma política permanente. Sancionada em 2022, a Lei dos Mestres instituiu o Programa de Registro de Patrimônio Vivo da Cultura Sergipana, que concede o título de Patrimônio Vivo e garante uma bolsa vitalícia no valor de dois salários mínimos. Desde a sua implementação, dez mestres já foram contemplados — cinco em 2023 e outros cinco em 2024 —, estabelecendo o estado como outro exemplo no reconhecimento institucional contínuo de seus guardiões da tradição.
No Tocantins, a política própria ainda está em construção. Em 2025, a Secretaria da Cultura instalou uma comissão para elaborar o Projeto de Lei do Patrimônio Cultural Vivo, que prevê o registro oficial e a criação de bolsas permanentes para mestres e mestras. Até que a lei seja aprovada, o estado segue apoiando esse público por meio da Política Nacional Aldir Blanc: no primeiro ciclo, 87 pessoas foram beneficiadas, e o segundo ciclo já prevê um edital exclusivo para contemplar mestres da cultura popular.
Cenário brasileiro ainda é de apoios pontuais
Em outras regiões, o quadro geral aponta para um cenário de apoio pontual por meio de editais, sobretudo financiados pela Lei Aldir Blanc, pela Lei Paulo Gustavo ou por fundos estaduais. Os prêmios, na maior parte dos casos, são concedidos em parcela única e variam entre R$ 10 mil e R$ 20 mil por mestre.
A reportagem entrou em contato com as secretarias de Cultura de todas as unidades da federação para verificar a existência de políticas ou benefícios voltados a mestres e mestras da cultura popular. Até o momento, responderam Sergipe, Tocantins, Santa Catarina, Roraima, Goiás, Espírito Santo e São Paulo.
Santa Catarina apresenta um histórico de premiações robustas. Apenas em 2024, o Prêmio Mestres da Cultura Popular contemplou 95 mestres, em um investimento total de R$ 2,85 milhões. No ano anterior, o Prêmio Mérito Cultural Paulo Gustavo/SC distribuiu R$ 3,125 milhões em 250 prêmios, enquanto, em 2020, o Prêmio de Reconhecimento por Trajetória Cultural Aldir Blanc SC destinou R$ 18,89 milhões a 1.158 artistas, mestres, grupos e instituições. Os números refletem um volume considerável de recursos, mas sempre com caráter de premiação pontual, sem a criação de um mecanismo contínuo de suporte.

Em Roraima, a lógica também se mantém centrada em editais. No primeiro ciclo da PNAB, foram investidos R$ 1,61 milhão para premiar 20 mestres, número ampliado para 33 quando se incluiu o segmento da capoeira. Já no edital da Lei Paulo Gustavo, em 2024, foram selecionados 65 mestres, com investimentos que somaram R$ 1,345 milhão. O estado, assim como outros, concentra sua atuação em chamadas públicas periódicas, sem previsão de bolsas vitalícias.
Goiás segue caminho semelhante. Em 2021, a Lei Aldir Blanc contemplou 38 mestres com prêmios de R$ 20 mil cada; em 2023, a Lei Paulo Gustavo financiou 90 propostas no valor total de R$ 2 milhões; e em 2025, o Fundo de Arte e Cultura abriu edital para atender 120 mestres, cada um com o valor de R$ 10 mil. Além desses mecanismos, há o reconhecimento formal de 12 mestres artesãos pelo Sistema de Informações Cadastrais do Artesanato Brasileiro (Sicab), embora o registro não inclua remuneração ou bolsa.
No Espírito Santo, a Secretaria de Cultura mantém uma rotina anual de valorização. Dois editais específicos são lançados todo mês de dezembro: o Edital de Patrimônio Vivo – Culturas Tradicionais e o Edital de Mestres. Além disso, o estado mantém a Gerência de Memória e Patrimônio, responsável por acompanhar de forma contínua os grupos contemplados, configurando uma política mais estável em relação a outros estados, ainda que sem previsão de bolsas permanentes.
Em São Paulo, a Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas destacou como principais instrumentos de fomento os editais do Fomento CultSP, que apoiam projetos voltados à criação artística e à preservação cultural em todo o estado, incluindo territórios periféricos. Outro mecanismo relevante é o ProAC ICMS, que possibilita a captação de recursos junto à iniciativa privada por meio da renúncia fiscal.