Quintas em azul e branco: uma nação chamada Bambas da Orgia

“O meu bambas é tudo pra mim. Eu quero desfilar na ala das baianas até estar me arrastando, não deixo meu bambas jamais”, ela me disse, com a voz cheia de orgulho como estivesse falando de um filho.

Fotos Louise Soares

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Mesmo com uma semana turbulenta, os bambistas de Porto Alegre compareceram ao ensaio

Estávamos numa salinha apertada na quadra da escola de samba Bambas da Orgia, na rua Voluntários da Pátria. Eu, Louise com sua máquina fotográfica, Airan (nosso editor que cresceu na quadra do Bambas) e elas, as baianas, verdadeiras entidades do Carnaval, com suas saionas rodadas e lenços azuis na cabeça. Quem falava comigo era dona Regina Maria Fernandes Mendes, baiana desde 2010 e moradora do Morro Santana. “Eu sempre estive ‘nos bamba’, sempre fui bambista. Meu guri que diz ‘a águia pode faltar os ensaios, mas tu não falta né.’”

A águia, símbolo da escola, foi tema do desfile preferido de Regina, em 2013 – uma das 20  vezes em que o Bambas foi campeão em 74 anos de história. A escola é a mais antiga e a maior vencedora entre as participantes do Grupo Especial, o que só aumentava a responsabilidade de escrever sobre ela. Não há como descrever o peso que as baianas exercem nessa obra de arte que é o Carnaval, mas não tínhamos interesse em objetividades jornalísticas naquela noite.

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O amor e respeito que a Escola tem pela baiana, é retribuído da mesma forma, como a paixão que dona Regina tem pelo Bambas

Lá embaixo, a quadra estava enfeitada com enormes bandeiras ilustradas com a águia branca e banners publicitários que anunciavam lanchonetes e salões de beleza. A lojinha da escola vendia canecas e camisetas com estampas “bambistas”. Enquanto as pessoas entravam aos poucos, um dos profissionais de marketing atravessou a quadra para nos contar que metade da escola iria para a Restinga naquela noite e, por isso, a festa estaria “fraca”. É comum as escolas de Porto Alegre convidarem umas às outras para os próprios ensaios e celebrarem juntas a preparação para o Carnaval. Mas havia outro motivo para a pouca presença do público, ainda que ninguém comentasse: na semana anterior, uma briga no meio da quadra deixou uma pessoa gravemente ferida. Mesmo assim, aos poucos, jovens, idosos, famílias com suas crianças foram chegando para acompanhar o show. Poucos bebiam; muitos vestiam azul e branco.

“Nós não temos uma comunidade, temos uma nação à nossa volta, e ela se estende em todo o território nacional. Temos simpatizantes no Rio de Janeiro, São Paulo, Macapá… a nação está em todo lugar” me corrigiu Cleomar Rosa, o presidente, quando lhe pedi para falar sobre as pessoas que compõem o Bambas. “É uma responsabilidade muito grande ser presidente de uma escola com 74 anos. Nós sempre vamos para a avenida querendo ser campeões, estar nas cabeças e fazer um belo espetáculo. A contribuição que a nação nos dá é vir nos nossos ensaios e nos nossos eventos”, ele completou, para depois voltar a reger os preparativos da noite.

A quadra é o coração da nação, para onde são carregadas as milhares de pessoas que vêm de todos os cantos da cidade e até da região metropolitana. Lá pelas 10 da noite, a escola começou a pulsar ao som da bateria cadenciada do Bambas – chamada de “Trovão Azul” -, antes de abrir alas para o grupo show reserva passar, cantando o samba-enredo “Sorria: Chegou bambas da Orgia!” . E os artistas foram descendo as escadas do andar superior da quadra, preenchendo o chão cinza com um mar brilhante azul e branco. Bambas… razão maior do meu sorriso/ Faço do palco paraíso/ “Ninguém foi mais feliz nessa avenida”, cantavam os integrantes, enquanto passistas sambavam e a porta-bandeira rodopiava. Foi bonito ver o público aplaudindo e beijando o símbolo da escola sempre que as porta-estandartes se aproximavam. Outro destaque foi a energia com que as baianas rodavam aquelas saias pesadas, tão rápido que os brilhos das lantejoulas se fundiam em feixes de luz.

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A bateria Trovão Azul utiliza uma escadaria na parte central da quadra para cadenciar a noite

Tudo isso era impulsionado pelo som impactante da bateria (com mulheres à frente) que, naquela noite, estava só com metade dos integrantes. O desfalque nem de longe diminuiu a imponência da batucada que contagia quem estiver por perto. E a festa seguiu por mais alguns minutos depois do ensaio, com samba-enredos antigos da escola, o que fez os integrantes cantarem alto as músicas dos anos 90 sobre a cultura indígena e as religiões afro. Quando os últimos batuques ecoaram, saímos para a estranha calmaria da Voluntários da Pátria ouvindo já as primeiras batidas da Banda Saldanha, a convidada do Bambas naquela noite. Se depender da dona Regina e da nação azul e branca, o coração ia seguir batendo forte noite adentro. O samba ia continuar muito vivo para quem quiser pisar na avenida.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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