Artistas do hip-hop são alvo de criminalização e abordagens policiais

Ester Caetano e Thaís Seganfredo
Foto: MC Cabelinho/reprodução

Tentativas de censura e criminalização do hip-hop têm se intensificado no país. Desde 2020, pelo menos 17 artistas do grafite, rap e funk foram alvo de abordagens policiais ou judiciais, além de terem obras de arte censuradas. Entre as alegações da polícia, estão desde supostos casos de desacato à autoridade até motivos diretamente associados aos produtos artísticos, como apologia ao crime. A onda de ataques parece ter se intensificado depois da prisão do MC Poze e do DJ Rennan da Penha, em 2019. Atualmente, ambos respondem às acusações em liberdade.

O Nonada ouviu artistas que foram abordados pela Polícia Militar (PM) ou até mesmo detidos no ato da criação de suas artes em 2020 e 2021. Eles descrevem uma abordagem hostil, com violência e ironia nas delegacias de polícia. Outros estão sendo investigados pela Polícia Civil (PC) por músicas ou videoclipes lançados. 

O rapper, comunicador e artista plástico Leser MC sofreu com uma abordagem da Polícia Militar de Ribeirão Preto, em São Paulo, quando estava grafitando uma área que já teria sido autorizada. Com dúvidas sobre essa autorização, um policial chegou a sacar uma arma durante a abordagem. O MC avalia que as intervenções não são feitas para preservação do meio ambiente, mas para frear os artistas, ação que está enraizada no racismo estrutural. “Essa pressão sobre o artista é porque existe uma dificuldade de reconhecimento do papel da arte na sociedade e o incômodo com as provocações que a arte faz na sociedade. Então, o artista é visto como um inimigo de quem quer manter o poder e a ordem e aí o artista periférico é em dobro porque ele é periférico, ele é preto e oferece todo esse risco a essa estrutura social e política. Nós oferecemos um risco muito grande para eles”, afirma. 

Leser MC pintava um mural quando foi abordado pela PM e teve uma arma de fogo apontada para sua cabeça (Foto: reprodução)

No Distrito Federal, Pedro Sangeon, Guilherme Silva e Renato Moll foram impedidos de reagir ou mesmo de dar qualquer explicação sobre a pintura que estavam construindo em um painel ao ar livre. Depois de deter os artistas, a Polícia Militar alegou em ocorrência que encontrou três homens pichando uma área pública. Pedro, um dos artistas envolvidos, diz que sempre existirá uma perseguição a grupos que se expressam contra o governo e contra os costumes reacionários. Sua obra, que está pela metade, iria colorir um muro de uma via pública com a palavra democracia. “O que vimos é que a atuação descabida da polícia conosco não foi pessoal, foi por eles acreditarem em uma fantasia delirante autoritária reacionária de comportamento social, onde todos devem temer e se subjugar, do contrário são instantaneamente considerados ‘inimigos do estado’, ‘inimigos do país’. E isso é um delírio autoritário que não podemos permitir que seja praticado”, relata o artista.

Já a artista Criola teve a justiça acionada para apagar sua  pintura que retrata uma mulher negra em um prédio de Belo Horizonte, em Minas Gerais. O autor da investigação, um morador do prédio, utilizou como base jurídica a lei nº4591/1964, do período ditatorial brasileiro, que já foi revogada. Na mesma cidade, o mural “Deus é Mãe”, que mostra uma mulher negra e seus filhos, de Robinho Santana, dentro do Circuito Urbano de Arte (CURA), foi denunciado por crime contra o meio ambiente. De acordo com organização, a obra foi alvo de uma “ação ilegal de cunho racista, que criminaliza artistas periféricos e a arte urbana”.  Os processos ainda correm no Judiciário.

Seguindo esta linha de criminalização, o funk é alvo histórico de tentativas de censura em diversas instâncias. Em 2017, uma proposta de criminalização do gênero foi levada ao Congresso, com a alegação de o ritmo ser “vagabundo”, incitar a violência e crime contra a saúde pública. Na dissertação “A criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica”, o mestre em Direito Penal pela USP Danilo Cymrot explica: “o funk é ameaçador porque, apesar de ter se popularizado, ainda é identificado com aglomerações de jovens negros, pobres e favelados, um setor visto de forma generalizada e estereotipada como ameaçador em uma sociedade racista e que não fornece estruturalmente os meios para realizarem de forma lícita as metas culturais”.

Uma obra da artista Criola sofre tentativa de censura por meio de um processo judicial (Foto: Marcos Ramos Enivo/CURA)

Os MC’s cariocas Cabelinho e Manerinho abordam em suas músicas questões da violência policial e a ascensão social de muitos funkeiros. Eles estão sendo investigados por apologia ao crime desde outubro de 2020, depois de uma notícia-crime do deputado  estadual Rodrigo Amorim (PSL), o mesmo que rasgou a placa com nome da vereadora Marielle  – e não foi alvo de nenhuma investigação. Os MC’s falaram sobre o caso em suas redes sociais, e entendem que são vítimas de uma perseguição aos jovens negros da periferia e a cultural do funk de favela. 

Algumas das tentativas de silenciamento dos rappers vêm a partir de músicas que abordam a violência policial ou a ação do crime no cotidiano do país. MC Bokão de Botucatu, São Paulo, também foi investigado por apologia ao crime em 2020, por causa de uma música na qual ele relata o assalto de uma quadrilha a uma agência bancária do município. “Fiz a música em cima das reportagens como todas as outras, o pessoal da cidade achou que eu estava envolvido. Eu já fui questionado que eu me coloco em ação, mas eu sou um personagem dentro da ação através das reportagens que eu vejo na televisão, estudo e retrato o que se passa.” O funkeiro conta que sua intenção era de contar com sua arte o que se passa na cidade dele. 

Na visão dos artistas, toda a perseguição e tentativa de criminalizar suas obras refletem o preconceito contra a classe e contra quem denuncia o descaso do governo contra as pessoas periféricas e negras. MC Leo do AK, rapper de Arraial do Cabo/RJ, teve seu videoclipe “O Rap não Morreu” criminalizado pela Polícia Civil, por apresentar armas de airsoft. A polícia alega ser um incentivo à violência. O rapper diz que sua arte retrata a vivência das comunidades e os desafios dos jovens moradores destes locais. Para ele, o poder público tenta sabotar todo um histórico de lutas e conquistas que os artistas conquistaram. Hoje em dia, o sistema quer boicotar os artistas, quer acabar com a liberdade de expressão. Porque muitos de nós, artistas, somos a voz de muitos que não a tem”, contesta o cantor.

Além das intimidações e da criminalização, a censura também vem sendo registrada contra os artistas do hip-hop, em especial contra os grafiteiros. Em maio de 2020, mesmo com a paralisação do setor cultural devido à pandemia, um mural criado pelo artista Lobão, com o rosto de Marielle Franco, apareceu pichado em Ribeirão Preto. O caso foi registrado no Observatório de Censura à Arte, iniciativa do Nonada que mapeia episódios de censura aos artistas no país desde o cancelamento da mostra Queermuseu, em Porto Alegre, em setembro de 2017. O relatório indica que pelo menos outros quatro grafiteiros sofreram censura desde então. 

Polícia Militar promoveu censura a artistas nos últimos anos

HQ Castanha do Pará foi censurada por shopping após pressão nas redes sociais (Foto: reprodução)

Boa parte dos ataques à cultura hip-hop e às culturas periféricas tem motivação na temática das obras, muitas das quais abordam ações da PM. Trabalhos de quadrinistas como Latuff e Gidalti Moura Jr. que denunciavam a violência policial contra os negros foram censurados, respectivamente, por parlamentares e por uma empresa privada.

A própria PM foi apontada como responsável pela censura de alguns artistas nos últimos anos. Um dos casos mais emblemáticos foi o ataque ao show de BNegão na cidade de Bonito/MS, em 2019. No episódio, a polícia interrompeu a apresentação logo após o artista tecer críticas contra o presidente Jair Bolsonaro. “Não só acabaram com o show, como expulsaram a galera empurrando, com cassetete, mostrando arma e jogando gás de pimenta. Estão tentando transformar [o Brasil] em um Estado policial. O prefeito falou depois que não é para fazer manifestação política. Então é censura total”, afirmou BNegão ao Uol. 

O Observatório de Censura à Arte registrou ainda casos de censura por parte de policiais que não ficaram tão conhecidos do grande público. Em fevereiro de 2020, o show da banda Janete Saiu para Beber, dentro do festival Carnabis, no Carnaval de Recife, foi interrompido por intervenção da Polícia Militar, no momento em que a banda tocava a música “Banditismo por uma questão de classe”, de Chico Science, que denuncia a violência policial. 

Em entrevista ao Observatório, o baterista da banda relatou: “Foi aí então que um dos organizadores pediu para que o show encerrasse naquele momento para não ter nenhum problema com a polícia. Eles [os policiais] disseram que Chico Science era ‘som de briga’, mas em nenhum momento teve confusão por parte do público.” Na época, a PM publicou nota oficial afirmando que a intervenção ocorreu porque a banda havia ultrapassado o horário previsto.

Em janeiro do mesmo ano, a PM interrompeu um ensaio aberto do grupo de maracatu Baque Mulher em uma praia de Matinhos/PR, além de apreender instrumentos e deter três  artistas. A censura ocorreu depois que a PM recebeu reclamações de moradores sobre o grupo, que ensaiava à luz do dia na orla. Um dos policiais chegou a usar palavras misóginas contra uma das coordenadoras. O ataque foi registrado neste vídeo. 

A equipe do Observatório de Censura à Arte segue recebendo denúncias através do email nonada@nonada.com.br.

Relatório: Artistas vítimas de tentativa de criminalização desde 2020

O Nonada mapeou casos de investigações, abordagens e detenções de artistas do grafite, funk e hip-hop em 2020 e 2021. O relatório seguirá sendo atualizado caso a reportagem descubra novos casos.

Leser MC – Elieser Pereira, rapper e artista plástico, sofreu abordagem da PM de Ribeirão Preto e teve uma arma apontada para sua cabeça quando pintava um mural ao ar livre. Os policiais duvidaram que ele tinha autorização para a criação da obra. Data: junho de 2020.

Pedro Sangeon, Guilherme Silva e Renato Moll – Os artistas foram detidos pela Polícia Militar em Brasília, por estarem trabalhando em um mural. Os grafiteiros relatam que sofreram violência na delegacia. Eles foram liberados após prestar depoimento. Data: junho de 2020.

MC Bokão – Em Botucatu, o artista é investigado pela Polícia Civil por apologia ao crime devido a uma música que falava sobre a ação de uma quadrilha que atacou uma agência bancária no município. Data: agosto de 2020.

MC Leo do K – O rapper é investigado pela Polícia Civil de Arraial do Cabo/RJ, por usar armas em um de seus videoclipes. O artista conta que a arma é de airsoft. Data: setembro de 2020.

MCs Cabelinho e Maneirinho – Após notícia-crime de um deputado estadual, os funkeiros passaram a ser investigados pela PC do Rio de Janeiro por apologia ao crime. Data: outubro de 2020.

Criola – Uma obra da artista é alvo de disputa policial ajuizada por um morador do condomínio onde seu grafite foi criado. Data: novembro de 2020.

MC Alexandre Fabuloso – O funkeiro foi detido em uma ação da Polícia Civil do Ceará, suspeito de promover uma organização criminosa. Data: novembro de 2020.  

MC Salvador da Rima – O artista foi detido pela PM de São Paulo com a alegação de desacato à autoridade e sofreu violência. O cantor é autor de diversas músicas sobre violência policial. Data: janeiro de 2021.

MC Kevin – A Polícia Militar registrou boletim de ocorrência contra o funkeiro por desacato à autoridade, por “debochar dos policiais” em São Paulo. Data: janeiro de 2021.

Organizadoras e cinco artistas do CURA – Organizadoras do festival Cura e cinco artistas responsáveis por um grafite estão sendo investigados por crime ambiental pela Polícia Civil de Belo Horizonte. A obra, pintada do lado de fora de um prédio na capital mineira, é de autoria do artista Robinho Santana e contou com a colaboração dos artistas de BH Poter, Lmb, Bani, Tek e Zoto. Data: janeiro de 2021.

Esta reportagem é uma produção do Programa de Diversidade nas Redações, realizado pela Énois – Laboratório de Jornalismo, com o apoio do Google News Initiative.

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