As muitas Asas Brancas

Por Caetano Braun Cremonini*

Tratemos de Asa Branca. Tratemos de Luiz Gonzaga. Tratemos do pernambucano de Exu, cantador do sertão e sanfoneiro do povo – aquele que, pelas caixas de som espalhadas por aí, acompanhado de zabumba e triângulo, ainda traz sorrisos e lágrimas aos rostos. Rostos que se perdem em fábulas sobre Sabiás, Assuns Pretos, Meninas e Asas Brancas que vão e voltam para o sertão. Tratemos de como a grande arte não morre. Reinventa-se pela mão de outros.

Soprando com força o sax alto, Spok empregava todo o ar de seus pulmões em uma homenagem a Luiz. Até então, ele e a sua SpokFrevo Orquestra já haviam transformado o Salão de Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre) em um grande carnaval pernambucano em show do último 14 de junho. Sozinho no palco modestamente iluminado, ele emendou numa longa e virtuosa improvisação para honrar o seu mestre inconteste.

Em sua homenagem solitária, Spok foi brincando, passeando com deleite por grandes clássicos gonzaguianos. Até que, como não poderia deixar de ser, emendou uma sentida e sofrida Asa Branca, soprando e vibrando, emocionando até os que nada sabiam do lamento sertanejo de Luiz. A seca que saía do sax parecia mais triste, o adeus à Rosinha parecia mais sofrido, a Asa Branca partia do sertão de maneira mais melancólica do que nunca.

Em 1971, Caetano Veloso lança o seu primeiro disco londrino. O então jovem artista, exilado na Inglaterra, finaliza sua obra com uma versão de voz e violão de Asa Branca. A música agora parece ter um significado novo na interpretação pungente de Caetano. O lamento do sertanejo que foge da seca que assola sua terra se confunde com a voz do jovem expulso pela brutalidade e estupidez ditatorial. Como o retirante de Luiz, Caetano aguarda “a chuva cair de novo” para voltar para o seu sertão. Saudosa e triste, Asa Branca agora parece mais apropriada à voz pequena e emotiva de Caetano do que à exuberância das sanfonas, triângulos e zabumbas.

Em seu grande disco de Montreux de 1979, Elis Regina termina a apresentação com a participação especial de Hermeto Pascoal. Ele, ao piano. Ela – é claro – cantando. Asa Branca é a música derradeira.

Hermeto parece ditar o ritmo da canção. Segue tamborilando acordes, inicialmente de maneira lenta e delicada, posteriormente atingindo um ritmo alucinante – quando, por alguma magia oculta, Elis não desafina em meio ao turbilhão lançado pelo alagoano. De súbito, ele se acalma e ela, com a voz afetuosa e divertida – como se o repreendesse docemente pelo furacão ao piano – se despede: “Intonce eu disse, adeus Hermeto, leva contigo todo o meu coração”. Com a sensibilidade dos poucos iluminados que caminham por aí, ele finaliza com uma encantadora valsinha, linda e frágil – perfeita para encerrar aquela nova Asa Branca.

Dessa vez não ouvimos a tristeza do abandono causado pela seca – seja a seca da terra de Luiz, seja a seca da saudade de Caetano. O que ouvimos é uma afetuosa despedida. Um até logo terno ao encantamento daquele momento mágico entre dois raros artistas.

Em dezembro desse ano, Luiz Gonzaga completaria cem anos. Das muitas lindezas que ele deixou para nós, Asa Branca é, provavelmente, a mais famosa. Parceria com Humberto Teixeira, a canção tornou-se ícone da falta d´água que assola o sertão nordestino e do ser humano que o habita. No entanto, Luiz é mais do que o “Rei do Baião”. E a Asa Branca é mais do que a canção da seca.

A arte do Luiz faz parte daquele raro tipo de arte que, tão grande é rica que é, vai além do seu significado inicial e óbvio. Luiz Gonzaga e a Asa Branca comportam muitos significados em si, e esses são clareados pelo tempo e pelas novas interpretações. Comportam Spoks, Caetanos, Elises e Hermetos. Comportam a tristeza, a saudade, a melancolia, o afeto. Comportam muitas Asas Brancas. Talvez porque a arte de Luiz converse com o que há de mais íntimo e próprio da nossa realidade humana. É daquelas artes que depende somente de humanidade. Esconde em si uma imensidão de significados. Vai ficar, durar para sempre, reinventada e revisitada, revelando cada vez um significado novo e diferente, uma interpretação a mais – tão grande que é. Continuará, como uma amostra do quanto de doce, do quanto de terno, do quanto de triste e melancólico – mas, sobretudo, do quanto de belo – a nossa pobre espécie pode produzir.

Pode apostar, a música de Luiz vai ficar soando pelo mundo por muito tempo.

*Estudante de Jornalismo da UFRGS

Compartilhe
Ler mais sobre
Processos artísticos Resenha

Cordel do Fogo Encantado volta para celebrar a poesia e as raízes brasileiras

Culturas populares Notícias Políticas culturais

Agentes de cultura popular reivindicam secretaria específica ao novo governo

Entrevista Processos artísticos

GG Albuquerque fala sobre a imaginação radical das estéticas periféricas do Brasil