9ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos estreia no RJ em uma sessão não tão democrática

Filme Que bom te Ver Viva, de Lúcia Murat, abriu a mostra no Rio de Janeiro (crédito: divulgação)
Filme Que bom te Ver Viva, de Lúcia Murat, abriu a mostra no Rio de Janeiro (crédito: divulgação)

Depois de Brasília (DF), Belém (PA), Florianópolis (SC), Natal (RN), Porto Velho (RO), ontem (dia 11) foi a vez de o Rio de Janeiro receber a abertura da 9ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos no Hemisfério Sul. Iniciativa da Universidade Federal Fluminense (UFF), realizada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República em parceria com o Ministério da Cultura, a mostra promete ser democrática e resgatar o direito popular à cultura. Será realizada em diferentes datas nas 26 capitais do país e em mais mil pontos de cultura. No entanto, a abertura carioca contava com lista de pessoas convidadas e não era aberta ao público, que apenas tinha acesso ao CCBB, local do evento, caso ainda houvesse lugares depois da entrada das pessoas escolhidas.

O primeiro longa exibido, Que bom te ver viva (1989, 100 min), de Lúcia Murat, integra a mostra de homenagem à diretora, que esteve envolvida com a resistência ao golpe civil-militar de 1964. A temática do filme – como conviver com as lembranças daquele período – conversa com o assunto da Mostra Memória e Verdade que, ao lado da Mostra Competitiva e da Sessão Inventar com a Diferença, compõem a 9ª Mostra.

Um erro técnico marcou a exibição do filme de Lúcia. A versão apresentada contava com closed caption (legenda completa do áudio, para facilitar o acesso dos deficientes auditivos) e também audiodescrição, voltadas para pessoas com deficiência visual. A versão correta, entretanto, deveria ser sem a audiodescrição, o que evidenciou o caráter não acessivo da abertura carioca.

Em Porto Alegre, a 9ª Mostra de Cinema e Direitos Humanos no Heminsfério Sul será realizada de 2 a 7 de dezembro. A abertura, com exibição do filme Que bom te ver viva, de Lúcia Murat, será dia 2 de dezembro, às 20h, na  Sala P. F. Gastal da Usina do Gasômetro (Av. Pres. João Goulart, 551, Centro). Todas as exibições do evento possuem entrada franca, com sistema closed caption e sessões que incluem audiodescrição.

Confira a programação em http://www.mostracinemaedireitoshumanos.sdh.gov.br/.

Onde você estava no final de década de 1960?”

Cartaz do filme, com Irene Ravache
Cartaz do filme, com Irene Ravache (crédito: divulgação)

Intercalando depoimentos reais de oito mulheres que lutaram contra o regime instaurado em 1964 e cenas ficcionais interpretadas pela atriz Irene Ravache, Murat revive, de certo modo, sua própria história em Que bom te ver viva. A diretora carioca foi presa e torturada  em 1971 e permaneceu enclausurada por três anos e meio, depois de seu envolvimento com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8).

Na obra, as mulheres contam como foram presas, como sobreviveram e como lidam com os traumas até a gravação do filme. Conhecemos a força de pessoas como Regina Toscano, epilética e grávida (perdeu o filho na cadeia), torturada ao ser presa em 1970; Roselina Santa Cruz, presa e torturada, cujo irmão ainda é “desaparecido”; Criméia Schmidt de Almeida, que perdeu o marido, o sogro e o cunhado na guerrilha do Araguaia e teve um filho nascido na cadeia, e Jesse James, presa em 1970 durante tentativa de sequestro de avião, torturada durante três meses e presa por nove anos, que também teve sua filha na cadeia.

Irene Ravache, tal qual os depoimentos reais, vê-se fora da tortura, mas ainda com as experiências à flor da pele e tendendo a ver um torturador em cada homem com que se relaciona. Como esquecer os dias em que foi subjugada e humilhada por ter sonhado com um mundo melhor? Como não descontar no resto do mundo que, apático, assistia às torturas do período? Quebrando a quarta parede ao falar diretamente para a câmera – ou seja, para o público -, a personagem questiona onde estavam as pessoas naqueles anos. O que fariam? Por que não se manifestaram contra tudo isso? O desconforto vindo das indagações da atriz causa uma importante reflexão no espectador.

Nos momentos ficcionais, vê-se um enquadramento e qualidade de gravação diferentes, o que reforça a autoria da obra. A atuação enriquece os depoimentos reais sem causar confusão, pois são claramente delimitados a um espaço e estilo próprios.

“Nossa guerra é menor ou nosso medo é maior?”

A necessidade de fala, de reconhecimento do que passou é um dos grandes questionamentos do primeiro filme de Murat. Traçando um paralelo com a situação dos judeus na Segunda Guerra Mundial, as personagens indagam-se como superar o passado sem fingir que ele não aconteceu. Se, por um lado, não falar do assunto pode agravar as sequelas, por outro a conversa não é fácil de ser conduzida e pode reativar os medos e fobias. As protagonistas encontram no seu círculo de convívio um enorme desconforto quando tentam falar sobre isso. Em alguns casos, são acusadas inclusive de revanchismo vil.

Assim, o tema, que possui algo de feio, de proibido, fica relegado ao convívio íntimo de cada torturada. Esta bandeira, afirmam, é muito pesada de levantar sozinha, mas não encontram força de vontade fora de suas próprias famílias. A personagem interpretada por Irene critica também a atuação da imprensa na cobertura dos casos. Segundo ela, o que diriam se Josef Mengele tivesse direito de resposta? Pois os torturados o têm, enquanto as torturadas serão vistas eternamente como terroristas. “Nem a um ‘ex’ na frente de guerrilheira nós temos direito nas reportagens”, indigna-se.

“Ter sobrevivido sem enlouquecer foi a nossa grande vitória, nossa grande vingança”

Apesar do desejo por justiça, é preciso encontrar forças para o “a vida continua”. O estímulo para seguir em frente, reencontrar as alegrias do cotidiano, surpreende até mesmo o psiquiatra de uma das entrevistadas. Muitas delas descobriram-se ainda mais fortes e, paradoxalmente, livres, quando tiverem filhos, até mesmo enquanto ainda estavam no cárcere. Jesse James, que estava grávida quando foi capturada, teve seu filho como um grito de liberdade e sobrevivência. “Tentaram acabar comigo. Eu respondi com a vida, com o nascimento do meu filho”, afirma.

Reescrevendo a história de 21 anos de ditadura militar brasileira, o filme não oferece respostas, mas reflexões. Não à toa, é dedicado “aos que foram torturados e romperam a barreira da sanidade”.

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