Sniper Americano: “Guerra ao Terror” em versão reacionária

Visão de Clint Eastwood sobre a Guerra do Iraque é conservadora como o esperado. (Crédito: Warner Bros./divulgação)
Visão de Clint Eastwood sobre a Guerra do Iraque é conservadora como o esperado. (Crédito: Warner Bros./divulgação)

Sniper Americano (American Sniper, EUA, 2014)

Direção: Clint Eastwood

Roteiro: Jason Hall, baseado em livro de Chris Kyle, Scott McEwen e James DeFelice

Com: Bradley Cooper, Sienna Miller, Sammy Sheik, Luke Grimes, Cory Hardrict, Kevin Lacz, Jake McDorman, Navid Negahban, Mido Hamada, Chance Kelly, Sam Jaeger e Keir O’Donnell.

A ânsia (em certos aspectos, compreensível) antiamericanista de muitos progressistas não raro faz com que estes rejeitem qualquer filme produzido nos EUA que retrate uma ação militar, rotulando-a de cara como um panfleto. Ora, tal postura não apenas é equivocada per se, como também acaba denegrindo projetos que nada tem de pró-militaristas. Filmes como Argo, Guerra ao Terror e A Hora Mais Escura (para ficar apenas em exemplos recentes) sofreram críticas bastante injustas de alguns espectadores – críticas estas que estariam muito mais à vontade mirando no novo trabalho de Clint Eastwood, mas que continuam sendo insuficientes por ignorar os méritos da obra, por mais questionável que esta seja.

(Crédito: Warner Bros./divulgação)
(Crédito: Warner Bros./divulgação)

Contando a vida do SEAL Chris Kyle (Cooper), que entrou para a história militar dos EUA como o mais mortífero sniper (160 mortes confirmadas, mas a soma total pode chegar a 255), o longa segue um arco temático levemente similar ao de Guerra ao Terror. Entrando para o Exército tardiamente, Kyle logo se destaca como atirador de elite durante a guerra no Iraque, mas, preso ao “vício” em adrenalina descrito por Jeremy Renner naquele filme, jamais consegue relaxar durante seus períodos em casa, tendo voltado outras três vezes ao Oriente Médio. Depois de deixar o Exército, continua participando de atividades junto a soldados veteranos, até ser baleado em 2013, em circunstâncias que o filme não se preocupa em explicar por que… bom, é mais um american hero (na realidade, foi morto por um veterano sofrendo de um severo estresse pós-traumático).

O que separa, então, os filmes citados anteriormente de Sniper Americano? Simples: sutis ou não, seus discursos claramente condenam as ações dos EUA na região, seja num contexto mais cultural (a conversa entre Ben Affleck e o ministro da Cultura iraniano em Argo) ou de personagens (a existência dos protagonistas vividos por Jeremy Renner e Jessica Chastein em Guerra ao Terror e A Hora Mais Escura é definida por sua obsessão a um trabalho que sacrifica qualquer vida fora dele). Já Eastwood, mesmo que retrate os custos pessoais enfrentados por Kyle, não contém sua simpatia pelo sujeito e mesmo por sua visão torpe dos acontecimentos – o que conduz à falta mais repulsiva do filme (que foi atribuída erroneamente a Argo): a barbárie é exclusividade dos iraquianos, que são tratados como “selvagens” pelos soldados americanos e, com apenas uma exceção, retratados como tais. Kyle jamais atira em alguém que poderia ser tomado como inocente; todos os alvos (até os mais improváveis) são colocados de modo a merecer os projéteis que recebem.

Paradoxalmente, isso acaba com qualquer pretensão propagandística do filme, pois Eastwood não “higieniza” o conflito do ponto de vista gráfico: mesmo mulheres e crianças não são poupados por nenhum dos lados; e algumas das ações vistas ali certamente não são para os espíritos mais sensíveis. Passando por um treinamento (em cenas que claramente bebem de Nascido para Matar) no qual o objetivo é ser o mais letal possível, e não preservar vidas, o processo de desumanização daqueles homens é evidente e Eastwood não busca mostrá-lo de outra forma. Assim, não deixa de ser um detalhe curioso que o ícone favorito dos soldados não seja mais o Capitão América (que, ufanismo à parte, foi criado para glorificar ideais mais elevados na luta contra o nazismo), mas o Justiceiro, provavelmente o mais reacionário personagem da galeria da Marvel com seu modus operandi de atirar primeiro e, se for o caso, perguntar depois. Eastwood não chega a glorificar tanto esse retrato, mas é inegável que ele está lamentavelmente próximo daquele visto em Fahrenheit 11 de Setembro.

(Crédito: Warner Bros./divulgação)
(Crédito: Warner Bros./divulgação)

Dessa forma, com um papel pouco simpático, Bradley Cooper se sai bem ao viver um personagem relativamente atípico para os padrões hollywoodianos, já que não chega a possuir um arco dramático. Sim, é evidente que a entrega de Kyle ao dever militar perturba seu casamento e por fim o leva a desenvolver estresse pós-traumático, mas esses problemas somem em questão de minutos, parecendo estar lá apenas para ressaltar sua breve existência. Seguindo a lógica paterna de usar da violência para proteger outros, Kyle não parece enfrentar grandes questionamentos com relação às mortes que provoca e seus arroubos de agressividade são sempre justificados por seu desejo de proteger outros – ainda que Cooper (acertadamente) deixe transparecer certa psicopatia, uma das poucas concessões do filme à declaração do verdadeiro Kyle de que de fato gostava de matar inimigos (embora afirme “não estar contando” a quantidade de tiros certeiros, Kyle claramente aprecia a popularidade e autoridade que eles lhe conferem sobre os colegas de farda).

No entanto, deixando de lado o fato de que o filme assume seu próprio reacionarismo (mesmo que não chegue a convidar o espectador a abraçá-lo), é possível apreciar Sniper Americano em algum nível? Sim. Como dito, o filme merece aplausos por não se esquivar da violência gráfica (de ambos os lados) e, por mais que alguns momentos irritem pela forma deslocada com que surgem (a câmera lenta durante o confronto final com o “vilão” é embaraçosa), Eastwood conduz os combates de maneira exemplar, explorando a geografia das cidades para ressaltar a quantidade de lugares que podem ocultar um atirador, o que as torna uma ameaça permanente. Da mesma forma, o carisma de Cooper é capaz de manter o espectador minimamente interessado mesmo quando o filme não parece estar indo a lugar algum.

Mas verdade seja dita: que Clint Eastwood, um conhecido republicano, só poderia fazer um filme conservador sobre a guerra do Iraque já era algo praticamente certo desde que seu nome foi associado ao projeto. A surpresa (que torna o filme assistível) é que não trai o espírito profundamente desumanizado que aquele conflito representou. Ao menos nesse aspecto, não se pode acusá-lo de ser desonesto.

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