por Gustavo Melo Czekster
No início de O último leitor, Ricardo Piglia conta a história de um fotógrafo que, no interior da sua casa, mantinha uma réplica exata e em escala reduzida de toda a cidade de Buenos Aires. Não era uma simples maquete: nela, o homem – que o escritor acabou conhecendo e disse ter o nome de Russell – registrava de forma obsessiva as mudanças assumidas pela capital da Argentina, em uma tarefa hercúlea. Ele acreditava que a cidade real dependia da sua cópia, e que a maquete espelhava não só os prédios, casas e praças do mundo verdadeiro como as suas memórias do local em que outrora vivera. As cidades real e imaginária sobrepunham-se, em uma carnificina delirante, pois “a tensão entre objeto real e objeto imaginário não existe, tudo é real, tudo está aqui, e nos movemos entre os parques e as ruas deslumbrados por uma presença sempre distante”. Após encontrar Russell e se impressionar com os detalhes insanos da maquete, Piglia conclui que tudo o que uma pessoa pode imaginar sempre existe, em outra escala ou em outro tempo, como se fosse um sonho.
Existem dezenas de textos escritos sobre a Feira do Livro de Porto Alegre. Eles foram feitos não somente por grandes prosadores, como por poetas, por celebridades, por jornalistas, e até mesmo por crianças e adultos cujos nomes desaparecem da recordação assim que são lidos. A Feira do Livro é um grande repositório de metáforas e de imagens poéticas (“à sombra dos jacarandás em flor” corre o sério risco de ter se transformado em um clichê pelo uso excessivo, irresponsável). Já foram escritos textos memorialistas, outros nostálgicos, outros engraçados, sem esquecer os analíticos e os meramente descritivos. É um rito de iniciação: no Sul do Brasil, para alguém ser aceito como escritor ou como artífice das palavras, é obrigatório falar sobre o seu maior evento literário.
Lendo alguns textos e recordando de outros, em nenhum deles acho a minha Feira do Livro. Em comum entre eles, existe uma necessidade extrema de colocar em palavras algo que excede em muito a capacidade delas. Se alguém passasse vinte dias descrevendo cada mínimo acontecimento da Feira do Livro de Porto Alegre, cada pessoa que passou pelos estandes de livros, cada nuance de cada exemplar vendido em cada caixa de saldos, ainda assim teria tanta clareza quanto o poeta que passa pela extremidade da Feira e improvisa um haikai sobre o vento que se insinua nas páginas dos livros, vindo do rio. Leio muitas descrições de uma Feira que se parece com a minha, mas nenhuma corresponde àquela impressa na minha memória. São Feiras do Livro, sim, e acontecem em Porto Alegre no mesmo período no qual a minha Feira transcorre, mas é como olhar um poste no meio da neblina, a estrutura sólida desfazendo-se em meio à cerração, ondulando em torno da sua (agora) improvável forma vertical. Muitas Feiras do Livro moram dentro da Feira do Livro de Porto Alegre e, em algumas delas, ainda existem jacarandás em flor.
Não encontrei nenhuma descrição da Feira do Livro contando que, nos anos 80, o melhor ponto para comprar livros não era entre as bancas na Praça da Alfândega, mas na livraria Papyrus, que ficava ao lado e fornecia o mesmo desconto. Ainda recordo de quando entrava na livraria e enxergava pilhas de clássicos, todas maiores do que as pessoas, e uma série de interessados andando, como minotauros entorpecidos, por entre aqueles labirintos de livros a se equilibrarem com dificuldade.
Procurei algum texto sobre a Feira do Livro que lembrasse quando eu, com oito anos de idade, fui levado pelo meu pai para pegar um autógrafo do Mario Quintana em Pé de pilão. Ele estava ao lado de Bruna Lombardi, que autografava Gaia. Na época, estranhei muito que o poeta não percebeu a minha existência, a atenção fixa nos olhos verdes de Bruna. Esta sim me abraçou e beijou, autografando o exemplar de Gaia que meu pai comprara – diz ele – por cortesia com a atriz “de fora” (leia-se “fora do Estado”), pois o objetivo principal era encontrar o Mario Quintana e me apresentar “um escritor de verdade”, mas existem divergências familiares sobre este episódio. O fato do exemplar autografado por Bruna Lombardi ainda estar na casa dos meus pais e o Pé de Pilão ter desaparecido nas brumas das prateleiras diz muito a respeito das ironias da literatura, este eterno “Ozymandias”, e suas escolhas de sobrevivência.
Entre todos os textos que tratam da Feira do Livro, nenhum deles tece elogios à minha capacidade de descobrir obras espetaculares no meio das caixas que vendem livros em promoção, os famosos “saldos”. Contudo, tal omissão se justifica, pois conheço pessoas mais hábeis do que eu nesta arte, de conseguir literatura de qualidade gastando pouco. Nenhum escritor ou jornalista se debruçou sobre as chuvas que costumam atacar a Praça da Alfândega, ninguém as descreveu com a riqueza de particularidades que só quem já esteve encharcado e encolhido de frio debaixo de um toldo é capaz. Por muitos anos, achei que a inesperada confluência de milhares de livros no mesmo local era capaz de conjurar intempéries naturais. Livros são perigosos, e deixar todos eles em alegre comunhão pode acabar resultando na construção de uma obra de inesperada raiva. Ou as pessoas acham que os livros ficam a noite toda em silêncio, esperando as bancas abrirem?
Nenhum texto conta que, no decorrer dos anos, a Feira do Livro deixou de ser um local onde eu adquira livros (compro só de vez em quando, semelhante a um caçador aposentado que retorna às savanas e dá uns tiros inofensivos só para resgatar a emoção da caça de outrora). Nos últimos anos, para mim, a Feira do Livro virou uma experiência estética, pois mergulho nos museus do Centro de Porto Alegre e embebedo-me de arte, almoço nos restaurantes mais significativos da cidade, tomo café nos lugares da minha adolescência, assisto algum bate-papo interessante. Quando cansado, passeio entre as bancas e vejo as demais pessoas comprando livros, conversando sobre eles, pedindo títulos estapafúrdios aos livreiros e batendo boca entre si. Nos últimos anos, passeio na ala infantil da Feira do Livro com mais prazer do que na parte adulta, sonhando com o dia em que pedirei um livro e não iniciarão o diálogo perguntando se é para menino ou para menina: compro livros pela história, e não existe nada mais desprovido de classificações do que uma boa história
Infelizmente, ninguém contou das sessões de autógrafos em que estive presente nos últimos anos, das risadas trocadas nas filas, dos escritores e escritoras que conheci. Ninguém falou das palestras e bate-papos de que participei, e das perguntas esdrúxulas. Ninguém mais recorda da discussão pública que tive, nos meus 15 anos de idade, com José Clemente Pozenato em uma palestra, e é provável que nem ele mais lembre – o que acontece na Feira do Livro fica na Feira. Ninguém contou a história da bela moça que pespegou um beijo em Julio Cortázar, agradecida pela obra que tanto lhe encanta, com a ilusão algo esperançosa de fazer a imagem de papelão do escritor argentino criar vida (algo que o próprio Cortázar consideraria mote para um ótimo conto). Ninguém falou dos patronos da Feira caminhando por entre as alamedas da Praça, cumprimentando as pessoas, os olhos de escritor atentos a cada mínimo movimento, querendo que aquele momento dure para sempre, mesmo com a noção de que a magia do instante é justamente saber que ele vai acabar.
Por mais versões da Feira do Livro de Porto Alegre que eu leia, nenhuma dará conta do dia em que subi ao palanque de autógrafos não mais como leitor e fã, mas como escritor. Nenhuma descrição será suficiente para passar o desconforto delicioso do banco, o raspar da caneta na folha em branco, as pessoas que nos olham de longe, meio temerosas, mas risonhas, o burburinho quase invisível que os livros fazem quando se assanham ao redor dos autores, o ruído de fundo da voz elegante anunciando o meu nome no alto falante (alguns anos ela acerta a dicção do meu sobrenome, em outros não, e é sempre divertido descobrir o que vai acontecer).
Assim como a cidade em miniatura descrita por Ricardo Piglia, a Feira do Livro de Porto Alegre contém muitas Feiras no seu interior. Cada pessoa que a frequenta tem a sua própria visão. Por mais que se tente entendê-la, a Feira do Livro é uma experiência individual, uma catarse inexplicável que, apesar de tudo, tentamos explicar. Caminho pelas curvas e canteiros da Praça da Alfândega e todas as minhas Feiras do Livro se sobrepõem: vejo livros oscilantes negociando com a gravidade na livraria Papyrus; vejo crianças correndo; vejo a água da chuva do passado subir entre as bancas; vejo jovens procurando a voz da sua adolescência entre os livros; vejo Quintana embevecido com Bruna Lombardi; vejo obras de arte no MARGS que se confundem em um amálgama indistinto de onde salta um fio, uma aresta, uma impossibilidade; vejo cafés fumegantes; vejo a moça sorrindo, brejeira, logo depois de beijar o papelão na forma de Cortázar; vejo Pozenato apontando o dedo na minha direção e erguendo-se da cadeira; vejo a mim mesmo sentado na praça de autógrafos; vejo as árvores inclinando-se em reverência aos livros; vejo os jacarandás em flor, dormindo nas sombras dos prédios, e sei que somente um clichê é capaz de dar conta de tudo aquilo que a Feira do Livro de Porto Alegre representa.
Todos os tempos acontecem ao mesmo tempo dentro da minha Feira, e pensar que cada pessoa possui a sua própria visão do evento, com suas histórias, misérias e grandezas, me conduz à ideia de que não existem só muitas Feiras do Livro, mas elas são igualmente infinitas. Às vezes, passeando por lá, tenho a incômoda impressão de que estou sendo vigiado. Algum livro, escondido no meio de uma banca, acompanha meus passos à distância. Talvez todos nós sejamos fantasias dos livros que se derramam pela Praça. Eles sonham a nossa vida, planejam as nossas alegrias e tristezas e, uma vez por ano, olham como estamos indo e se congratulam ou entristecem em silêncio. Não somos nós que fazemos a Feira do Livro de Porto Alegre, mas acho muito possível que sejamos um sonho dos livros que fazem parte dela.
Como era de se esperar, lancei muitas dúvidas inquietantes e fui incapaz de escrever sobre a Feira do Livro. Em “O último leitor”, Piglia comenta que, quando estamos muito próximos de um objeto, como andar dentro da cidade, somos incapazes de enxergá-lo, falando sobre a necessidade imperiosa do leitor de se isolar. Não sei como descrever a Feira, pois eu a vivo, e estou dentro dela. É possível que a melhor descrição para a Feira jamais será escrita, pois está contida no brilho dos olhos de uma criança que chega pela primeira vez na Praça da Alfândega. Ela não sabe ainda, mas, naquele momento, está começando a sua própria Feira do Livro de Porto Alegre. Está iniciando o sonho de outro livro.
O Crédito da foto da capa é do Luis Ventura
Belíssimo!
Que lindo texto! Digno da nossa Feira do Livro e dos amantes dos livros.