Deus, fé e a história de uma santa suicida

veredas-banner-300x300px (1)Conforme o Catecismo da Igreja Católica, “(…) Somos os administradores e não os proprietários da vida que Deus nos confiou. Não podemos dispor dela”. (§2280). Ou seja, o suicídio é considerado uma transgressão grave.

Subvertendo essa ordem, a escritora Micheliny Verunschk conta em seu livro não apenas a história de um suicídio, como também a de uma santa que se mata. Na obra, recém congratulada no Prêmio São Paulo de Literatura, na categoria Melhor Romance de 2015 (autor estreante acima de 40 anos), a autora transforma o pecado em redenção. Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (188 págs., Patuá) é provocador, reflexivo.

(…) Num mundo em que homens e mulheres pudessem, sem culpa ou danacões, se apoderar de suas vidas e mortes, Deus seria condenado ao vazio, como um velho que esclerosa e vai sendo despido, graciosamente, e aos poucos, do respeito grave com que era considerado quando em uso da razão (…)

É o narrador intruso quem apresenta a história, e já começa alfinetando a personalidade, digamos, de Deus, um ser visto por ele como egocêntrico, quase mimado, incoerente e, por vezes, cruel. O retrato é feito, entretanto, com humor e escárnio. Cita passagens históricas de suicídio que, segundo o narrador, são amortecidas ou mesmo ocultadas, como Sansão que optou pelo ato quando arrastou as colunas do templo para se vingar dos filisteus. Lembra ainda a egípcia Santa Apolônia “que ardeu numa pira por vontade própria” para não renunciar sua religião.

Após a contextualização é que conhecemos aos poucos a menina Teresa, moradora da cidade de V. A obra ganhou neste ano o Prêmio São Paulo de LiteraturaEm sua primeira aparição, ela é apresentada ao leitor como morta, um “feitio de rosa que, fervendo num jorro, abria pétalas de um vermelho violento se espalhando nos vãos do piso”. Uma das tantas belas imagens descritas por Micheliny. A partir daí surgem os comentários e considerações argutas do narrador sobre a morte, histórias de santos canônicos, a relação dos moradores da pequena cidade de V. com a fé e o surgimento da devoção popular naquele lugar. O relato de milagres através dos tempos – e seus requisitos para serem considerados como tal – é exposto, em algumas ocasiões, de forma quase protocolar. Assim como a classificação de aparições “sensitivas e não sensitivas. Autênticas e não autênticas. Diretas ou intermediárias” dos candidatos a santos.

Num lugarejo com tão poucos livros e tantos templos, com tão pouca arte e tantos bares, a queda não se torna coisa rara.

A todo o momento o narrador convida, desafia e debocha de quem o lê. Adota uma voz que remete à narrativa oral das cidades pequenas. Exibe o tipo de erudição adquirida empiricamente, bem articulada. Micheliny conta que procurou a voz do narrador “um pouco na postura arrogante de Dom Casmurro e outro tanto no pessimismo de José Saramago”. Ele cria outras histórias, imagina, por exemplo, uma biblioteca formada de bilhetes deixados por suicidas. Passeia entre o passado, presente e até mesmo o futuro. Revela a intimidade daqueles que decidiram tirar a própria vida.

Entre os temas secundários da obra estão o exercício – ou não – da fé, a religião e o fanatismo.  Este último, inclusive, apresenta diversas faces no livro, e não apenas aquela comumente associada a grupos de terroristas islâmicos, apenas para citar um caso. Micheliny não tem receio de investir nas zonas cinzentas da complexidade humana. Os pais de Teresa, uma santa, nunca frequentaram a igreja na cidade de V., eram ateus. Os posicionamentos do narrador são acompanhados de dúvidas ou negações. “O narrador está sempre em confronto com o leitor e sempre fazendo com que ele oscile entre certezas e incertezas”, explica a escritora.

E embora não fossem exatamente livres [pais da santa], aspiravam à liberdade. E por aspirarem à liberdade, deixaram que Teresa experimentasse o fanatismo reinante, droga danosa, sem retorno. Tentaram, é claro, ponderar com a menina, apresentaram filósofos, poetas, uma gama de pensadores, teorias.

Teresa, no entanto, não está cercada pelo melhor grupo de religiosos, corruptos ou pedófilos. Intercalado a isso, o narrador menciona ainda crimes cometidos pela Igreja no decorrer da história. Para Micheliny, criticar tais temas talvez seja uma forma de tocar em uma ferida – pelo menos para uma parte dos leitores e escritores – especialmente com o protagonismo cada vez maior de práticas de intolerância ligadas às religiões, como ela afirma. “Mas veja bem”, adverte a escritora, “embora a narrativa se situe no cenário da Igreja Católica o que você chama de crítica é dirigida mais a essa postura que, infelizmente, não escolhe religião”.

Durante a leitura é impossível não observar os apontamentos do lugar e do não-lugar da mulher na religião e na sociedade. Ressalta-se o fato de que a maioria das santas são mulheres jovens, “no auge da beleza e da saúde reprodutiva”. Há uma passagem do livro que conta sobre a sina das mulheres na cidade de V., que, por falta de opção, raramente deixam de se casar e ter filhos. Toma-se conhecimento também da história de Severa, bisavó suicida de Teresa, que se questiona, prestes à sua morte, “de que vale a vida de uma mulher naqueles tempos”.

Micheliny ganhou neste ano o Prêmio São Paulo de Literatura (Foto: divulgação)
Micheliny ganhou neste ano o Prêmio São Paulo de Literatura (Foto: divulgação)

A postura é intencional para Micheliny, já que o trabalho do autor, segundo ela, é de atenção e de intenções. “Para mim é sempre importante refletir sobre o lugar da mulher ainda mais com os desafios enormes que temos enfrentado na sociedade. Não por acaso Teresa é uma personagem difusa, sempre dita pelo outro.” De fato, sabe-se muito pouco de Teresa, sua figura é construída pelos depoimentos que surgem a seu respeito no decorrer da história. Quase como um documentário.

O livro traz ainda uma ladainha, uma ideia de mostrar que todos ou quase todos os santos são pessoas comuns. “O povo é que estabelece o que chamo de agricultura celeste. Mesmo na Igreja”. Entre as santidades, encontram-se nome de santos não canônicos e canônicos, como Santa Maria Degolada, Doméstica Zita, Aurélia Petronila, Nossa Senhora do Crack e Santa Teresa Suicida.

Micheliny é mestre em Literatura e Crítica Literária pela Puc-SP. No início do mês de dezembro apresentou, na mesma universidade, a tese Eu matei a santa: devoções populares e multimediações, na qual relaciona as devoções populares não canônicas com o modelo de evangelização guadalupeano do continente latino-americano. “Nela, trabalho questões relativas ao barroco mestiço e a ideia de que estamos continuamente em processos de mestiçagem cultural, o que torna o pensamento binário não aplicável a essa paisagem”, explica ela. A grosso modo, acrescenta, poderia dizer que sua tese trabalha os reflexos de Nossa Senhora de Guadalupe, que já chega ao México como mestiça da Península Ibérica, nos santos não canônicos.

Para o ano que vem, no segundo semestre, a autora publicará o livro Poesias reunidas, pela Martelo Editorial. Enquanto isso, ela escreve um novo romance chamado provisoriamente O amor, esse obstáculo que conta a trajetória de um serial killer pré-adolescente num cenário inóspito.

Protagonismo em premiações não é favor 

A pernambucana Micheliny Verunschk também é autora de Geografia íntima do deserto (Landy, 2003), O observador e o nada (Edições Bagaço, 2003), A cartografia da noite (Lumme Editor, 2010), e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014) – todos de poesia. A escritora foi finalista, em 2004, do prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia íntima do deserto.

Nossa Teresa: vida e morte de uma santa suicida (Patuá) foi contemplada com o patrocínio da Petrobras Cultural. Levando em conta os temas que são abordados no livro, Micheliny acredita que, se dependesse exclusivamente de uma editora, sentiria dificuldade. Ela considera o mercado editorial uma selva. “O livro foi recusado por três editoras antes da publicação. Uma delas chegou a me procurar depois do edital, no entanto, já havia acertado com a Patuá e não voltei atrás, embora fosse uma editora grande”, conta

Na época, a escritora conversou por e-mail com o editor da Patuá, Eduardo Lacerda, e apresentou o livro a ele, que logo aceitou a obra. Também em uma troca de e-mails, o próprio Lacerda informa ao Veredas. “Estamos procurando mais e mais escritoras para publicação. Aqui recebemos cerca de 70% a mais de livros de homens”.

Neste ano, as mulheres se destacaram entre as premiações literárias. Ainda que esteja em lento processo de mudança, Micheliny enxerga as mulheres como minoria em prêmios, mesas e programações. “Ser a única mulher premiada ou indicada numa situação dessas não é honroso”, adverte, ressaltando que a situação deve ser motivo de reflexão. “Mas veja bem, não estou pedindo ‘cotas’. Quero mais mulheres nesses cenários como reconhecimento de um bom trabalho e não por ser mulher apenas. Literatura de qualidade feita por mulheres só é exceção para quem não quer ver. O protagonismo recente nas premiações não é favor, é fruto de muito trabalho e de uma luta por visibilidade.”

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Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
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