Fotorreportagem: O Feminino Sagrado na Mitologia Africana

Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã dançaram para mim. Ao som de tambores, dançaram para mim. Rodaram suas saias, contaram sua história. Me fizeram chorar e dançaram para mim. Na noite do último sábado, o Teatro Bruno Kiefer estava com lotação esgotada, 200 lugares ocupados e uma fila lá fora apostando na chance de conseguir entrar. Todos queriam assistir ao espetáculo de dança O feminino sagrado: um olhar descendente da mitologia africana, com a direção impecável de Iara Deodoro. O único lugar que encontrei para sentar foi uma singela vaga na escada ao lado de uma fileira de poltronas.

Tendo como pano de fundo as narrativas das orixás femininas – as Yabás Oxum, Iansã, Iemanjá e Nanã – as bailarinas e bailarinos contaram através da dança as diversas faces da resistência da mulher. Era 20h40min quando os tambores e a cantoria deram o sinal para que as bailarinas surgissem ao palco. Uma a uma, as quatro Yabás se apresentaram, com a leitura prévia, de uma voz em off, de poemas que enfatizavam a força, bravura e a delicadeza de cada uma. Infelizmente uma abordagem pouco explorada e discutida, pelo menos artisticamente: o arquétipo feminino da mitologia africana.

Como o material de divulgação do espetáculo esclarece, as personagens precisam enfrentar o machismo – sim, até mesmo elas – como na lenda de Oxum (Maria da Graça Penha). A yabá me hipnotizou com o seu sorriso doce e passo leve, nem sei ao certo se seus pés tocaram o chão. Suspeito que ela me abraçou, ou eu a abracei.

Em seguida, foi a vez de Iansã (Edjana Deodoro), sob a pele de um búfalo, mostrando sua vivacidade e força. Talvez fosse a música, talvez a iluminação (Paulo Renato Costa), que teve um papel fundamental nas apresentações, talvez porque eu seja filha de Oiá, talvez porque, naquele dia, lá fora chovia e ventava: eu também quis dançar. Iemanjá (Leciane Ferreira) trouxe o mar ao palco e lembrou os pescadores sobre a importância da fé. Ao seu lado, bailarinos fizeram a festa com a Senhora das Águas. Iemanjá voltaria em seguida para participar de uma das representações mais emocionantes. E veio Nanã, representada por Iara Deodoro. Eu acreditei que ela fosse a própria yabá. Conta a lenda que o filho de Nanã nasce com chagas na pele. Velha e sem condições de cuidar da criança, ela o deixa na beira do mar.

Enquanto Nanã se despede em dança, com o filho no colo, sua dor me toca. Impossível não se emocionar. Nanã vacila, mas avança. Como a própria Iara disse ao público, no final do espetáculo, é preciso muita coragem para assumir que não se consegue mais criar um filho. Nanã vai adiante. Próxima a mim, uma mulher chora na plateia. Iemanjá, ao encontrar o bebê, pega-o em seus braços e o cria como seu. Na passagem do tempo, com Obaluaê já adulto, Iemanjá chama Nanã e o apresenta ao seu filho: “Nanã, este é nosso filho”. A cena construída através de uma coreografia tocante e muito expressiva foi de uma delicadeza profunda. No escuro, meu rosto está lavado em lágrimas. Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã dançaram para mim. Me fizeram chorar e dançaram para mim.

——

Produzido pelo Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomode, em parceria com o Coletivo Montigente, o espetáculo fez parte de uma série de atividades do Projeto Odomulher, que propõe promover a valorização do trabalho e as atividades desenvolvidas por mulheres da comunidade e personagens femininas que se destacam cena cultural. O evento também faz parte da 4ª edição do Quilombo Quintana, uma parceria do Coletivo Montigente com a Casa de Cultura Mário Quintana, que trás todo dia 20 de cada mês espetáculos protagonizados por artistas negros.

Confira a reportagem fotográfica (por Douglas Freitas):

Compartilhe
Jornalista freelancer na área cultural e graduanda no Bacharelado em História da Arte (Ufrgs) e escritora. É autora do livro de contos “Como se mata uma ilha” (Zouk, 2019).
Ler mais sobre
Coberturas Direitos humanos

Graça Machel faz chamado ao poder popular em conferência no Fronteiras do Pensamento

Processos artísticos Reportagem

Corpo tem sotaque: como mestra Iara Deodoro abriu caminhos para a dança afro-gaúcha

Direitos humanos Notícias Políticas culturais

Unesco sugere salário mínimo a todos os trabalhadores da cultura