Editorial: Há algo de estranho ocorrendo na cultura de Porto Alegre

…e não estamos falando apenas da decisão inédita do prefeito de cancelar os recursos para as escolas de samba no Carnaval deste ano, invisibilizando ainda mais a cultura negra, tão pouco incentivada pelo governo. Nem das exigências descabidas da prefeitura no edital de ocupação da Usina das Artes. Tampouco nos referimos ao atraso no pagamento dos artistas, que o Nonada informou em primeira mão (muitos já estão sendo pagos, mas não há sequer previsão para os vencedores do Fumproarte de anos atrás). Poderíamos citar ainda o anúncio de que Organizações Sociais vão passar a gerir os equipamentos culturais da cidade (explicamos o que são essas organizações aqui).

Falamos, isso sim, do aguardado retorno do Festival de Inverno, tradicional festival cultural da cidade que ficou conhecido por promover eventos artísticos e de formação oferecidos por diversos valores. Em 2013, última edição antes da atual, as atrações variavam entre R$0 e R$60, reunindo artistas e intelectuais locais e alguns convidados “de fora”. Enquanto Eric Nepomuceno falava sobre García Márquez por 5 realidades, por exemplo, músicos locais subiam aos palcos para tocar do rock ao funk, grupos de teatro apresentavam seus espetáculos.

A edição deste ano trouxe algumas novidades. Para começar, o valor fixo de R$40 reais para cada atração conforme o site da prefeitura (ou mesmo R$100 para o passaporte livre) não é nada acessível a boa parte da população da cidade. Ainda assim, tivemos eventos bem interessantes, como o passeio literário pela cidade, com Luis Augusto Fischer e Glênio Bohrer e as palestras sobre escritores da América Latina. A programação está menos artística e mais intelectual, o que teoricamente não é algo negativo quando há respeito à pluralidade, conforme Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural da ONU. 

O problema, como já se anunciava no começo do governo Marchezan, está na ausência de diversidade cultural, comum quando a iniciativa privada se envolve na gestão cultural (Lei Rouanet que o diga). O único representante das artes cênicas foi um dramaturgo parisiense. Cadê o amplo espaço para os grupos locais que o Festival destinava no passado? A cultura popular e das comunidades tradicionais, quase sempre escanteadas na cidade, também não apareceram. Infelizmente, a prefeitura foi na contramão do desenvolvimento cultural da atualidade ao criar uma programação majoritariamente branca, masculina e cis.

Houve ainda aberrações, como a palestra de Leandro Narloch, O Guia Politicamente Incorreto da Escravidão, na qual o escritor branco discorreu sobre como a feijoada seria supostamente europeia, entre outros elementos que difamam a cultura afro-brasileira. É inaceitável um governo brasileiro destinar recursos e equipamentos oficiais a obras historicamente irresponsáveis e extremamente ofensivas em um país onde a escravidão segue sendo um tabu que provocou profundas feridas sociais.

Outra característica foi a total falta de transparência acerca do financiamento, que resulta também na falta de critério para o pagamento dos artistas e palestrantes. Não há qualquer documento oficial que apresente as contas desse evento. Sabe-se que ele foi realizado, em parte, com o patrocínio de empresas como a Panvel e a Fleming. Sabe-se também que, enquanto dois convidados de fora do estado receberam entre R$2.700 e R$5.400 sem exigência de licitação, conforme publicado nesta segunda-feira (31/07) no Diário Oficial, artistas locais que estão na programação foram avisados que vão receber “algum cachê”, mas não sabem quando nem quanto.

Uma pesquisa rápida no Portal da Transparência de Porto Alegre revela que os recursos dos dois convidados foram retirados do Funcultura. De acordo com o Observatório da Cultura de Porto Alegre, o Funcultura é destinado às despesas com a programação própria da Secretaria Municipal de Cultura. (Como abordamos na notícia que revelou a dívida da prefeitura com os artistas, tanto o Funcultura quanto o Fumproarte deveriam receber, em tese, no mínimo, 3% do Fundo de Participação dos Municípios – recurso da União -, mas isto não estava, até este ano, sendo cumprido no caso do Fumproarte).

O mesmo vale para a Universidade Aberta, projeto que a gestão de Marchezan lançou este ano, que promove cursos (alguns temas abordados até agora foram Paris e a dicotomia direita/esquerda na política) por valores similares ao festival. Novamente, não há qualquer processo de seleção aberta dos participantes, nem se sabe se os palestrantes foram remunerados.

Marchezan, Porto Alegre não é sua empresa. O Estado, no âmbito das políticas culturais, deve incentivar a produção e a fruição de cultura, o que não significa que os integrantes da equipe podem selecionar sem critério quem recebe apoio – e, principalmente, recursos financeiros. A cidade parece viver um caso atípico em que a prefeitura centraliza a produção cultural sem regulação, mas com apoio da iniciativa privada, quando seu papel é incentivar a autonomia das expressões culturais, fortalecendo as ferramentas necessárias para isso, a exemplo dos fundos de financiamento e dos equipamentos culturais.  

O prefeito descumpre o Plano Municipal de Cultura (lei 11.911/2015), instrumento que serve justamente para evitar arbitrariedades, aprovado depois de amplo debate. Só para citar os incisos III e IV do artigo 4º, é dever da prefeitura:

III – fomentar a cultura de forma ampla, por meio da promoção e da difusão, da realização de editais e de seleções públicas para o estímulo a projetos e processos culturais, da concessão de apoio financeiro e fiscal aos agentes culturais, da adoção de subsídios econômicos, da implantação regulada (grifo nosso) de fundos públicos e privados, entre outros incentivos, nos termos da lei;

IV – proteger e promover a diversidade cultural, a criação artística e suas manifestações e as expressões culturais, individuais ou coletivas, de todos os grupos étnicos e de suas derivações sociais, reconhecendo a abrangência da noção de cultura

Como a prefeitura não responde os emails do Nonada, fica aqui  nosso questionamento em carta aberta: onde estão os demonstrativos do Festival de Inverno e da Universidade Aberta? Quanto a prefeitura recebeu dos patrocinadores? Qual o critério utilizado para cortar recursos a expressões tradicionais como o Carnaval e promover eventos onde a curadoria é feita única e exclusivamente por membros da prefeitura? Quando a prefeitura vai pagar os vencedores do Fumproarte? Que ações a prefeitura está fazendo para cumprir o Plano Municipal de Cultura?

O desmantelamento do Estado

Pouco depois da posse de Marchezan Jr., já havíamos alertado em editorial com o questionamento Que Cultura Marchezan quer para Porto Alegre? para as profundas mudanças que a área de políticas culturais da capital poderia sofrer. O objetivo de Marchezan era, desde o começo, repassar para a iniciativa privada o financiamento da cultura. E ele está fazendo isso aos poucos e às escuras. Para isso, a desculpa é precarizar os equipamentos públicos e colocar a culpa na falta de dinheiro. As empresas seriam, portanto, a solução mágica para resolver esse problema. Não há, no entanto, desculpa para destruir as políticas públicas culturais como o governo está fazendo, já que a SMC tem apenas 2,38% do total da LOA em 2017.

No âmbito estadual, a questão não está muito diferente, conforme relatos de equipamentos culturais como o MARGS estarem sofrendo com cortes de recursos. Como a situação dos trabalhadores da Fundação Piratini segue sem definição na Justiça do Trabalho, e Sartori não conseguiu avançar na privatização de órgãos e fundações de outras áreas, o estrago do neoliberalismo na cultura parece ter sido minimizado – por enquanto.

*atualizado às 17h13: informamos anteriormente que não havia cinema nacional no Festival; na verdade, três filmes brasileiros foram exibidos.

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