Escritoras que não cabem num ano só: uma seleção de leituras de 2017

Nas últimas semanas, listas dos melhores livros do ano figuraram em sites, blogues e em perfis pessoais do Facebook. O Veredas também – a exemplo de outros espaços que trabalham para destacar o nome de escritoras – convidou autoras, leitoras e pesquisadoras para compartilharem suas leituras durante o ano de 2017.

No entanto, as listas não se restringem a obras publicadas neste ano que já quase finda. O Veredas primou em destacar a experiência de leitura de cada convidada durante o ano de 2017. Obras, infelizmente, pouco conhecidas ou quase ignoradas emergem aqui ganhando vida, mais uma vez. De outro lado, títulos contemporâneos que dialogam com o hoje, que nos auxiliam a pensar – e nos pensarmos – pela literatura, ensaio ou ainda pelo viés teórico. Desfrutamos, então, de listas compostas exclusivamente por escritoras que, de tantas, não cabem num ano só.

O mais instigante em ler as seleções aqui presentes é perceber a pluralidade das autoras escolhidas, suas perspectivas e estilos, o que implica refletir o quanto é diversa a literatura produzida por mulheres – uma constatação muito distante dos estereótipos que ainda recaem sobre nós. Entre as oito convidadas [e eu] e suas eleições, encontra-se um texto da poeta Eliane Marques, que, por meio de um breve ensaio, aborda os cinco livros escolhidos por ela.

Que esta leitura, assim como para mim, resulte em uma grande experiência também para você, leitora e leitor.

Priscila Pasko

 

Gabriela Silva*

Novas cartas portuguesas, Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa e Maria Teresa Horta, Círculo do Livro (a minha edição é 1975, mas há edições mais recentes).

Apesar de ser uma obra publicada em 1972 é ainda provocativa e estimuladora de diversos questionamentos sobre o feminino e o posicionamento da mulher na sociedade e no relacionamento amoroso. Nos textos que compõem a obra das “três Marias” a voz de Mariana oprimida pela sociedade patriarcal assume outra dimensão na perspectiva feminista: a liberdade do corpo, do desejo e do pensamento. Poéticos, os textos do livro não perdem em momento algum seu engajamento identitário e ressaltam a voz feminina. É também um marco na luta que precedeu o 25 de Abril em Portugal. É uma leitura para quem quer conhecer uma das mais importantes obras escritas por mulheres em língua portuguesa no século XX.

A hora da estrela, Clarice Lispector. Rocco (1998).

Em 2017 foi o aniversário de quarenta anos do romance de Clarice. Macabéa veio o mundo através da voz de Rodrigo S. M. em 1977, mesmo ano da morte de sua autora. A narrativa é sobre Macabéa, uma nordestina que vem para o centro do país para trabalhar. Tuberculosa, sonhadora e triste, ela percorre seu destino até a morte sem pensar sobre a sua existência ou dar-se conta da infelicidade que lhe era característica. Ainda há na obra a ideia do narrador que protagoniza momentos essenciais sobre a construção narrativa.  A hora da estrela é considerada uma das mais importantes obras de Clarice Lispector e por coincidência, sua última obra.

Demorei a gostar da Elis (2017) – Alexandra Lopes da Cunha – Editora Kazuá.

Primeiro romance da escritora, que já tem publicados dois livros de contos e um de poemas. A narrativa de Demorei a gostar da Elis tem como protagonistas duas personagens que se conhecem na juventude -Libertad e José Brasil – nos idos tempos da ditadura e depois se reencontram na idade adulta, tempo em que aparecem as mais diversas lembranças. O romance construído em duas vozes que se alternam traz também uma forte influência musical que perpassa as histórias das personagens e marca o contexto cultural da época da adolescência, juventude e maturidade dos protagonistas.

Harém (2016) – Eugenia Zerbini. Editora Patuá.

A coletânea de contos de Eugenia, publicada em 2016, tem uma peculiaridade interessante: as personagens protagonistas são na maioria mulheres – das mais diferentes classes sociais, funções, gostos e personalidades.  Merece destaque, além de uma escrita que chama atenção pela qualidade e pela construção das metáforas e ideias – as questões de identidade que estão presentes na obra. A religião, o feminino, o masculino, sexualidade e sobretudo o enfrentamento da própria natureza de cada personagem em seus dramas particulares. Eugenia foi vencedora do Prêmio Sesc de Literatura com As netas de Ema, em 2004, publicado pela Record.

Da poesia (2017) – Hilda Hilst. Companhia das Letras.

Reunião dos livros de poemas de Hilda Hilst, com posfácio de Victor Heringer. A obra conta além dos vinte e seis livros de poesia, cartas de Caio Fernando Abreu (que teve uma correspondência intensa com Hilda), texto de Lygia Fagundes Telles sobre Hilda e outros textos e registros sobre a poeta.  Para conhecer Hilda, uma voz vibrante, repleta de sensações e sonoridades, seus interlocutores poéticos, Túlio, Ricardo e Dionísio, a relação com a morte, o corpo e o desejo.

* Gabriela Silva é doutora em Teoria da Literatura – PUCRS e atualmente é bolsista PNPD – Capes na URI – Universidade Integrada do Alto Uruguai e Missões. Lançou, pela editora Patuá, em 2015, o livro de poemas Ainda é céu.

Fernanda Bastos*

Um útero é do tamanho de um punho – Angélica Freitas. Cia das Letras

Esteio e mirante poético para uma penca de escritoras, Angélica relançou em 2017 aquela que é, até o momento, sua obra-prima. Poemas como “mulher de vermelho” e “mulher depois” são leitura obrigatória, e poderia citar tantos outros enquanto me derreto por esse livro. Ok se você já tinha a bela edição da finada Cosac. Está aí a sua chance se estava difícil de achar por aí ou ainda se emprestou e não recebeu de volta esse tesouro porém.

No seu pescoço – Chimamanda Ngozi Adichie. Cia das Letras

Para as fãs de Chimamanda Ngozi Adchie, que andavam aguardando mais um lançamento de ficção dela no Brasil, “No seu pescoço” veio para matar a sede. Os doze contos traduzidos por Julia Romeu exalam a delicadeza e a força que encontramos nos romances da escritora, mesclando variedade de perspectivas e temas e demonstrando por que essa é uma das principais prosadoras do nosso tempo.

As alegrias da maternidade – Buchi Emecheta. Dublinense

Grande sacada da Tag Livros proporcionar a leitura da ótima escritora nigeriana Buchi Emecheta, até então inédita no país e que chega com tradução de Heloisa Jahn e curadoria de Chimamanda Ngozi Adichie. A ironia que começa pelo título é uma de suas marcas para fazer um painel desencantado da Nigéria e da condição feminina no século 20 — e que diz muito ainda sobre hoje.

O martelo – Adelaide Ivánova. Garupa

Adelaide reparte conosco seus versos a partir de uma eu-lírica que sobrevive após o estupro, sem perder o humor, a sagacidade e o desejo. Enquanto reflete sobre as consequências da violência contra a mulher na nossa sociedade, Adelaide nos propicia um interessante mosaico de imagens de um eu violentado e também de um nós que está sempre em risco. A Garupa nos propõe uma experiência que se completa com o efeito causado pelo toque na capa do livro: definitivamente não saímos da leitura do mesmo jeito que entramos nela.

O que é lugar de fala – Djamila Ribeiro. Editora Letramento

Com poder de síntese e conhecimento formidáveis, Djamila recupera a importância do conceito de lugar de fala para um estágio real de democracia. A filósofa mostra, por meio da articulação do pensamento de mulheres, que esse estágio exige a inclusão das mulheres negras no debate público, bem como o rompimento com o discurso hegemônico branco. A argumentação de Djamila é imprescindível e atual, apesar de o conceito e sua urgência não serem: afinal, como ela pontua, “só fala na voz de ninguém quem sempre teve voz e nunca precisou reivindicar sua humanidade”.

* Fernanda Bastos é jornalista, também formada em Letras (Ufrgs) e especialista em História da Arte.

Alexandra Cunha*

Janeiro começou com a leitura de Poesia (Editorial Caminho), de Sophia de Mello Breyner Andressen

Parece-me estranho o quão pouco se encontra de Sophia no Brasil. Dona de uma técnica apurada, tem algumas das mais belas metáforas relacionadas ao mar. Algumas destas podem ser encontradas também neste volume. Sophia, poeta portuguesa que no poema Atlântico declara: “Mar,/ Metade da minha alma é feita de maresia.”.

Em Perdição: Exercício sobre Antígona. Ed. Relógio D´Água

Hélia Correia desloca o eixo da tragédia da figura de Édipo e do incesto para a da vida das mulheres, condenadas a viver entre “os teares, os armazéns e a lareira. Entre os sangues dos meses e o sangue dos partos”. Ao desobedecer ao tio, Antígona escapa de uma morte em vida; ruma para a morte, corajosamente. Uma leitura que nos faz perceber o quão pouco mudou a situação feminina em milênios de história.

Minha Senhora de Mim, de Maria Teresa Horta. Dom Quixote

Poemas sensuais, carregados de desejo. O livro vai ganhando intensidade e força, atingindo o ápice poético e erótico aos últimos poemas, como é o caso de O Meu Desejo: Afagas devagar as minhas/ pernas/Entreabre devagar os meus/joelhos/ Mordes devagar o que é negado/ Bebe devagar o meu desejo/.

O Caderno de Memórias Coloniais. Caminho

Conta a história da infância da autora, Isabela Figueiredo, em Moçambique. Nascida 1963, ela testemunha os estertores do colonialismo português. É também a história do seu amor pelo pai e da sua luta para compreendê-lo e perdoá-lo. Na figura dele, concentra-se a essência do que foi o pensamento imperialista português: “O meu pai tinha a camisa branca e eu, o seu tesouro, a sua vida, sujei-lha de terra para sempre”.

Por fim, uma sugestão de leitura para adolescentes. Sou mãe de uma e percebo o quão difícil é encontrar leituras que os agradem. Amor de Longe (Ficções), da escritora e jornalista Cláudia Nina, foi uma ótima surpresa. Senti-me muito próxima de Clarice, a personagem, pois, quando tinha dez, onze anos, também deixei uma cidade por outra, um movimento difícil e mais complicado ainda porque acompanhado de outra mudança radical: a entrada na adolescência. Um livro sincero e delicado para um período sensível e delicado.

* Alexandra Cunha é escritora e doutoranda em Escrita Criativa na Pucrs. Entre os livros já publicados, está Demorei a gostar de Elis (Kazuá, 2017), ganhador da Categoria Romance do Concurso Nacional da Editora Kazuá em 2016.

Ana dos Santos*

Ela conta, Ele canta – Carlos Alberto Soares/Taiasmin Ohnmacht. Cidadela

A escritora Taiasmin é uma exímia contista. Numa linguagem objetiva, ela nos surpreende com fatos cotidianos e extraordinários onde a mulher é protagonista das grandes mudanças da vida dela e dos que a cercam.

Olhos d’água – Conceição Evaristo. Pallas

Um livro difícil de atravessar por mostrar a tragédia humana em suas várias facetas, e a vivência do racismo. Difícil, porém, belo, com momentos de poesia, sempre trazendo a metáfora da água, uma substância feminina.

João Miguel – Rachel de Queiroz. José Olympio

Voltando às escritoras Modernistas, encontro esse romance com a maestria da escrita de Rachel, um drama psicológico onde acompanhamos a vida na prisão do personagem principal, com toques de Neorrealismo presente nessa geração de 30.

As Meninas – Lygia Fagundes Telles. Companhia das Letras

Um clássico da Literatura Brasileira que só vim a conhecer agora, três mulheres e seus perfis que se entrelaçam e se unem na experiência da amizade e cumplicidade entre mulheres, continua atual!

Sem Gentileza – Futhi Ntshingila. Dublinense

Se passa na África do Sul, mas poderia ser em qualquer lugar do mundo onde a mulher e sua cor de pele vão constituir sua trajetória de vida, sua biografia de luta, superação e amor. A história de mãe e filha também ultrapassa a cor da pele e coloca esse romance na Literatura Universal.

* Ana dos Santos é poeta e professora de Literatura Brasileira da rede pública. Possui especialização em História: Territórios Negros (UFRGS) e Aperfeiçoamento em História e Cultura Afro-Brasileira Uniafro (UFRGS). Além do livro Flor (2009), ela também participou de diversas antologias – a mais recente delas é Sopapo Poético: pretessência (Libretos, 2016).

Natasha Centenaro*

Da poesiaHilda Hilst (2017). Companhia das Letras

Essa reunião da (TODA) produção poética de Hilda Hilst se tornou o livro de 2017. E acredito que não só para mim, mas para apaixonadas (os) pela obra teatral e poética dessa visceral e autêntica mulher. Se não bastassem os mais de vinte títulos de poesia da Hilda (e como bastam as odes – nem mínimas –, os sonetos – justos em forma –, os versos – junte metáfora, questionamento, imagem, sentido e faça tudo vibrar),  alguns com as ilustrações, outros escritos inéditos, o livro conta com fortuna crítica.

Como se estivéssemos em palimpsestos de putasElvira Vigna (2016). Companhia das Letras

Um romance cuja voz seca e irônica dessa narradora de botas, num Rio de Janeiro de 40 graus, joga e embaralha pistas ao contar as histórias contadas a ela por João, o homem que pagava prostitutas, a ponto de a leitora e o leitor duvidarem da veracidade dos fatos. Mas fatos não interessam nas narrativas de Elvira. Interessam essa linguagem arranjada como se fosse simples e fácil, as cenas visíveis e as personagens com a duplicidade própria de um enredo cotidiano. Aliás, qual homem não pagou – pegou – uma puta? O buraco é sempre mais ao sul.

mulheres que mordemBeatriz Leal (2016). Ímã ditorial

Uma instigante descoberta, o livro de Beatriz Leal, finalista do Jabuti de 2016 (e que se pesem os efeitos contrários de um prêmio), toca em um assunto que deveria ser tratado com lupa social e (ainda mais) literária no Brasil: as ditaduras na América Latina. Nesse caso, na Argentina. E pelo olhar das mulheres diretamente afetadas. Uma narrativa ágil, por vezes sem dar vazão a todo o enredo potente, porém com uma construção eficiente e sensível dessas gerações de mulheres mães, avós, filhas, órfãs, violadas, violentadas, torturadas, vítimas. Mulheres que também sabem morder.

Negra nua crua – Mel Duarte (2017). Editora Ijumaa/ bucaro – Pam Araújo (2017). Conecta Brasil

O movimento dos saraus de periferias e dos slams de poesia não é a novidade aqui. O novo é o movimento das mulheres que falam, articulam e publicam seus poemas, suas indignações, suas angústias. Tanto Mel Duarte como Pam Araújo expressam com toda a propriedade versos de resistência (meu corpo, minha cor, minha buceta, meu mundo), mas também de afeto e de reivindicação de uma existência silenciada. Destaque à qualidade poética de ambas as escritoras. Destaque também às ilustrações do livro de Pam Araújo.

Histórias da gente brasileira: Volume 1 – Colônia (2016) / As mulheres na história do Brasil (2016) – Mary Del Priore. Casa da Palavra

Podem parecer deslocados nessa listagem, mas destaco os livros de Mary Del Piore como forma de evidenciar a produção de fazer e divulgação das pesquisas, acadêmicas ou não, das mulheres. Historiadora, pesquisadora, professora escritora, com um texto acessível e prazeroso, Mary Del Priore busca em fontes e arquivos históricos os modos mais literários (e falo de linguagem literária de crônica) para contar e tratar essa – nossa – história. Encontra no cotidiano das famílias, as suas mulheres, as suas crianças, os seus homens, os seus amores, as suas vidas. O que parece à margem da História.

* Natasha Centenaro é jornalista, escritora, mestra em Letras/Escrita Criativa (pucrs) e doutoranda em Letras (Pucrs)

Clarissa Xavier*

A mão esquerda da escuridão, Ursula k. Le Guin. Editora Aleph

Um clássico da ficção científica publicado pela primeira vez no final dos anos 1960. Narra a chegada de um diplomata da grande comunidade universal ao planeta Gethen com o objetivo de uni-lo à esta aliança. Entretanto, os habitantes do planeta tem uma característica peculiar: não possuem sexo definido. A partir desta premissa, o protagonista destila veladamente toda forma de preconceito sexista possível, mostrando o abismo entre os sexos de nossa sociedade e gerando um desconforto enorme durante a leitura, culminando em um final memorável.

Um útero é do tamanho de um punho, Angélica Freitas. Companhia das Letras

Conheci a poesia da Angélica Freitas em 2012 e fui arrebatada por seu estilo forte. Minha felicidade ao saber da reedição do livro e com isso poder compartilhar sua leitura no Leia Mulheres foi imensa. Os versos do poema Uma Mulher Limpa rasgam minha alma.

Hibisco Roxo, Chimamanda Ngozi Adichie. Companhia das Letras

Considero Chimamanda uma das principais escritoras contemporâneas e este é meu livro predileto da autora. Situado na Nigéria, o livro me descortinou um estilo de vida ao mesmo tempo similar e estranho. Em particular a narrativa das situações cotidianas, a culinária diária e os problemas da comunidade universitária que insiste em lutar me arrebataram. Fora a trama central, que conta a história de uma família que sofre os mal-tratos de um pai abusivo, liberta-se e purga sua dor, tudo em volta de muita religião e discussão sobre o movimento missionário católico.

Mulheres, Raça e Classe, Angela Davis. Boitempo Editorial

Angela Davis é uma importante ativista anti-racismo e intelectu

al marxista. A tradução deste clássico lançado no início dos anos 1980 foi publicada no Brasil em 2017. Somente isso mostra o quanto nosso país carece da discussão do tema do preconceito racial e do abuso institucional aos negros. O livro foca na história do movimento negro nos Estados Unidos, que possui muitas semelhanças e muitas diferenças com o Brasil. Mas a reflexão que surge disto é de valor inestimável.

O Conto da Aia, Margaret Atwood. Rocco

Relançado no Brasil em 2017, outro clássico dos anos 80, este romance distópico vem cada vez mais tomando a forma de triste profecia. O livro narra a história de uma mulher fadada a viver em uma sociedade que as mulheres podem assumir uma de três funções: reprodutoras, esposas ou domésticas. Só. De resto, o mundo é dos homens. O que me dilacerou durante a leitura é a narrativa de como esta sociedade foi gestada, no ventre do fanatismo neo-pentecostal, fascista e machista. Universo não muito distante do que vivemos hoje.

* Clarissa Xavier é uma das organizadoras e mediadoras do Leia Mulheres, em Porto Alegre

Nanni Rios*

Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie (Companhia das Letras)

É o tipo de livro que, quando chega ao fim, te cospe de volta para o mundo real. E você volta invariavelmente transformada. A narradora é uma menina inteligentíssima, talvez a melhor personagem infantil que eu já conheci. O contexto político, social e econômico da Nigéria também é personagem vivo no romance e vai sendo apresentado ao longo da história. É um livro que te faz pensar muito sobre feminismo, religião e questões raciais.

Políticas do Sexo, de Gayle Rubin (Ubu Editora)

Gayle Rubin é lésbica, antropóloga e fundadora, em 1978, do primeiro grupo lésbico sadomasoquista de que se tem notícia. Começo falando da autora porque representatividade importa. Ela fala sobre opressão sexual e de gênero diretamente da base da “pirâmide sexual” que ela descreve no ensaio “Pensando o sexo” (1984), onde ficam as classes sexuais mais desprezadas como transexuais, travestis, fetichistas, sadomasoquistas e profissionais do sexo. No ensaio “O tráfico de mulheres” (1975) ela constata que a desigualdade entre os gêneros não é natural, como muitos pensam e pregam, mas social. Dois textos essenciais, que finalmente saem em português somente agora, em 2017, com uma atualidade impressionante e perturbadora.

O martelo, de Adelaide Ivanova (Coletivo Garupa)

Adelaide é “faca na bota”, como dizem aqui no Sul. Os poemas reunidos em “O Martelo” falam sobre violência de gênero, da relação abusiva ao estupro. Na Flip 2017, Adelaide foi, na minha opinião, um dos pontos altos da festa, com uma performance sobre o tema (na íntegra aqui: http://bit.ly/AdelaideFlip2017). Além disso, o livro vem com uma camada fina de tinta vermelha na capa. Ao final da leitura, você fica com as mãos “sujas de sangue”. Impossível não se arrepiar.

Mugido, de Marília Floor Kosby (Coletivo Garupa)

“Mugido” é um livro difícil de comentar. Literalmente, posso descrevê-lo como o grito-manifesto da fêmea no campo. Mas não é só isso. “Mugido” é uma experiência de leitura, tanto para quem tem intimidade com os assuntos campeiros (quem sabe assim desnaturalizam-se algumas coisas) quanto pra quem não faz muita ideia do que se passa por lá. Porque o livro é preciso e muito humano. O mais impressionante, talvez, seja a sua forma: “Mugido” é poesia sobre um assunto pra lá de cascudo. As várias rimas entre a realidade das mulheres na sociedade e das vacas no campo são impressionantes, a começar pela exploração reprodutiva e a objetificação das partes do corpo. Só lendo pra saber do que eu tô falando…

Sem vista para o mar, de Carol Rodrigues (editora Hedra)

Esse livro de contos me fez chorar. Comecei a ler pelo conto que dá nome ao livro e olho encheu d’água. Os temas da diversidade perpassam todas as histórias, mas isso nem importa. Não há posicionamento político, drama ou moral. Os personagens apenas são quem são, bem desenhados e cheios de profundidade e identificação. Tudo é tão natural. O que chama atenção mesmo é a linguagem. Carol tem um jeito muito próprio de narrar, tanto que o livro é premiadíssimo. Li numa sentada só e terminei o livro sentindo o mundo mais vivo.

* Nanni Rios é jornalista e coordenadora do espaço cultural Aldeia e da livraria Baleia, localizados em Porto Alegre

Priscila Pasko*

Sangue sem dono (1964) – Carmen da Silva. Civilização Brasileira
Carmen da Silva produziu artigos de cunho feminista para a Revista Claudia, e publicou literatura – sua vertente menos conhecida. Este romance com características autobiográficas, é repleto de reflexões ácidas, existencialistas, políticas e sociais de uma mulher de 35 anos. É nítido o diálogo da obra com O sangue dos outros, de Simone de Beauvoir. Na narrativa não-linear, Carmen fala da cidade natal (Rio Grande), e de suas passagens por Montevidéo, Buenos Aires e Rio de Janeiro, nos embriagando com uma narrativa impecável.

As mulheres de Tijucopapo (1982)Marilene Felinto. Paz e Terra
O romance narra, em primeira pessoa, o retorno que a nordestina Rísia faz, a pé, de São Paulo até a cidade em que sua mãe nasceu, Tijucopapo, em Pernambuco. Durante a viagem, que dura nove meses, Rísia percorre o abismo de si mesma. No prefácio, Marilena Chaui denomina As mulheres de Tijucopapo de “bíblico”, pois interroga a origem da culpa: a culpa da mãe, do pai, dos irmãos, de Recife, de São Paulo, do afeto e da falta dele. Uma obra fantástica, com um trabalho de linguagem idem, por onde escorre raiva, amargura, revolta, beleza e valentia.

A morte de paula d. – Brisa Paim (2009). Edufal
Chegou até mim por acaso. A intenção era folhear a obra sem compromisso, mas o livro foi mais esperto que eu e me pegou de jeito. Num fluxo de consciência de tom bastante poético e frenético, acompanhamos a personagem, uma mulher casada e com três filhos, refletir e questionar sobre a vida que leva. Ela, sem nome próprio, sai, aos poucos, numa confusão mental, a procura de uma identidade: não quer ser a esposa nem a mãe, mas paula d., nome que ela descobre numa de suas noites de insônia. Uma obra deliciosamente incômoda.

Cachorro velho Teresa Cárdenas. Pallas
O personagem que dá nome ao romance, Cachorro Velho, me cativou desde o início pela sua complexidade e, eis, para mim, a grande sacada e mérito da cubana Teresa Cárdenas. O romance conta a história de um velho negro escravizado que nunca saiu da fazenda, onde era porteiro. A medida que o tempo avança, a memória busca no passado a lembrança de amigos mortos pelos brancos, enquanto, no presente, questiona-se sobre sua coragem, sua vida e origem.

El livro de mis primos – Cristina Peri Rossi

Foi paixão à primeira página (a uruguaia logo terá o livro “Espaços íntimos” lançado no Brasil pela Gradiva). Em cada capítulo do romance, um narrador toma a palavra – um menino, um tio revolucionário, um primo apaixonado – e apresenta o seu ponto de vista, sendo eles todos pertencentes a uma família oligárquica. O que acontece no decorrer da história é a ruína deste núcleo. As metáforas, e são várias, se apresentam pouco óbvias e com maestria [os recursos narrativos e metafóricos que Peri Rossi lança mão para falar do estupro é uma tirada incrível].

* Priscila Pasko é editora do blog Veredas e escritora

Eliane Marques*

Os pés descalços na grama úmida do carvalho

A Mulher de Pés Descalços e Nossa Senhora do Nilo – Scholastique Mukasonga (Ruanda). Editora Nós

Sem gentileza – Futhi Ntshingila – (África do Sul). Dublinense

O Caminho de Casa – Yaa Gyasi (Gana). Rocco

No seu pescoço – Chimamanda Ngozie Adichie – (Nigéria). Companhia das Letras

Poemas da Recordação e Outros Movimentos – Conceição Evaristo (Brasil).

Tomados os estreitamentos e as escolhas do mercado editorial, bem como os limites do pedido a mim feito, a seleção dos livros epigrafados emerge de um anseio subjetivo de conhecer a produção de outras escritoras/poetas africanas e afrodiaspóricas. Considero que, em tese, a posição sócio-histórica que o discurso dominante lhes (nos) atribui reverbera num contra- movimento (melhor seria pluralizá-lo em contra-movimentos) que goza de condições estético-discursivas e até mesmo contra-estéticas de subverter o mais do mesmo característico do que ora ainda se apresenta como paradigma literário ou propriamente como literatura.

Em vez de escrever até cinco linhas sobre cada um desses livros, conforme me foi solicitado, elegi a mulher de pés descalços para falar de todos eles, pois assim estão cada uma das autoras citadas diante da condição hifenizada, embora aqui registrada sem hífen, o que dá conta do que não aparece, mas está aí.

Quando Scholastique Mukasonga em A Mulher de Pés Descalços utiliza sólida trama de palavras para cobrir o corpo de Stefania, sua mãe, assassinada pelos hutus no genocídio em Ruanda em 1994, realiza um ato típico de Antígona, quer dizer, promove um rito fúnebre em honra daquela a quem isso se negou.

Todavia não o faz exatamente para cumprir a tradição, mas para atender ao desejo de outra mulher (a própria Stefania), segundo a qual “Ninguém pode ver o cadáver de uma mãe, pois senão ele vai perseguir vocês que são as filhas … até o dia em que vocês vão precisar de alguém para cobrir seus corpos”.

Scholastique Mukasonga corrompe com Antígona e mesmo com Penélope – o seu punhado de terra ou manto não se dirige a um homem e nem advém do desejo de tê-lo. Digo que em A Mulher de Pés Descalços ocupamos um espaço próprio, temos histórias e desejos – Stefania cuida da proteção da família, trabalha na agricultura, é casamenteira, construiu um inzu, buscava fogo na casa dos vizinhos mesmo já se dispondo de fósforos, mandou xs filhxs para a escola, ensinava-xs a combaterem a cegueira dos pés …

Confesso que me restou pouquíssimo do pai de Mukasonga. Sei que trabalhava com os “brancos” (talvez missionários), que tinha óculos doados pelos “brancos”, que construiu casas ao estilo “branco”, que fazia parte de um conselho de sábios, mas sei nada além dessa burocracia, sei nem o seu nome, pois quem constrói e é reconstruída na história é Stefania.

Mesmo o assassinato de Stefania se oculta em seu corpo de palavras. Sabe-se desde o início do livro que o assassinato ocorrerá, mas o ponto final, sabido e esperado, não é o objeto central de Mukasonga e aí ela nos passa uma bela rasteira, pois o texto nos defronta com os atos da vida para evitação da morte.

Nesse passo, concebo que a mulher-mãe-trabalhadora-falante-stefania é a metáfora de Sherazzade, porém contra o príncipe ou quem porte a espada, assim como, ao costurar um pano simbólico por meio do qual reconhece a humanidade a quem se lhe nega, Scholastique Mukasonga também o é, mas do lugar estranho aos palácios e seus muros de proteção.

Ao expor seus pés descalços na grama úmida do carvalho, Scholastique nos subverte por que subverte o que se esperaria dela.

* Eliane Marques é poeta, tradutora, coordenadora da Escola de Poesia (Porto Alegre) e do editorial da revista Ovo da Ema. Entre os livros publicados, está e se alguém o pano (Escola de Poesia), com o qual venceu o Prêmio Açoriano de Literatura (2016), na categoria Poema.

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