A cultura brasileira no desgoverno bolsonarista

Por Marcus Vinicius de Andrade*

Foto: divulgação

No último dia 6 de julho, uma terça-feira, na mesa de abertura do 74° Festival de Cinema de Cannes, o cineasta norte-americano Spike Lee, Presidente do júri do evento, mencionando os tiranos à frente da atual onda mundial de obscurantismo, citou expressamente o Presidente Jair Bolsonaro, o “cara do Brasil” a quem classificou como um gângster(claro que os gângsters se ofenderam com a comparação). Um dia antes, a ONG internacional Repórteres sem Fronteiras havia também galardoado o velho Bozo, incluindo-o na toplist mundial dos Predadores da Liberdade no período 2020-2021, o que, convenhamos, seria até uma honraria para quem outrora ambicionava ser apenas um tiranete de subúrbio.

A fala antibolsonarista de Spike Lee em Cannes refletiu não só a indignação internacional com os arreganhos ditatoriais e a inépcia do “governo” do presidente brasileiro frente à pandemia deCovid-19, como foi também uma reação à culturofobia por ele implantada como política de Estado desde sua chegada ao poder. Essa culturofobia, ademais agravada pelas consequências econômico-sociais derivadas da crise sanitária, viria a ganhar dimensões de verdadeiro culturicídio, que certamente fariam o velho Goebbels babar de inveja: poucas vezes, em tempos mais recentes, a cultura foi tão violentamente atacada e predada por um governo como no Brasil da era Bolsonaro. Para complementar sua fala, Spike Lee acolheu e endossou por inteiro o contundente testemunho que, pouco antes, o cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho havia prestado à plateia de Cannes sobre o Brasil e o estado atual de sua cultura, testemunho que logo repercutiria na imprensa internacional, bem como em nosso país.

Evidentemente, grande parte das questões em torno do desmonte da cultura brasileira em tempos bolsominions liga-se, como não podia deixar de ser, aos problemas sócio-econômicos que, no bojo da crise, vêm determinando a falência de negócios e empresas, o fechamento de instituições culturais e salas de espetáculos, a abrupta diminuição (quando não a pura e simples sustação) dos orçamentos públicos para a cultura e dos projetos de incentivo e patrocínio e, por consequência, o aumento do desemprego e da informalidade entre os trabalhadores da área artístico-cultural. Não sem razão, diz-se que a Economia Criativa foi o primeiro setor afetado pela crise gestada pela dupla Bozo-Coronavírus e certamente será o último a sair dela. Nunca é demais relembrar que este setor, que até 2017 representava 2,61% de toda a riqueza produzida em território nacional (com a capacidade de geração anual de 25,5 mil postos de trabalho), tinha a previsão de contribuir com U$ 43,7bilhões para o Produto Interno Bruto Nacional (PIB), até 2021. No entanto, ele sofreu uma perda de receita de 44,4% só entre maio e agosto de 2020, estimando-se ter havido prejuízos ainda maiores depois disso.

Assim, não faltaria razão ao Prof. Jorge Coli, que, já há quase dois anos, denunciava na imprensa (Folha de São Paulo, 1º. set.2019)que não apenas a cultura, mas também a ciência, a tecnologia, o ensino superior e a pesquisa, imprescindíveis à prosperidade do país, estavam sendo vítimas de “atitudes nocivas” desencadeadas pela “brutalidade mais incivilizada” do governo da República. Indo adiante, Coli mencionava o economista Paulo Gala, que na mesma Folha de S.Paulo (1º. ago. 2019), havia consignado: “Nosso nível de produção industrial está hoje 20% abaixo do nível observado em2014 e apenas 20% acima do registrado nos anos 1980, uma tragédia.” Bota tragédia nisso.

Mas o naufrágio do saber e da cultura, ora em curso neste país cujo presidente quer transformar em latrina de caserna, não deve ser atribuído apenas a contingências da economia, a imprevistos gerais ou a acontecimentos fortuitos, isentos de responsabilidade humana. Não, a crise brasileira não é anônima e não se deve a desacertos genéricos, em que as culpabilidades se diluem em meio à inépcia das burocracias: os agentes da nossa atual miséria cultural têm caras, nomes e sobrenomes, alguns dos quais sabemos muito bem quais são. Especialmente no campo da cultura, já faz tempo que a sociedade brasileira vem exigindo que se aponte e penalize aqueles que, no bojo da máquina estatal, atuam deliberadamente em prol do desmanche e da inação, do que seriam prova os 400 projetos culturais paralisados desde 2020 na Secretaria Especial de Cultura, a qual vem represando, propositalmente, cerca de 700 milhões de reais já captados no mercado para a produção daqueles eventos, segundo informa a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados. Ou seja: além de fazer pouco ou absolutamente nada pela cultura, a máquina bolsonarista ainda atrapalha quem faz.

A confirmar tudo isso, caberia também citar o advogado Antonio Carlos de Almeida Castro (Kakay): “Não é falta de dinheiro. Os recursos necessários existem, estão empenhados e, legalmente, não podem ter outra destinação. Também não é questão de coibir desvios, pois a esmagadora maioria dos produtores sempre prestou suas contas em dia. É o governo que leva, literalmente, décadas para analisá-las, dando a impressão de que não foram prestadas. É descaso mesmo, ou, pior, um plano macabro.” (Folha de São Paulo, 26. abr.2021).

A tese de que o horror cultural do desgoverno do Messias da Mediocridade articula-se como efetiva política de Estado é dissecada de forma consistente no livro Guerra Cultural e Retórica do Ódio, de João Cezar de Castro Rocha, historiador da UERJ, graduado em Stanford. A análise do autor baseia-se no Orvil (a palavra livro ao contrário),obra revanchista na qual setores retrógrados das Forças Armadas, saudosos da ditadura militar e apologistas da tortura, pregam abertamente o golpismo e o retorno ao arbítrio, inclusive amparados nas ideias da nova ultradireita norte-americana. As mesmas ideias defendidas e praticadas pelo Capitão Bozo e seus aloprados, aliás.

Esta guerra cultural do baixo clero bolsonarista centra-se não só no anticomunismo tacanho e no combate às ideias tidas por eles como esquerdistas, mas também no propósito de expurgar da esfera pública tudo aquilo que, no entender dos bolsominions, possa estar relacionado ao “perigo vermelho”, o que em geral inclui instituições, intelectuais, políticos, artistas, universidades, bibliotecas e que tais, ou seja: os suspeitos de sempre. Não por acaso, as principais iniciativas do Bozo na área da cultura têm sido afastar, dos organismos culturais oficiais, os dirigentes e servidores identificados perigosamente à inteligência e ao humanismo, substituindo-os por palpiteiros e arrivistas vindos de outras áreas. Assim, um órgão referencial como o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), está hoje nas mãos de uma certa Larissa Peixoto, que se apresenta como formada em turismo e hotelaria; a FUNARTE (Fundação Nacional de Arte), que também deveria ter notória excelência, esteve há pouco sob o comando do coronel da reserva Lamartine Barbosa, sendo hoje presidida por um procurador federal – tudo a ver com arte, pois; já a Fundação Casa de Rui Barbosa vem sendo dirigida por Letícia Dornelles, militante bolsonarista ligada à uma TV evangélica, protegida do pastor Marcos Feliciano e do nunca assaz lembrado Carlos Bolsonaro; no entanto, anuncia-se para breve uma troca de guarda na Casa de Rui, que poderá vir a ser presidida, ao que tudo indica, pelo segundo nome da entidade, Carlos Fernando Corbage Rabello, Capitão de Mar e Guerra; outro detentor desta que é a maior patente da Marinha, Eduardo Cavalcanti Albuquerque, foi nomeado por Bozo para ser Superintendente de Prestação de Contas da ANCINE (Agência Nacional de Cinema), o que confirmaria a militarização crescente das instituições culturais do Estado. Embora a desqualificação dos quadros federais na área da cultura seja facilmente visível em muitas e muitas páginas do D.O.U., bastariam os nomes citados para explicar o vazio de propostas e projetos culturais para o país nesta quadra bolsonarista. Portanto, nada de culpar apenas a pandemia e a crise sócio-econômica do país pela indigência cultural que ora nos assola. Como dissemos, os responsáveis pelo atual deserto de ideias e iniciativas têm nomes e sobrenomes. E também um chefe maior.

Ainda há muito oque dizer, portanto. Fica difícil lutar pela cultura do país sem buscar a responsabilização individual dos agentes estatais que, talvez contando com a impunidade, agem deliberada e abertamente contra a ética pública e em favor da deterioração dos valores democráticos e civilizatórios. Foi o que há pouco fez o presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, que ordenou excluir, do acervo do órgão, os livros por ele considerados marxistas e que, por isso, deveriam ser inutilizados de pronto. Camargo talvez fingisse não saber que reproduzia o que fizera, na Alemanha dos anos1930, um certo pintor de paredes cujo fim não foi dos mais lisonjeiros. A irresponsabilidade de Camargo felizmente foi impedida, no dia 23/06, por uma liminar do juiz da 2ª Vara Federal de S.Gonçalo, em resposta a uma ação civil popular.

Mas isso constituiu apenas um episódio raro e isolado, posto que se sabe que, em todo o Brasil, atos de censura, vetos, proibições e perseguição às artes são cotidianamente praticados, à margem das leis e da Constituição, por “otoridades” provincianas, desde juízes e delegados com pouca formação e muito exibicionismo, até os famosos guardas-de-esquina de que falava o jurista Milton Campos ao advertir sobre o AI-5. O pior é que todas essas arbitrariedades, hoje em vias de normalização, estão sendo praticadas em nome da cultura, terreno onde parece ter-se homiziado a chamada ala ideológica do governo, a julgar pelo que reporta o jornalista Dimitrius Dantas em O Globo, 1/06/2021.

A desfaçatez com que se usa a cultura para investir contra os valores da cidadania é exemplo que vem de cima, claro. Usa-se a cultura não só como justificativa para pequenas transgressões e pequenos delitos oficiais, mas até mesmo para atropelar os Direitos Fundamentais da Cidadania, garantidos pela Carta Magna. Estimulado pelo Secretário Especial de Cultura, Mário Frias, e coadjuvado também pelo Ministro das Comunicações, Fábio Faria, Bolsonaro vem anunciando que, em nome da liberdade de expressão, está na iminência de baixar um decreto para regulamentar o Marco Civil da Internet, estabelecendo que nenhum site, provedor, plataforma digital ou empresa de mídia social poderá remover de suas páginas ou deixar de veicular conteúdo produzido por terceiros, mesmo que este seja socialmente reprovável ou editorialmente inadequado.

Com isso, Bozo e seus áulicos pretendem impor uma espécie de direito às avessas, pelo qual, em nome da liberdade de alguns, limita-se o direito de expressão dos veículos exercerem sua autonomia editorial, ideológica etc. No fundo, o que se quer é garantir que os conteúdos patrocinados por bolsominions e/ou pela militância ultradireitista(sabidamente ofensivos e ditatoriais, em geral), sejam despejados agressivamente sobre a sociedade, afrontando a convivência democrática e a liberdade da cidadania. Auxiliando o Secretário da Cultura Mário Frias nessa e em outras cruzadas messiânicas contra a democracia e o apoio do Estado aos projetos culturais, encontra-se também o Secretário Nacional de Fomento, um certo André Porciúncula, cujo maior vínculo com a curtura é ser um ex-capitão da PM baiana, hoje guindado ao cargo de controlador da Lei Rouanet. Coitada da Lei.

Só por isso caberia lembrar que em 1930, poucos dias depois da vitória da Revolução, Getúlio Vargas teria a ousadia de criar o Ministério da Educação, que, a partir de 1934, seria conduzido pelo Min.Gustavo Capanema, a cujo lado estariam grandes nomes da arte brasileira, inclusive um Chefe de Gabinete que o ajudaria a construir o momento mais esplendoroso da Cultura Brasileira no séc. XX.

Era um mineiro de olhos calmos e fala tranquila. Seu nome era Carlos Drummond de Andrade. Que nunca aprendeu a atirar.

*Maestro e compositor, fundador do Instituto Claudio Campos e integrante do Observatório da Democracia

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