Audiodrama ecoa vozes venezuelanas para contar a vida dos imigrantes em Porto Alegre

Ester Caetano

O audiodrama vem se destacando no Brasil, em terminologias variadas como o podcast de ficção e o teatro em áudio, que convergem para uma aproximação entre o teatro e a edição de som. Voz para Cumaná é uma dessas obras gestadas no meio da pandemia, um audiodrama caracterizado pelo eco das vozes de imigrantes da Venezuela que escolheram Porto Alegre para se refugiar. De vários lugares da capital gaúcha, os personagens transpõem a agonia e a nova vivência daqueles que saíram de seu país para tentar uma nova vida.

Gabriel Fontoura, ator e produtor, é o idealizador da obra. Em 2018, ele teve uma experiência de mobilidade acadêmica em Madri, na Espanha, onde teve contato com diversos imigrantes. O contato com a língua hispânica que ele sempre teve na família despertou no artista o desejo de entender as imigrações. “Entendi que era necessário ouvir aqueles mesmos hispano-hablantes que não estavam mais jogando comigo no bairro enquanto dirigiam Uber durante a noite, mas estavam aqui, trabalhando já como advogados ou então passando fome”.

Lecionando um projeto para a Associação do Voluntariado e da Solidariedade (AVESOL) no desenvolvimento do teatro com português para imigrantes e refugiados, o dramaturgo se aproximou de alunos estrangeiros que buscavam a oportunidade de contar sobre a saudade, opiniões e sonhos em comum. “Eu conheci Carlos Barrios, Jennifer Espitia e Pedro Bravo, que acabaram trabalhando como atores do audiodrama nos primeiros meses da pandemia. O processo criativo combinou exercícios teatrais realizados nas aulas presenciais com os registros audiovisuais dos experimentos cênicos criados a partir de suas narrativas pessoais”, conta.  

Dos jogos teatrais presentes no curso com foco nas transposições de aprendizagem e  brincadeiras, foram se criando os vínculos para a afinidade imprevista. Esse processo permitiu uma troca de valores e experiências entre venezuelanos, cubanos e brasileiros que enriqueceram as pesquisas e a construção de roteiros. “A partir da vivência de dentro do curso para a expansão (ainda pré-viral) ao bar ‘Santa Arepa’ no bairro Cidade Baixa onde se degustam arepas venezuelanas, por exemplo com cerveja Polar,” relembra.

Com a pandemia, toda trajetória da pesquisa foi transferida para as mídias digitais. Para aproveitar o que já estava em andamento na criação dramatúrgica, surgiu o formato de audiodrama. O trabalho foi publicado nas plataformas de streaming musical e audiovisual Spotify e Youtube e foi amparado por “estudos de referência sobre transcriação para traduzir a experiência cognitiva entre aulas de português com espanhol, teatro, risadas, choros, Coronavírus, las cervezas e prolongados ensaios frios de domingos pela manhã no Google Meet”, revela Gabriel.

O projeto se solidifica com três episódios, todos eles correlatos à vida cotidiana dos imigrantes refugiados no Brasil: “Um dia de fúria”,“Wake up ou como acordar para o amanhã” e “Noite de Arepas”. Todos os episódios foram construídos através de um processo criativo que alternou a ficção e a vivência. A narrativa então dá forma aos acontecimentos que se expandem pelas múltiplas linguagens e possibilidades, fazendo com que se crie um “Teatro Instalação”. “É através do olhar dos próprios autores imigrantes que tudo isso acontece”, diz o autor.

Da impaciência dos imigrantes com a nova realidade imposta, das trocas mútuas, quando se podia ter contato físico, foram registrados vídeos de encontros, relatos para a ficcionalização que foram transformados no texto que deu origem ao episódio “Um dia de Fúria”. O episódio traz a narrativa parte da procura de  alguns imigrantes venezuelanos por emprego, lidando com a fome e o desamparo ao entregar currículos pela cidade.

Gabriel defende que a cena digital em áudio deve ser usufruída pensando a plataforma digital como palco, emulando a experiência de um museu ou teatro, ou então um show na rua ou em casa. É preciso sentir a essência do que se passa, diferente de podcasts de entretenimento, notícias e áudios que podem ser escutados realizando uma outra atividade.

“É curioso observarmos que, talvez, um podcast também pode ser um trabalho artístico. Entretanto, ainda hoje, recebo mensagens como “vou escutar teu audiodrama quando estiver dirigindo, trabalhando ou lavando louça assim como eu faço com os outros podcasts”. Tudo bem, mas fico me perguntando como dirijo enquanto entro em contato com uma peça de teatro, imagina no Theatro São Pedro?!”, avalia o artista. 

Gabriel complementa que o fazer teatral nos dias de hoje mudou totalmente. “Hoje, trabalhamos no computador e não mais em um Teatro. Hoje, saber usar os sites que editam fotos e vídeos online para montar currículo, material artístico, ou o que seja, são obrigatórios”, e todo esse processo influenciou na realização do Voz para Cumaná. 

Clóvis Massa, dramaturgo, diretor e co-autor do projeto, relembra o modelo que se iniciou no rádio, “nos anos dourados ainda”, no tempo em que as produções de radionovelas e radioteatro eram feitas ao vivo. No Brasil, já não se viam mais essas produções, diferente de países como Alemanha, em que atores e atrizes continuaram mesmo com o advento da televisão. “Um exemplo disso é o trabalho de Winston Duke, o M’Baku de Pantera Negra, que vai interpretar Bruce Wayne/Batman no audiodrama Batman Unburied. No nosso caso, são imigrantes que ensaiam e gravam os episódios para serem transmitidos por ondas digitais”, complementa Gabriel.  

Compartilhe
Ler mais sobre
direitos humanos imigração
Jornalista engajada nas causas sociais e na política. Gosta de escrever sobre identidade cultural, representatividade e tudo aquilo que engloba diversidade.
Ler mais sobre
Culturas populares Direitos humanos Entrevista

Como a cultura do brincar pode ajudar na aprendizagem e alfabetização das crianças

Direitos humanos Entrevista Processos artísticos

Uma conversa com Nduduzo Siba, artista imigrante que o governo quer expulsar do Brasil