Lei Aldir Blanc deixa legado para consolidar o “SUS da Cultura”

Rafael Gloria

Ilustração: Bárbara Quintino/Nonada Jornalismo

Além de proporcionar um repasse emergencial de R$ 3 bi aos trabalhadores da cultura atingidos pela pandemia em todo Brasil, a Lei Aldir Blanc (LAB) deixou um legado também para a gestão pública de cultura no país. A aplicação da lei foi uma chance para se observar as oportunidades e os obstáculos do funcionamento do Sistema Nacional de Cultura (SNC) em âmbito estadual e municipal em diversos cantos do país.

O SNC é o instrumento que tem como objetivo fortalecer institucionalmente as políticas públicas culturais do país. Ele organiza a gestão cultural, aproximando o governo e a sociedade civil. A exemplo do SUS, quando completamente implementado, o sistema vai incluir também estados e municípios de forma capilarizada, facilitando a inclusão de dados sobre o setor cultural e também o repasse de recursos para fundos municipais de cultura. 

De acordo com os indicadores do Plano Nacional de Cultura, 674 municípios do país (ou seja, 20,2% do total) possuem leis para a criação de sistemas municipais de cultura. A meta prevista em 2010, ocasião em que foi lançado o plano, era de 60% dos municípios. Ainda segundo os dados, mais de 80% já firmaram acordos de cooperação federativa para a implementação dos sistemas. No entanto, é apenas a partir das leis que o processo pode ser consolidado. Os dados são de 2020.

No Rio Grande do Sul, que já possui seu Sistema Estadual de Cultura (SEC-RS), o desafio atual é incluir os 497 municípios no processo. Alexandre Vargas, assessor do SEC-RS, diz que houve um fortalecimento desse sistema na aplicação da LAB. “A ideia foi promover o crescimento das políticas públicas nas cidades, justamente através da consolidação dos sistemas municipais de cultura”, explica Vargas, informando que a adesão dos municípios ao SEC cresceu 337%. “Esse número corresponde a 17% dos municípios do Rio Grande do Sul dentro do SEC. Ainda é pouco, no entanto esses mesmos 17% correspondem a mais de 51% da população gaúcha, então, é um número expressivo”, acredita. 

Fases de implantação do sistema de cultura (Foto: SNC/governo federal)

As vantagens para os municípios que aderem ao sistema passam por questões organizacionais e até financeiras. Na esfera administrativa, o processo inclui a criação de conselhos e colegiados que vão apoiar a criação de programas e ações para incentivar a cultura, além da elaboração de planos estratégicos, para que o incentivo à cultura seja regido pelo Estado e não mude de governo para governo. Com um sistema sólido, os artistas e trabalhadores da área têm uma estrutura mais concreta que vai converter também em geração de renda no município. 

Além disso, a tendência é que o sistema viabilize o repasse de verbas a fundos municipais. “Hoje, uma mudança que foi feita na Lei de Incentivo à Cultura permite que o município alimente o seu fundo municipal através de projetos de captação de isenção de ICMS, isso vai levar com que muitos municípios façam adesão ao sistema estadual e ao sistema federal. Porque é de fato uma realidade concreta para que os municípios tenham dinheiro para desenvolver as ações culturais”, explica Vargas.

Um dos desafios para continuar consolidando o SEC é a capacitação e o envolvimento da sociedade civil. “Se faz necessário aprimorar o campo de atuação do gestor, do dirigente, do técnico de cultura, e da sociedade civil que hoje não está lá como gestor cultural, mas amanhã pode estar, que é aquele ativista, aquele artista, aquela pessoa que se envolve com o movimento cultural. Então, você não pode deixar de fora a sociedade civil dessa qualificação”, diz Alexandre. Nesse sentido, a secretaria de Cultura do RS lançou o Programa de Formação e Qualificação Cultural, para o aperfeiçoamento de gestores e dirigentes de cultura e da sociedade civil.

A realização do curso também é uma consequência da Lei Aldir Blanc e do Mapa Lab, projeto do governo que funcionou como um mapeamento da implementação da Lei nos municípios. “Foram estudados 156 municípios aqui do RS, que representam 31% do total dos municípios, mas ultrapassa 75% em termos de população”, explica Alexandre. Com isso, o estudo deu a base teórica para o curso, que traz uma programação, trazendo temas importantes e carentes de formação no setor como gestão pública da cultura e introdução a área do Direito Cultural. 

Importante ainda para o desenvolvimento do SEC são os planos setoriais das diferentes áreas da cultura. “Eu diria que esse hoje deve ser o ponto a ser avançado para uma definição de meta do plano estadual de cultura, metas plausíveis. Eles são fundamentais, porque cada setor é muito diverso, e tem as suas devidas complexidades”, aponta Alexandre. 

 

A experiência dos editais

Os editais lançados para distribuir os recursos da LAB aos artistas do Rio Grande do Sul também possibilitam um conhecimento mais aprofundado sobre a realidade do desenvolvimento da cultura nos municípios gaúchos. Um desses editais foi o Criação e Formação – Diversidade das Culturas, realizado pela Fundação Marcopolo de forma terceirizada pela Sedac-RS. Ao todo, foram 592 projetos aprovados em 127 municípios, abarcando todas as regiões do Rio Grande do Sul. 

Para o seu coordenador, Luciano Balen, um dos méritos do edital foi justamente conseguir fazer uma radiografia cultural do Estado. “Nós começamos a enxergar que cada região tem o seu DNA. O serrano, embora cosmopolita e industrial, tem muitas questões ligadas à diversidade linguística, que são importantíssimas heranças culturais. Na região noroeste, há muitos projetos de cidades pequenas, falando de questões indígenas. No litoral, projetos ligados  à questão do maçambique, quilombolas, memória dos açorianos. Na fronteira, questões relacionadas aos dilemas da identidade fronteiriça. Já no sul, Pelotas e Camaquã, muita da história ancestral do RS”, resume Balen. 

Segundo ele, é preciso entender o papel que o Rio Grande do Sul tem em relação ao Brasil. “Acho que o primeiro desafio deve ser tentar entender qual é o papel nosso como gaúcho no país, e como isso pode se tornar um ativo de sustentabilidade, como a gente, por exemplo, também pode trabalhar o setor cultural com o turismo”, afirma. Outra tarefa seria tentar entender o papel do Estado como ponte entre a América do Sul que fala português e a que fala espanhol. 

Entre as dificuldades identificadas, estão algumas áreas que precisam de maior incentivo e profissionalização, como a do cinema no interior do Rio Grande do Sul e o campo do artesanato. “O setor do audiovisual fora da capital precisa de uma atenção especial, é um setor que é uma força econômica e de comunicação. Investir em audiovisual é importante também para o reforço da marca Rio Grande do Sul, da nossa cultura. Acho que é um investimento importantíssimo a longo prazo para a gente entender qual é o nosso papel perante o nosso país”, diz Balen. Na área de música, ele pontua que poderia haver um aprofundamento maior em questões como pesquisa e estética do trabalho. 

O processo seletivo também realizou a distribuição de recursos a proponentes de diversos municípios do Rio Grande do Sul por meio dos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES). “Isso foi algo que o edital acreditou, a participação dos COREDES, acho que essa tarefa de compreender nosso papel passa também pela discussão nos fóruns de debates das regiões, elaborar e articular junto. Por exemplo, não temos calendários de eventos culturais para viajar no Estado, exceto na área do gauchismo”, explica. 

Discutindo a diversidade

Nesse sentido, dada a extensão cultural do Estado, é cada vez mais importante a discussão da diversidade e a inserção nas políticas públicas nos editais e nas políticas públicas. Segundo Clarissa Lima, assessora de diversidade da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul, trata-se do reconhecimento e do entendimento dos grupos minorizados e a criação de projetos voltados para atender às necessidades desse segmento. 

Para Balen, o ideal seria conseguir que o Rio Grande do Sul entenda a sua diversidade, respeite e, mais que isso, a valorize. “Entender as questões LGBTQI+, da negritude, indígenas, e de como eles podem contribuir para o nosso desenvolvimento como sociedade, como estética, como tecnologia, como ciência, como história, como arte, como memória. O sonho seria a gente conseguir ter um pedacinho de cada segmento dentro de outro segmento, que a gente conseguisse lidar com mais respeito, que a gente conseguisse enxergar que isso vai nos deixar melhores no futuro”, diz.

A diversidade, aliás, é um dos elementos que compõem o Plano Estadual de Cultura. No estudo do Mapa Lab, verificou-se como  essas políticas públicas estão sendo realizadas e percebeu-se a necessidade de um letramento em relação à diversidade. “A partir desse diagnóstico, a Secretaria de Estado da Cultura (Sedac) vem se articulando para realizar, por meio do Programa Estadual de Formação e Qualificação na Área Cultural, cursos sobre o tema para os gestores culturais e a sociedade civil em geral.  A expectativa é de que as capacitações ocorram no primeiro semestre de 2022”, explica Clarissa.  

Política de transparência: O Nonada Jornalismo recebeu recursos do edital Criação de Formação – Diversidades nas Culturas para a realização do projeto Revista Nonada: Sobre Viver de Cultura

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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