Em audiência na OEA, secretário de Cultura diz que censura no Brasil não é real

Thaís Seganfredo

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) realizou na terça-feira (14) uma audiência sobre o cerceamento à liberdade artística do Brasil. Na sessão, o secretário de Cultura em exercício na ausência de Mário Frias, André Porciuncula, usou informações falsas para negar que haja censura no Brasil, mesmo após confrontado com dados que apontam mais de 170 casos de censura e autoritarismo do governo Federal contra artistas e agentes culturais.

A audiência foi pedida pelo Mobile – Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística, que denunciou os casos à Comissão, ao lado de artistas como Daniela Mercury e Caetano Veloso, que também participaram da sessão de forma virtual. “O movimento surgiu no final de 2019 como uma reação ao aumento da violação da liberdade artística. O que hoje denunciamos é um caso grave”, iniciou Guilherme Coelho, integrante da rede.

Denise Dora, diretora do Artigo 19, também membro do Mobile, lembrou que 70% dos casos relatados pelo movimento são relativos a medidas diretas do governo Federal. “Esses casos evidenciam uma agenda coordenada do Estado brasileira de censura e de desmonte do setor cultural. A máquina pública tem sido usada para aparelhamento de órgãos e destruição de políticas públicas”, destacou.

Artistas como Caetano Veloso, Wagner Moura e Daniela Mercury, integrante do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, também enviaram depoimentos.  Daniela citou a ação ajuizada pela Ordem dos Advogados do Brasil no STF que pede a anulação de portarias publicadas pela secretaria de Cultura e apontou que houve uma redução de 75,5% na aprovação de projetos culturais na Lei Rouanet. “Essa autocracia cultural afronta a essência da democracia pois fere a multiplicidade de ideias, o dissenso e a crítica”, declarou, observando também que o governo promove ataques à integridade do processo eleitoral, a opositores políticos e a jornalistas.

Governo usou desinformação para rebater movimento

Audiência foi realiza remotamente (Foto: reprodução/Youtube)

Um caso emblemático citado na sessão foi a censura sofrida pelo Festival de Jazz do Capão, que recebeu parecer negativo da Funarte durante o processo de aprovação da Lei Rouanet. Os ataques do governo ao festival ilustraram a essência do que foi debatido na Comissão, na medida em que o governo, representado por Porciuncula, usou argumentos pseudotecnicistas para justificar o cerceamento ao festival e a outras obras e eventos culturais. “Ao dizer que é contra o fascismo e pela democracia, o festival se vendeu como evento político e não cultural”, chegou a dizer o secretário.

Porciuncula, que tem como cargo oficial o comando da secretaria de Incentivo e Fomento à Cultura, voltou a repetir o conceito já usado outras vezes pelo governo de que a cultura estaria atrelada a um valor civilizatório. “Entendemos que a cultura não é o local de uma classe, mas sim a pedra angular da civilização brotada e germinada.” Sem qualquer comprovação, Porciuncula afirmou que antes da gestão atual, a cultura estava nas mãos de uma “elite cultural” e disse que o governo Bolsonaro foi o que mais injetou recursos na cultura. Dados do Observatório do Itaú Cultural revelam que, desde que Bolsonaro foi eleito, a cultura vem recebendo menos recursos federais. Em 2021, a queda foi ainda maior, na medida em que foram injetados cerca de R$ 630 mil reais, somando-se o orçamento da secretaria e fundos de financiamento. Em 2020, o valor foi de R$ 2,2 milhões e, em 2019, R$ 2,9 milhões.

Em menos de 30 minutos de fala, o representante da secretaria ainda atribuiu ao governo o mérito da Lei Aldir Blanc (uma iniciativa da Câmara dos Deputados), disse de forma pejorativa que as normas de prevenção à covid-19 foram “medidas sanitaristas” e chegou a afirmar que o Mobile estaria desrespeitando as “vítimas reais de censura no mundo”. Ao tentar responder ao movimento sobre a censura na Fundação Palmares, o secretário encerrou com a falácia de que “nunca houve no Brasil uma segregação racial”.

O conceito de “elite cultural” gerou preocupação por parte dos integrantes da Comissão.  O relator especial para liberdade de expressão, Pedro Vaca, pediu ao governo que informasse melhor os critérios e o embasamento usado para definir o que seria essa elite. Já a relatora Margareth Macauley questionou a Porciuncula se a sociedade foi convidada a propor a distribuição dos recursos. “Os produtos da expressão cultural são propriedade intelectual e por isso são propriedade privada do criador, e o Estado deve respeitar e proteger essa propriedade”, destacou. 

Na fala final do Mobile, o professor Conrado Hubner, da Laut, afirmou que a postura de tergiversação do governo ao não responder sobre os 170 casos de censura e adotar uma postura diversionista lembrava a época da ditadura militar no Brasil. “É claro que defendemos os artistas comuns. É óbvio que nós defendemos a distribuição profunda de recursos, mas não estamos falando disso [nesta Comissão]. As intervenções do Estado atingem artistas marginalizados e atingem a arte popular”. 

O Mobile peticionou uma série de medidas à Comissão, incluindo o monitoramento contínuo das ações autoritárias do governo, o questionamento oficial ao Estado brasileiro sobre as denúncias e ainda uma visita oficial da OEA ao Brasil para avaliar o cerco à liberdade artística no país. O presidente do órgão afirmou que o objetivo da audiência era promover um diálogo entre sociedade civil e o governo e pediu ao Mobile o acesso ao dossiê que aponta os 170 casos de censura relatados. Todos os registros podem ser acessados publicamente neste link. 

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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