Foto: Terramar Imagem e Conteúdo / Sementes da Retomada

Um som sonhado em conjunto: música Guarani encontra ritmos latinos em EP 

As vozes de jovens músicos Mbya-Guarani reverberam no interior da Escola Autônoma Tekó Jeapó (que, em português, significa, “cultura em ação”). O grupo forma um meio círculo em frente a microfones dispostos no espaço e, do centro da Escola, começa a cantar. São quinze vozes, de crianças e adolescentes que integram o Coral Araí Ovy, da Retomada Mbya-Guarani em Tekoa Ka´aguy Porã (mata sagrada), no município de Maquiné, litoral do Rio Grande do Sul. Coordenado por Romario Werá Xunun, o grupo completou quatro anos em 27 janeiro – na mesma data, a Retomada celebrou cinco anos de existência, desde que os Guarani reivindicaram a demarcação da terra

De lá, as letras de autoria de Romário encontram a mistura de sonoridades latina característica da banda porto-alegrense La Digna Rabia. Uma reunião improvável de sons que parecia, de início, para o coordenador do Coral, uma “loucura”. Mas esse encontro sonoro entre banda e Coral era, na verdade, um sonho antigo, desde que a banda começou a participar de ações coletivas no território da Retomada. Em 2018, músicos da La Digna Rabia estiveram presentes no mutirão de construção da escola, primeira vez que tocaram no espaço. O encontro marcou o início de uma relação próxima com os artistas, que frequentemente tocavam em atividades, como a inauguração e a celebração de um ano da Tekó Jeapó. 

Desde lá foi nutrido o sonho de um dia tocarem juntos. Contemplado com recursos da Lei Aldir Blanc, o projeto Sementes da Retomada possibilitou esse encontro através da realização de um EP de seis faixas e  de um documentário sobre o processo de criação. Gravado no início de 2021, em meio aos momentos de maior agravamento da pandemia no estado, o projeto sofreu sucessivas modificações para chegar ao resultado final. A ideia inicial era que os grupos pudessem se encontrar, trocar, ensaiar e gravar juntos. 

A pandemia modificou bastante a execução do projeto, conta Marcelo Argenta, vocalista e fundador da banda. “Faríamos uma série de residências, vivências, em que iríamos para lá, realizar atividades que não fossem só as musicais. Só que pegamos bem o momento de agravamento da pandemia, sem vacina e com bandeira preta.” O cuidado e preocupação com a segurança fez com que ele fosse reestruturado, e realizado, em sua maior parte, à distância.

Diálogos sonoros 

Foto: Terramar Imagem e Conteúdo / Sementes da Retomada

“Com o projeto, tivemos a oportunidade de juntar nosso som com a banda. Essa experiência foi nova e vai ficar para o resto da vida das crianças e de cada um que esteve aqui”, conta o coordenador do Coral. A relação de Romário com o canto começou muito cedo, quando ainda era um menino. Hoje, na organização do grupo, ele se enxerga como um sensibilizador, um incentivador para que as crianças sigam conectadas à cultura guarani. “Quando eu era pequeno, já gostava de mostrar a dança e cantar. Achava nossa cultura muito linda e continuo achando até hoje. Por isso incentivo as crianças a continuarem.”

O EP, lançado em setembro de 2021, apresenta seis músicas de autoria de Romário e que contam sobre o ñandé rekó, modo de vida guarani. “Elas falam da nossa aldeia, da mata sagrada, do nosso deus Tupã, do sol, do dia a dia, e também dos Xondaro’i (pequenos guerreiros e pequenas guerreiras)”, explica o músico. A banda já conhecia as canções antes do início do projeto e ficava imaginando como poderiam dialogar musicalmente com elas. “A gente pensava ‘essa aqui tem cara de reggae’, ‘essa aqui ia ficar legal uma cumbia’.” lembra Igor Symanski Rey Gil, baixista. “Começamos a ensaiar, emulando um pouco esses ritmos. Quando começou o trabalho com o Arthur [de faria], ele arranjou com coisas mais diversas para as músicas não ficarem tão quadradas.” 

A gravação aconteceu em duas etapas: a primeira em Teoka Ka´aguy Porã, dentro da Escola, com o Coral, e a segunda em estúdio, com o trabalho instrumental da banda. “Quando eu converso informalmente com as pessoas e elas perguntam ‘o que é o disco?’ eu digo: ele não é o coral, e não é a La Digna Rabia. Se construiu outra coisa”, explica Marcelo. Entre as atividades previstas no projeto inicial, está a imersão em plataformas digitais de criação para as crianças da aldeia. Todos os desenhos do CD são de autoria das crianças, com orientação e projeto gráfico do artista visual Leo Garbin. As letras dos cantos aparecem em Guarani e em português.   

Canto que fortalece a luta 

Foto: Terramar Imagem e Conteúdo / Sementes da Retomada

O canto é celebração da cultura Mbya-Guarani, mas também estratégia de enfrentamento e luta no território da Retomada. “O coral é para fortalecer o dia. A nossa luta vem vindo de mil e quinhentos anos para trás. Formamos o Coral para nos fortalecer, para continuar cantando o nosso canto, a nossa dança. A nossa cultura nunca se perdeu.” Romário, enquanto coordenador, procura deixar as crianças livres para despertarem o interesse, mas reforça a importância dessas práticas para quando precisarem. “Não sou eu que comando o Coral. Na verdade, nós todos é que comandamos. A música é para que estejamos firmas”, explica.

O enfrentamento político é central também para a La Digna Rabia, que em sua gênese sempre esteve ligada a movimentos sociais. Antes de se conhecerem como músicos, doze anos atrás, as linhas de contato dos sete integrantes da banda eram dentro de uma esfera de militância politica. “A La Digna Rabia nasce dentro de uma proposta que une política e arte. Vem de uma perspectiva de orientação anarquista, de apoio às iniciativas autonomistas e movimentos sociais”, conta Marcelo. 

A troca entre banda e Coral também se dá naquilo que se aprende com o canto Guarani e que escapa às concepções tradicionais (e embranquecidas) dos ritmos musicais. O canto e a letra falam da relação com dimensões não-materiais e a música é entendida como uma manifestação da espiritualidade. O canto expressa um diálogo com ancestralidades que os Juruá (não-indígenas) estão acostumados a não acessar. “A gente vem de uma outra sociedade, onde essas dimensões são por vezes colocadas em estereótipos, mas é muito legal estar com eles, poder se deixar tocar por outras formas de vida que nos rodeiam e expressar isso musicalmente”, destaca Marcelo.  

O que vem depois da semente 

Sementes da Retomada, além de Disco, também virou documentário. Dirigido por Marcelo Cúria, produzido pela TerraMar Conteúdo, o filme conta sobre o processo de gravação das músicas, a partir de depoimentos de integrantes da banda e do coral. As imagens gravadas na Retomada mostram a relação com o território, a mata sagrada, o cotidiano e a presença do canto na aldeia. Em janeiro, o documentário foi selecionado para a mostra competitiva do Festival Visões Periféricas, do Rio de Janeiro. 

“Penso no próprio nome do projeto. Se é semente, ela ainda há de crescer muito. Vem a radícula, depois a primeira folha, segunda folha e vai crescendo”, lembra Igor sobre a continuidade da proposta. O ciclo do projeto já encerrou com o EP disponível para escuta nas plataformas SoundCloud e Spotify. O disco físico também foi lançado e mil cópias foram entregadas à comunidade para comercialização. O documentário ainda segue com acesso restrito para viabilizar sua exibição em festivais, mas também será disponibilizado em breve.

Foto: Terramar Imagem e Conteúdo / Sementes da Retomada

A vontade agora, depois de lançadas as Sementes, é que La Digna Rabia e Araí Ovy possam se encontrar e tocar sem distância. Dessa vez, com a situação da pandemia melhor, a esperança é de que a parceria possa seguir em encontros (musicais) e presenciais. Já Romário conta que pretende inaugurar sua trajetória artística como músico. “Eu penso em seguir carreira solo, para deixar as crianças coordenarem o coral. Quero que continue o Araí Ovy, porque é importante para eles, para a aldeia, para nossa cultura. Vamos passando de geração para geração. Os que estão vindo tem que continuar, porque a luta não acaba amanhã.” 

O Coral é formada por: Alexandro | Wera Xunu Andreia | Jaxuka Poty Cleiton | Karaí Fabiana | Jaxuka Mirim Gabriel | Karai Tataendy Iedison | Kuaray Mirĩ Jonata | Wera Mirĩ Josiel | Kuaray Larissa | Para Madisson | Kuaray Mirĩ Mailson | Karai Tataendy Volmir | Wera Mimbi Maestro/ / Compositor: Romário Werá Xunun // Apoio e Coordenação: André Benites Eliana Benites 

A banda é formada por: Marcelo Argenta (voz/ teclado/synth) Pietro Duarte (sax) Gabriel Luzzi (trompete) Hiro Okido (guitarra) Igor Symanski Rey Gil (baixo) Tavinho (percussão) Artistas Convidados Diego Schutz (teclado) Luciel Izumi (charango) Zé Darcy (bateria)// Arranjos: Arthur de Faria 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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