Agência Brasil/reprodução

Desmonte da Ancine coloca em risco financiamento público do cinema brasileiro

Os últimos quatro anos têm sido de escassez para o financiamento público do audiovisual brasileiro. A queda de editais de fomento para produções nacionais no governo Bolsonaro representou mais de 85%. Se nos anos de 2015 e 2016, a média anual de editais publicados era 14, a média passou para apenas 2 durante o governo Bolsonaro.

Criada em 2001, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) é responsável pela implantação das políticas públicas voltadas ao setor audiovisual no Brasil. Ela funciona como uma agência reguladora, teoricamente independente do governo Federal, e que fiscaliza o fomento e a regulação do mercado do cinema e do audiovisual no Brasil. Graças a editais implementados por ela, longas prestigiados, como Aquarius, Medida Provisória, Bacurau e o mais recente Marte Um foram possíveis, para citar alguns dos mais recentes. 

O chamado “desmonte” da Ancine acontece porque há um plano em curso de retirar o protagonismo que a agência tinha, afirma Marina Rodrigues, pesquisadora, produtora executiva no Rio de Janeiro e idealizadora do projeto @simplificacine. O mercado audiovisual, que vinha em um crescimento na última década, destacando-se no panorama mundial, aumentando postos de trabalho, gerando mais renda que diversos outros setores, sofreu um freio brusco. “O desmonte começa com Michel Temer, entre 2017 e 2018. Ele começou esse trabalho de desestabilizar as políticas públicas da agência, tentando torná-la uma fachada que não dificultasse mais a vida do estrangeiro”, afirma Marina. 

Com o início do governo Bolsonaro, os ataques passaram a ser públicos e direcionados. Em 2019, o atual presidente disse que “Se não puder ter filtro, nós privatizaremos ou extinguiremos a Ancine”. Já era o anúncio do movimento que definiria os últimos anos da agência: perseguição a produções com temáticas sociais e políticas, priorização do mercado externo, falta de transparência, ausência de editais e até mesmo um caso de orçamento secreto. 

Em maio de 2019, O Tribunal de Contas da União determinou que a Ancine suspendesse o repasse de recursos públicos para o setor audiovisual, paralisando produções que estavam em andamento. O TCU alegou que a Agência precisava comprovar a lisura dos processos de prestações de contas dos projetos. 

Ato dos profissionais do audiovisual contra o desmonte da Ancine (Foto: Associação das Produtoras Independentes do Audiovisual Brasileiro)

A Ancine tem, de fato, um passivo de contas de mais de décadas atrás. Essa relação de demora já existe desde o surgimento da agência. O que aconteceu foi que, ao acatar o pedido do Tribunal e analisar prestações antigas, a Ancine praticamente paralisou o andamento de novos projetos. Produtoras e trabalhadores do setor tiveram que buscar outras formas de financiamento, como co-produções internacionais, plataformas de streaming, editais municipais e estaduais, e leis incentivo emergenciais, como a Aldir Blanc. 

A questão das contas é uma forma que o governo tem de inverter a narrativa, colocando as produtoras como culpadas. Do lado dos realizadores, a chamada “insegurança jurídica” só aumenta. Em 2020, a Ancine alegou ter “insuficiência de recursos financeiros para o cumprimento dos compromissos de investimento assumidos pelo Fundo Setorial do Audiovisual” e “para o custeio de obrigações assumidas com os agentes financeiros do fundo”. Apesar disso, em nota publicada em maio de 2021, a agência afirmou que “não houve descontinuidade ou desinvestimento na atividade audiovisual.” O Fundo Setorial do Audiovisual é um dos mais importantes no fomento de séries de TV, filmes e produções similares, mas desde o início do governo Bolsonaro, o dinheiro não tem sido destinado conforme a lei. 

O desmonte da Ancine, apesar de estar vinculado a um desmonte geral da cultura – como a extinção do Ministério e as tentativas de boicote às leis de incentivo -, acontece junto ao desmonte das agências reguladoras, de forma geral. Por meio de uma PEC, em abril deste ano, o governo tentou esvaziar outras agências, como a Anvisa, a Anatel, retirando funções, deixando-as com menos autonomia. A PEC foi encabeçada por um grupo de empresários e parlamentares da Frente Parlamentar do Empreendedorismo (FPE) – com 207 deputados e senadores. 

O fato mais recente que envolve o desmonte da Ancine é um ofício, escrito pela Associação de Servidores Públicos (Aspac). Os servidores alegam falta de transparência por parte da Agência nos últimos dois anos e demonstram uma séria preocupação com o futuro do setor. Eles denunciam que o órgão está contratando irregularmente e sem remuneração pessoas para trabalharem como pareceristas nos editais do FSA, mesmo com os R$ 12 milhões previstos no orçamento do Fundo para despesas. O grupo afirma, ainda, que a seção de transparência do site da Ancine, ou seja, o repositório em que a instituição publica dados sobre suas atividades, está desatualizada há mais de dois anos. 

Os servidores também elaboraram uma carta recentemente em que afirmam que a extinção da Condecine, prevista no plano orçamentário de Bolsonaro para 2023, inviabiliza a existência da agência e de parte do setor. A Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica) é uma cobrança federal feita por meio da Ancine para emissoras de TV abertas ou canais pagos, rádios, operadoras e produtoras de vídeo e de cinema. A arrecadação representa quase todo o dinheiro do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA),  cerca de R$ 1 bilhão por ano. Sem a Condecine, o cinema brasileiro fica em risco. 

“A proposta de fim da Condecine é a mais nova etapa do ciclo de desmonte das políticas audiovisuais e, se concretizada, pode representar a pá de cal definitiva na produção audiovisual brasileira independente e plural”, afirmam os servidores da agência. 

Impacto Sentido 

Produtoras independentes, fora do Eixo-Rio São Paulo, foram as mais impactadas nos últimos quatro anos. Giordano Gio é diretor e sócio da Fehorama Filmes, produtora audiovisual com sede em Porto Alegre. Fundada em 2015, Giordano lembra que o momento já era de um início de desmonte a nível também estadual. O Rio Grande do Sul vivia a gestão do governo Sartori, que havia extinguido a Secretaria de Cultura e outras políticas importantes para o audiovisual do estado, como o fim da TVE. A nível federal, o cenário também não era animador para quem queria começar a produzir. 

Gravações de Esquadrão 51 (Foto: divulgação)

“A Fehorama já chegou em um momento menos estimulante do que a década anterior, e até mesmo do que os anos imediatamente anteriores”, avalia Giordano. “Os primeiros anos de uma produtora são geralmente momentos em que a produtora vai se entendendo, tateando. Quando a gente atingiu uma maturidade, o desmonte já estava mais estruturado e agressivo. Foi muito difícil e desestimulante para produtoras pequenas, criarem e se manterem com projetos próprios.” 

Entre as estratégias para atravessar esses anos, Giordano cita a parceria com outras produtoras, de mesmo ou maior porte, na intenção de viabilizar projetos. “São maneiras que produtoras pequenas, surgidas nos anos 2010, de realizadores jovens, foram encontrando de seguir existindo, mas não são muitas que conseguem seguir em um ambiente tão desestimulante.” 

O maior projeto recente da Fehorama foi a realização do videogame Esquadrão 51, entre 2018 e 2022, que não dependia de recursos públicos. Já para projetos de cinema e televisão, os editais regionais e municipais, como o FAC (Fundo de Apoio à Cultura) – agora com a Secretaria de Cultura restabelecida, e o FAS da Prefeitura de Novo Hamburgo têm sido a maior fonte de fomento da equipe.

Perseguição Dirigida 

O “filtro” que Bolsonaro anunciava em 2019 foi se mostrando aos poucos durante o governo. Alguns casos ficaram mais conhecidos, como o do filme Marighella, que teve pedidos negados para a comercialização do filme enviados à Ancine. O filme demorou dois anos para chegar aos cinemas e teve sua censura denunciada pela produção e pelo elenco. 

Também houve o caso do filme Penal cordillera, que não recebeu os recursos da Ancine. Em uma coprodução com o Chile, o filme sobre torturadores na ditadura de Pinochet foi selecionado em 2019 e teve o orçamento bloqueado pelo órgão. Outro longa-metragem aprovado em 2018 pela agência, sobre a vida e trajetória do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, também teve sua realização interrompida. 

A Aspac, mesma entidade que escreveu a carta dos servidores contra o desmonte da Ancine, já vem se posicionado nos últimos anos e pedindo esclarecimentos a respeito de como a política no audiovisual é conduzida sob o atual governo. Em 2019, o grupo questionou a instituição sobre a remoção de cartazes de filmes nacionais e o cancelamento da sessão de A Vida Invisível

Seu Jorge e Wagner moura nos bastidores de “Marighella” (Foto: divulgação)

Em 2021, a Aspac denunciou um edital secreto realizado pelo governo para obras sobre obicentenário da Independência do Brasil. O edital de 30 milhões  foi aprovado em sigilo e em caráter de urgência, sem aparecer no site do BRDE, onde realizadores escrevem seus projetos.  “O valor é muito maior do que o governo diz que quer destinar pro FSA. Um edital sigiloso, sem participação ampla de todas as empresas do audiovisual do país com o intuito de beneficiar realmente as produtoras mais alinhadas à narrativas da extrema direita”, explica Marina. 

“Bolsonaro deixou isso muito claro lá atrás quando censurou uma lista de projetos aprovados em parceria com a EBC, empresa brasileira de comunicação, por trás de canais como TV Cultura, TV Escola, rádios universitários, TVs universitárias”, relembra a pesquisadora. O fato ocorreu em agosto de 2019, quando o presidente ordenou a suspensão no repasse das verbas para todos os projetos que estavam incluídos no edital “RDE/FSA PRODAV” e que concorriam pelas categorias “diversidade de gênero” e “sexualidade”. Lançado em 13 de março de 2018, a seleção tinha um orçamento total de R$ 70 milhões, provenientes do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). 

“Os prejuízos vão muito além das obras censuradas, afetam até mesmo a continuidade das políticas públicas”, dizem os servidores da Aspac, através de carta publicada em setembro de 2022.  “Após denúncias de censura a filmes brasileiros com temática LGBT em festivais em Portugal 11 , a Ancine encerrou o Programa de Apoio a Apoio à Participação Brasileira em Festivais Internacionais. 

Após a escolha do filme A vida invisível, a Ancine encerrou o Programa de Apoio Financeiro aos filmes brasileiros de longa-metragem indicados ao Oscar. Após a escolha de um filme sobre torturadores, a Ancine encerrou todas as parcerias bilaterais de coprodução internacional, abrindo mão dos recursos que os parceiros internacionais investiram no audiovisual brasileiro”, denunciam. 

Contudo, uma vitória recente do setor foi conseguir que a Academia de Cinema, e não mais a Ancine, indicasse o filme que representaria o Brasil na premiação do Oscar. 

Futuro da Agência 

Em uma troca de governo, Marina avalia que a primeira medida para uma reestruturação do setor do audiovisual seria a recriação do Ministério da Cultura. Sem a alçada do antigo MINC, dirigido apenas como Turismo, os projetos têm se esvaziado cada vez mais a nível federal. 

A pesquisadora também acredita que a Ancine precisa restabelecer a chamada Cota da Tela, obrigação legal que as empresas exibidoras possuem de incluir em sua programação obras cinematográficas brasileiras de longa-metragem. Segundo ela, vários filmes nacionais tiveram seus lançamentos prejudicados pela descontinuidade dessa política. Em 2012, a Ancine divulgou um estudo que aponta em dados o aumento de obras nacionais exibidas em salas de cinema. 

Em 2002, 29 obras nacionais chegaram aos cinemas, em 2019 esse número foi de 167 – um salto de 14,8% para 37,6% na participação de lançamentos. Atualmente, a cota depende de um decreto presidencial que precisa ser revisto anualmente – e que não foi renovado em 2022.  “É preciso repensar a política para que a legislação fique válida por um longo período de tempo, sem depender de um decreto que autorize”, avalia. 

Outra medida importante na visão de Marina é a regulamentação de plataformas de streaming. Ela considera que o streaming foi como “um bote salva-vidas” para muitos trabalhadores do setor,  mas que a longo prazo é importante pensar nas condições de trabalho dessas pessoas e nos direitos autorais das obras. 

“As pessoas estão sofrendo com baixos salários. Elas são pagas para fazer o projeto, mas depois elas não recebem mais nada por ele. Nós estamos condicionando os nossos projetos, as nossas obras brasileiras, para ficar em domínio estrangeiro”, comenta. “São produtos que daqui a dez anos serão muito mais posse de uma empresa de fora do que do Brasil.” Para isso, o investimento e  fortalecimento do Fundo Setorial Audiovisual (FSA), e a descentralização dos recursos para além do eixo Rio-São Paulo, são necessários. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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