Escultura feminina feita entre 1000 a 1400 a.D. pela cultura Santarém (Foto: Museu Nacional/reprodução)

Saiba quais são os bens culturais sob risco de tráfico ilícito no Brasil

Há 120 milhões de anos, Ubirajara habitava o sul do Ceará. Batizado com o nome indígena por paleontólogos europeus, o dinossauro brasileiro foi descoberto em 2020, quando os cientistas publicaram um artigo a partir de um fóssil completo, que estava em um museu da Alemanha, sem o conhecimento dos paleontólogos brasileiros. 

Até hoje, não são conhecidas as circunstâncias dessa transferência do fóssil para a Europa, embora já se saiba que ele foi tirado do Brasil de forma ilegal. A Alemanha decidiu em 2022 que Ubirajara vai voltar para o Brasil. Mais de 30 mil fósseis brasileiros enviados a outros países já foram devolvidos. Ainda assim, mesmo com uma legislação de 1942 que garante à União a posse dos fósseis, não é difícil encontrar peças à venda que poderiam estar nos museus e universidades.

O Brasil ainda tem cerca de 1900 itens do patrimônio cultural perdidos, segundo o Banco de Dados de Bens Culturais Procurados do Iphan. Esculturas sacras do século XVII, mapas antigos e até quadros de Picasso, Monet e Portinari já foram saqueados do país, que chegou ao 26ª lugar na lista de países com maior número de itens roubados e baixa taxa de recuperação. 

Exemplo de fóssil exposto no museu do Araripe, no Ceará (Foto: Marcos Santos/USP imagens)

As consequências desses saques passam por perdas econômicas aos acervos dos museus, por danos culturais e espirituais às comunidades indígenas que têm seus bens roubados e também pela privação dos itens à fruição da sociedade, como explica Rodrigo Christofoletti, professor de Patrimônio Cultural na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) . 

“Cada vez que a gente trafica um elemento nacional, a gente na verdade está esvaindo a nossa própria memória social.  O tráfico internacional de bens culturais representa uma das facetas mais nefastas da compreensão do particular sobre o coletivo”, diz o professor, doutor em História, Política e Bens Culturais e coordenador do Grupo de pesquisa Patrimônio e Relações Internacionais na UFJF. 

Recentemente, o Brasil avançou mais um passo para impedir novos roubos, ao ganhar uma lista com os bens culturais mais visados por saqueadores. Itens africanos ritualísticos de 1880, urnas marajoaras construídas entre os séculos V a XV e a primeira edição do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, que Machado de Assis publicou no século XIX são alguns dos objetos em risco.

O estudo foi publicado pelo Conselho Internacional de Museus (Icom) em fevereiro, após oito anos de trabalho. Esta é a primeira vez que o Brasil ganha uma “lista vermelha”, lançada pela instituição em diversos países.  A lista brasileira cita diversas tipologias de objetos que estão sob risco de tráfico, categorizados nos eixos Livros, Documentos e Fotografias; Arqueologia, Arte Sacra, Objetos Etnográficos e Paleontologia.

“Museus, casas de leilão, negociantes de arte e colecionadores são instados a não adquirir objetos similares aos apresentados nesta Lista Vermelha antes de cuidadosa e minuciosa diligência, verificação da procedência dos objetos e exame de toda a documentação legal relevante”, recomenda o Icom.

Arte marajoara, da sociedade pré-colombiana brasileira, é visada pelos saqueadores (Foto: Icom/Museu Nacional/reprodução)

No segmento de Livros e Fotografias, está por exemplo a Carta de João VI sobre abertura dos portos no Brasil,  do século XIX e a primeira edição do quadrinho O Tico-Tico, publicado no Rio de Janeiro no século XX. Ambos fazem parte do acervo da Biblioteca Nacional, cuja segurança foi deteriorada nos últimos anos.  “Atualmente, a estrutura carece de condições adequadas de segurança física dos funcionários e segurança patrimonial dos bens que lá se encontram”, aponta um relatório dos servidores da BN ao qual o Nonada Jornalismo teve acesso.

Já na categoria Arqueologia, o grande destaque é o das cerâmicas produzidas pelos Marajoaras, sociedade pré-colombiana que viveu na Ilha de Marajó, no Pará, entre os anos 400 e 1600 d.C.  São vasos, tangas, estatuetas e urnas funerárias e outros objetos com ornamentos sofisticados. Muitos itens marajoaras estão em acervos brasileiros como o Museu Paraense Emílio Goeldi, mas muitos também foram roubados.  Segundo o Icom, “estes objetos foram retirados do país ilegalmente e apareceram em galerias e em leilões especializados em arte pré-colombiana, principalmente na Europa”.

Nas outras categorias, estão fósseis brasileiros datados de até 278 milhões de anos, esculturas barrocas de Minas Gerais e também artefatos indígenas contemporâneos compostos a partir de animais selvagens ou em perigo de extinção.

A engrenagem do tráfico
Exemplares do jornal Don Quixote apreendido em Curitiba pela Polícia Federal (Foto: Polícia Federal/reprodução)

São muitos os atores que compõem essa cadeia do tráfico de bens culturais, que já é considerado o terceiro maior em volume, atrás do tráfico de armas e de drogas. “É uma  engrenagem sistêmica, que coliga atores das mais variadas naturezas, desde aquele que saqueia ou pilha, por várias necessidades, muitas delas inclusive necessidades pessoais de sobrevivência. O que é uma questão social muito candente dentro do universo do tráfico”, aponta o pesquisador.

Os bens roubados passam das mãos dos saqueadores para interceptadores, vendedores e por fim, revendedores, que podem incluir marchans (os negociantes de arte), casas de leilões e antiquários. Christofoletti alerta que os itens traficados não têm o registro de procedência, um selo que informa a origem do bem e confere confiabilidade ao processo de venda. Outro agravante é a facilidade que os agentes têm de vender as peças pela internet, em geral nos sites de marketplace, para pessoas de qualquer lugar do mundo. “A gente percebe que o consumidor final da ilicitude pode ser encontrado em qualquer lugar, justamente por conta da internet”, aponta.

Na última década, o Brasil avançou no mapeamento desses itens, mas é preciso um trabalho integrado entre instituições para conter principalmente a intermediação dos bens, defende o professor. “Por um lado, temos uma diversidade de instituições que cuidam do patrimônio, como o Iphan e o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram). Mas por outro lado, nós temos também a necessidade de capacitar cada vez mais órgãos como a Polícia Federal”.

Esculturas sacras do século XVIII estão em risco de serem roubadas (Foto: Icom/reprodução)

Só nos últimos dois anos, a Coordenação de Repressão a Crimes Ambientais e ao Patrimônio Cultural da PF apreendeu peças arqueológicas e itens raros, como o jornal “Don Quixote”, publicados entre os anos 1895 e 1903 no Rio de Janeiro. Os bens sumiram do acervo da cidade do Rio em 2006, mas só em 2019 a PF recebeu a informação de que os papéis poderiam estar sendo vendidos em um leilão virtual por um agente de Curitiba (PR).

Outro caso foi a recuperação de peças da Colômbia e do Equador, ambas originárias de um período anterior ao século XVI. As esculturas foram apreendidas no Rio de Janeiro em um leilão, depois que servidores do Iphan identificaram o crime e informaram à Polícia.

De volta para casa
Estatueta marajoara em forma de falo produzida entre os séculos V e XV (Foto: Museu Nacional/reprodução)

O dinossauro Ubirajara não é o único que está com viagem marcada de volta para casa. A repatriação de bens culturais, sobretudo aqueles levados de ex-colônias latinas e africanas para a Europa, é um tema que tem se intensificado nos fóruns internacionais, sobretudo nos últimos cinco anos.

Em 2018, o presidente da França, Emmanuel Macron, encomendou um estudo sobre o tema. O relatório recomendou a devolução de inúmeras peças hoje guardadas em reservas técnicas de acervos franceses aos seus países de origem. É ilustrativo o caso do Quai Branly, o Museu das Artes e Civilizações da África, Ásia, Oceania e Américas, que guarda 70 mil itens de origem africana, por exemplo.

Muitos países do sul global têm realizado mapeamentos a fim de requisitar a repatriação desses itens, ao mesmo tempo em que países como a França e a Alemanha começam a fazer pequenas e pontuais devoluções, explica Rodrigo  Christofoletti. “É uma tentativa decolonial de olhar para a história não mais a partir dos do umbigo europeu e norte-americano, mas construir uma história a partir do nosso ethos. A devolução e a repatriação podem ser efetivamente enquadradas como uma reparação histórica”, diz.

Ele complementa que está caindo por terra a ideia de que não há condições adequadas nos países do sul global para salvaguardar seus acervos. No Brasil, é emblemático o caso dos mantos Tupinambás produzidos entre os séculos XVI e XVII. Todos os 11 mantos remanescentes estão em museus do Brasil, e lideranças indígenas iniciaram nos últimos anos um movimento pela devolução das relíquias. 

Questões bilaterais também acabam aparecendo nesse complexo jogo diplomático. O próprio Brasil, além de requerer o retorno de bens roubados, detém até hoje a posse do canhão El Cristiano, um artefato bélico paraguaio guardado como um “troféu de guerra” oriundo da Guerra do Paraguai. 

Um dos 11 Mantos Tupinambás brasileiros está em um museu na Dinamarca (Foto: reprodução/twitter)

Uma solução mais estrutural, no entanto, passa por uma legislação internacional sobre o tema. O Brasil é signatário de algumas convenções da Unesco, como a Convenção de Haia (1954) para a Proteção de Bens Culturais em Caso de Conflito Armado e a Convenção da Unesco de 1970 sobre os meios de proibir e impedir a importação, exportação e transferência ilícitas de propriedade de bens culturais.

Para Christofoletti, o combate ao tráfico de bens culturais passa principalmente pela cooperação internacional, com integração de bases de dados e das forças policiais dos países. Ele sugere que a criação de um pool internacional de organizações de polícia e investigação calcados no compartilhamento de dados poderia contribuir para um menor volume de tráfico e para que países recuperem peças perdidas.

Em 2017, o Conselho da Europa aprovou um novo documento, que tipifica crimes relacionados ao tráfico de bens, entre eles “furto, escavação ilícita, importação e exportação, bem como aquisição ilícita e colocação no mercado”.  Para o professor, o Brasil também deveria assinar esse tratado que, embora criado na Europa, é aberto a países de outros continentes.

Como denunciar:

O Icom recomenda que quem suspeita que algum bem cultural proveniente do Brasil pode ter sido roubado ou exportado ilegalmente denuncie às seguintes organizações: 

Conselho Internacional dos Museus (ICOM)
15, rue Lasson – 75012 Paris – França
Tel.: +33 (0)1 47 34 05 00
E-mail: illicit-traffic@icom.museum

Instituto Nacional do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN)
(Bens Arqueológicos e Bens Culturais Móveis)
Centro Empresarial Brasília 50 – SEPS 702/902,
Bloco C, Torre A – Bairro Asa Sul, Brasília.
CEP 70390-025
Tel.: +55 61 20246000
E-mail: cna@iphan.gov.br / depam@iphan.gov.br

Instituto Brasileiro dos Museus (IBRAM)
(Bens Culturais Móveis Museais)
SBN Q 2, Bloco N, Edifício CNC III, Lote 8,
Brasília/DC, Brazil, 70040-020
Tel.: +55 61 35214035
E-mail: dpmus@museus.gov.br

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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