Aline Bispo/editora Todavia

Em Salvar o Fogo, Itamar Vieira Junior reafirma seu projeto literário e aborda racismo religioso

Itamar Vieira Junior tem um projeto literário consistente e isso fica bem claro com esse novo romance, que mantém muitas das características e temas que fizeram de Torto Arado o grande sucesso que foi. Assim como no seu antecessor, a história é contada da perspectiva de três personagens diferentes, aqui todos da mesma família, que vivem em um povoado rural, conhecido como Tapera do Paraguaçu, às margens do rio Paraguaçu, no interior da Bahia. Estamos, então, no Brasil rural, em meados da segunda metade do século passado. 

O livro é dividido em quatro partes, e, pelo menos nas três primeiras acompanhamos um personagem por vez. Isto é, no começo em A Vingança tupinambá ficamos grudados à voz narrativa de Moisés, o filho mais novo da família e que cresceu sem a mãe, sendo criada pelas irmãs, mais precisamente por Luzia, que é a grande protagonista do livro, a personagem que mais sofre e pratica as ações do enredo. Sabemos mais sobre sua história na segunda parte, intitulada Luzia do Paraguaçu. Já na terceira, intitulada Manaíba, uma irmã distante volta para a aldeia e, na última, nomeada A Alma Selvagem, essas vozes narrativas se sobrepõem.

A escolha de acompanharmos o mundo a partir dos pensamentos e devaneios dos seus personagens é um dos pontos fortes da obra, porque vamos descobrindo os acontecimentos aos poucos, já que as visões vão se complementando. Então, há sempre uma sensação de mistério que acaba pairando por entre a narrativa. Ao mesmo tempo, há momentos em que a rememoração de lembranças pelos personagens se torna muito frequente, e a narrativa demora para avançar, trancando em experiências dos personagens que já apareceram muitas vezes.  

Mais um pouco sobre a trama: Tapera é uma comunidade de agricultores, pescadores e ceramistas de origens afro-indígena que vive ao mando da igreja, dona de um mosteiro construído no século XVII. Órfão de mãe, Moisés encontra companhia, ainda que sem afeto, com Luzia, que é estigmatizada por seus supostos “poderes sobrenaturais”. Ela acaba trabalhando como lavadeira do mosteiro, e educa o menino com rigidez. Ao mesmo tempo, há irmãos seus espalhados por outros locais, e ela ainda alimenta a esperança de reunir a família novamente. O autor lida muito bem com as passagens do tempo, e não sentimos a mão pesar nas escolhas tomadas. 

Aqui a Igreja Católica acaba sendo a grande antagonista, sendo uma sombra que paira e explora essa comunidade. Trata-se de uma óbvia e necessária observação sobre a dominação cultural e religiosa que essa entidade realizou nos povos originários brasileiros e também na população negra durante boa parte da história do Brasil. Tapera acaba sendo um microcosmo de como essa imposição acabou moldando o comportamento e abafando as diferentes visões de mundo desses povos.

Luiza é uma dessas pessoas que veem entidades e tem uma conexão com fogo muito forte, então, ela está ligada com essas questões e sofre desde a infância devido à presença dessa forte catequização que impôs uma visão conservadora dualista de bem e mal no povoado. Logo, ela é passada a ser vista como o “mal” da região, sendo excluída e frequentemente motivo de chacota e violência. 

O tema é oportuno e faz eco na atualidade com diversos casos de intolerância religiosa, principalmente contra religiões de matriz africana. Entretanto, muito da história que o autor constrói para mostrar todas essas questões pode ser sacada muito cedo, uma vez que há alguns clichês, que não são necessariamente ruins e nem tiram toda a graça do livro, mas torna um pouco previsíveis as ações. 

A disputa de terra também aparece, sendo a família toda mantida pelo trabalho na roça por muitas e muitas gerações – e como não há nenhuma garantia de pertencimento, algo que aparece também já com força em Torto Arado. Nesse sentido, há também a questão do campo e cidade, outra dualidade da obra, sendo a cidade vista como esse lugar distante, frio e complicado, e o campo como o local de origem, espiritual. A exemplo de obras como Ponciá Vicêncio, da escritora Conceição Evaristo, que conta a vida de Ponciá Vicêncio e sua família, uma família de camponeses que trabalham nas terras de um fazendeiro, e que no caso faz espécie de denúncia às injustiças do monopólio feudal da terra contra o povo brasileiro.  

Então, estamos falando de traumas do colonialismo, traumas que se impregnam nas famílias rurais, e que continuam se modificando e pautando muito das ações dos personagens. E é só no encontro com as suas origens, uma volta para  a ancestralidade, principalmente na relação com o povo indígena Tupinambá, que também permeia o livro, que Luzia se mantém altiva e corajosa para continuar lutando. 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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