Inaicyra Falcão (Foto: Sidney Rocharte)

Traduzir e transcender: Conheça a multiartista e cantora lírica Inaicyra Falcão, que entoa versos em Iorubá

Um pé sobre o chão, enquanto o outro flutua. Inaicyra Falcão dança, canta e leciona, articulando mundos. Prolonga raízes, pois ampara seu corpo sobre o chão de um terreiro ancestral; Ao mesmo tempo, o suspense sobre o ar, enquanto olha longe. Ela voa. 

Nascida em Salvador, Inaicyra Falcão é cantora lírica, educadora e pesquisadora comprometida com a difusão da cultura africana e afro-brasileira. Desde criança, ouve de sua avó, Maria Bibiana do Espírito Santo, ialorixá conhecida como Mãe Senhora, uma frase que guia seus caminhos até hoje: “Da porteira para fora, da porteira para dentro.” 

A artista incorpora as palavras da matriarca de sua família, tornando-se “o dentro”, “o fora” e a “própria porteira”, simultaneamente, em sua produção artística. Nascida dentro do Ilê Axé Opô Afonjá, Inaicyra trabalha a partir de sua ligação e conhecimento das tradições de matrizes africanas, de forma a transcendê-las, a partir da arte, em elaborações musicais, corporais e acadêmicas. 

A artista considera Okan Awa (nosso coração) – Cânticos Da Tradição Yorubá, seu primeiro disco, lançado em 2000, um presente que ganhou da avó. Nele, Inaicyra musicaliza Orikis – louvações aos Orixás – e inaugura seu percurso como cantora lírica. “Okan Awa faz parte da minha livre docência, porque minha arte não é dissociada da minha vida acadêmica. O meu trabalho todo é integrado. Eu venho da prática, porque minha própria história vai dando elementos para a criação”, conta a artista ao Nonada Jornalismo

Sua principal obra escrita é “Corpo e ancestralidade: uma proposta pluricultural de dança-arte-educação (2021)”, fruto de sua vivência pessoal no terreiro de religião nagô, de saracoteios por países dos continentes africano, europeu e americano, e de sua experiência como docente em universidades. O livro é uma reescrita de sua tese de doutorado em Educação pela USP, defendida em 96.  

Graduada em Dança pela UFBA, Inaicyra nem imaginava que enveredaria para uma trajetória acadêmica até o momento em que é selecionada para uma bolsa de estudos na Nigéria. Quando chega no país, começa a observar que os artistas lá são também doutores. Na época, em pleno anos 80, seu sonho era criar uma companhia de dança, mas ao pisar naquele chão, aprendeu que nem tudo era como imaginava. Ela, um corpo que dança, passou a coreografar um novo caminho para si: ao viver em África, descobriu que gostaria de ser professora. 

“Meus anos na Nigéria foram um aprendizado maravilhoso. Aprendi tudo sobre a vida acadêmica e sobre o lugar do artista na universidade”, conta. Foi também lá que Inaicyra começou a fugir da categoria de “dança afro”, frequentemente associada a seu trabalho. “Eu faço contemporâneo, influenciado pela tradição e mitologia Iorubá.”

Na Universidade de Ibadan cursou seu mestrado em Artes Teatrais, e logo assumiu a posição de coordenadora de curso. No retorno ao Brasil, em 92, a professora foi convidada pela pesquisadora Roseli Fischmann para cantar em um importante congresso. Poderia cantar o que quisesse, mas logo que desligou o telefone, a artista escutou o sopro de intuição em seu ouvido: “Cante o que você conhece.”  

Voz ancestral

Como era comum em momentos importantes da vida de Inaicyra, ela ligou para seu pai, Mestre Didi, para perguntar o que ele achava da filha cantar no evento uma música entoada nos terreiros. Ele disse: “Claro, essa louvação é da sua família.” O gesto da pergunta, de consulta aos mais velhos, é significativo para Inaicyra, porque, apesar de fazer parte da tradição desde a barriga de sua mãe, ela segue consultando e respeitando os limites daquilo que pode ou não atravessar a porteira, ou seja, ir além dos território original do terreiro. A resposta veio também do público na Unicamp, que ao ouvir Inaicyra cantar, já perguntava quando viria o primeiro CD. 

Foto: Sidney Rocharte/divulgação

Aquele dia foi o nascimento, o grande Debut, de Inaicyra enquanto cantora. Seu corpo já conhecia os palcos há muito tempo, mas era como se naquele momento, ‘seus espíritos’ – como costuma dizer – lhe permitissem assumir a própria voz. O primeiro canto, homenageando as mães ancestrais, daria também o tom das produções seguintes da artista, muito conectada às  suas linhagens familiares e religiosas. A partir dali, nasceu essa forma de cantar própria de Inaicyra, que mais tarde, recebe o nome de “etno-lírica”.

O sonho de entoar as vozes de suas ancestrais era compartilhado, e aprendido diariamente, como o pai de Inaicyra, Mestre Didi, um dos mais importantes artistas plásticos da história recente do Brasil. “Desde criança eu sabia que vinha de uma família real”, conta. Mas a confirmação aconteceu quando o Pai foi à Nigéria, em Ketu. “Lá, ele teve a oportunidade de recitar o Oriki da família, que chamava de brasão”, lembram. O Rei, surpreso, apontou a Mestre Didi para onde estava o restante de sua família. 

Traduzir para transcender 

“É importante conhecer a tradição, mas também transcender ela. Eu faço uma arte inspirada na tradição nagô, iorubá, na minha ancestralidade, mas eu não estou aqui para repetir os padrões”, explica Inaicyra. Assim como defendido em sua tese, a pesquisa da artista discorre sobre como a tradição de um povo pode ser reestruturada na contemporaneidade. 

Desde o primeiro disco, Beto Pellegrino trabalha como arranjador e também produtor musical. A frase de Mãe Senhora também faz parte de seu  imaginário. Para Beto, “porteira para dentro, porteira para fora” significa liberdade. “A gente sempre vai respeitar a estética e ritualística, mas é porteira para fora. Inaicyra me permite colocar as camadas musicais que adquiri ao longo da vida, com liberdade para criar dentro de todas as possibilidades”, explica o produtor musical. 

“É uma proposição de traduzir esse patrimônio e também contribuir com a música brasileira. A ideia é que seja um trabalho irrigador”, afirma o músico . No processo de arranjar os Orikis, a dupla percebeu a necessidade de os cantos serem compreensíveis ao público. Para isso, fizeram algumas adaptações técnicas do canto lírico, em relação ao conhecido belcanto de tradição italiana. “Fica entre o popular e o erudito, a despeito de a voz dela ser uma soprano dramática”, explica. Os dois desejavam que o canto lírico fosse cativante, e não que se tornasse aquele som inatingível, que se afasta das pessoas. 

O projeto de musicalizar os Orikis, enaltecendo as qualidades dos Orixás, segue vivo no Projeto Sementes Ancestrais, no qual a artista e o músico estão trabalhando atualmente.  É como se Inaicyra desse corpo, a partir das canções, às imagens que vê desde criança. Seus cantos estão imbuídos das memórias das festas do Ilê, dos trabalhos na roça, dos veraneios na Ilha de Itaparica, e do cotidiano ao lado da avó. 

Sonho como tecnologia 

Espetáculo Brasil Tropical (Foto: Inaicyra Falcão/acervo pessoal)

Dentro e fora de casa, as referências de Inaicyra sempre foram mulheres grandiosas, como a bailarina estadunidense Judith Jamison. “Quando a vi dançando a coreografia Revelations, tornou-se uma meta.” Nas primeiras aulas de canto que fez, a professora disse à Inaicyra que sua voz tinha a mesma qualidade vocal de Jessye Norman. Ela, então, decidiu investir, fazer aula de solfejos semanalmente e logo adquirir seus próprios instrumentos. “Eu sou dessas: mergulho inteira, não faço pelo meio, não”, admite.

A artista também teve seus sonhos fortalecidos dentro de casa. A mãe, Edvaldina Falcão, sempre incentivou os estudos. Enquanto o pai, escritor, educado e Alapini – título do mais alto sacerdócio do culto de egungun -, lhe dava a oportunidade de acompanhar seus longos dias no ateliê. Ela, desde pequena, abria os búzios, separava as miçangas, e auxiliava Mestre Didi na confecção de suas esculturas, objetos rituais, de grande escala. Em sua casa também tocava discos de Vinil da Juju Music, estilo popular na Nigéria. Inaicyra ouvia e dançava improvisando – coisa que sempre gostou e que lhe rendeu destaque na graduação em dança. 

Em seu vasto arquivo de fotos enquanto dançarina, a sensação é a de que seu corpo salta, flutua. Sua história de vida é também uma coleção de voos, já que sempre foi sonhadora. Na Europa, conheceu quase todos os países. Viajou também dançando pelo Oriente Médio. Viveu nos Estados Unidos. Formou-se e estruturou-se em África. Inaicyra não é uma mulher de um só território – geográfico e também de linguagem. Esse modo de ser já se anunciava em sua infância, quando criança ajudava Mãe Senhora, sua avó, nas atividades do terreiro.

Considerado um local de referência na cultura do país, o Ilê Axé Opô Afonjá é visitado por pessoas de todo o mundo.. Nesses encontros, Inaicyra se encantava, desde sempre, por aquilo que os visitantes deixavam quando iam embora: cartões postais. De lá, nutriu o sonho de conhecer cada um desses lugares – da França a Nova Iorque, o que cumpriu, um a um. É como diz a canção Pedido a Osun, da sambista Pâmela Amaro: “O que faço com amor, nenhum santo desconfia.”

Para a Bienal de São Paulo deste ano, a artista está trabalhando em um disco comissionado que homenageia a ancestral de sua família Obá Tossi, Marcelina da Silva. Em Okan Awa, Inaicyra já cantava à capela uma homenagem, mas nesta obra expande aquilo que começou duas décadas atrás. “É uma série de cantigas que falam da saga dessa mulher, e de como ela veio como escrava, depois comprou a alforria, retornou para Costa Africana, e então voltou de novo em uma outra condição de poder”, conta. Marcelina é a responsável por implementar o primeiro culto Nagô-Ketu na Barroquinha, de onde saem as casas da Religião mais antigas de Salvador, como a Casa Branca. Inaicyra é a sexta geração de Obá Tossi.

Educação para o voo 

Desde os anos 90, Inaicyra defende uma proposta pluricultural de dança, arte e educação. Em seu livro, considerado precursor dos estudos criativos das artes do corpo de tradições africanas e afro-brasileiras, ela sistematiza pensamentos afro- diaspóricos e se torna uma das referências para legislações como a 10.639.

Carla Cristina Oliveira de Ávila foi aluna de Inaicyra aos 16 anos, durante a Graduação em Dança na Unicamp. A professora foi também sua orientadora de Mestrado, e uma espécie de raiz da pesquisa que desenvolveria depois. Doutora em Artes pela Universidade de São Paulo, Carla dá continuidade à pesquisa do Corpo e Ancestralidade iniciada por Inaicyra. 

Inaicyra e alunes da Graduação em Dança na Unicamp (Foto: Carla de Ávila/acervo pessoal)

A influência não é apenas bibliográfica e epistemológica, mas também em seu modo de ser. “Quando aluna, eu me encantava por Inaicyra e  por aquele corpo que cantava em sala de aula, cheio de sabedoria. O movimento de Inaicyra, para mim, ocupava toda sala, como nenhuma outra professora ocupava”, relembra do período no início dos anos 90. “Ela trazia um lugar de potência de uma história da dança do Brasil que não tinha sido escrita ainda, que precisava ser despertada”, analisa.

Iná, como chama carinhosamente a professora, lhe ensinou uma postura ética e estética da vida. “As minhas orientandas chamam Inaicyra de avó acadêmica”, conta. Assim como ela, diversos teóricos das Artes Cênicas, como Luciane Silva, Lara Machado, Sayonara Sousa Pereira, Daniela Costa e Kleber Damaso, são influenciados por sua obra. “São pesquisadoras e artistas docentes que estão transformando o cenário no Brasil para um olhar cuidadoso sobre nossas ancestralidades”, analisa Carla.

Para Kleber, professor da  Universidade Federal de Goiás, as aulas de Inaicyra são “aulas-espetáculos”, regadas à comoção e também alegria. “Inaicyra projeta o estudo das danças do Orixás dentro de um contexto amplo, que se aplica nos mais diferentes estudos do movimento e de composição em dança”, avalia o professor. 

Foto: Sidney Rocharte/divulgação

“A gente sai com esses galhos imensos que bebem do Corpo e Ancestralidade, nos aprofundamos como raiz e criamos nossas próprias teorias”, analisa Carla. “Mas, até nisso, Inaicyra é ética, porque ela nunca foi uma Mestra que exigiu que a gente seguisse os passos dela. Ela sempre nos deu autonomia para quem queríamos ser.”

Kleber acredita que a poética de Inaicyra é emancipatória. Desde 92, ele convive com a professora, tendo sido aluno e, atualmente, colaborador em diversos projetos e escritos, como o artigo Um Lugar no Oxê de Xangô (2022). “O que Inaicyra estrutura enquanto metodologia e epistemologia tem a ver com um fortalecimento de um trabalho coletivo e também das individualidades.” 

Porteira para fora

“A presença de Inaicyra incita a realização e a concretização dos feitos”, reflete Kleber. “O que se aproxima do tradicional conceito de Axé, que está ligado a essa força de realização.” Axé, transcendência e liberdade são palavras que pessoas próximas à artista costumam associar ao seu modo de ser. Inaicyra nutre o sagrado, mas sempre o aproxima do mundano, do terreno. “Inaicyra promove pontes, trânsitos, entre contextos, referências estéticas e campos da arte”, descreve Kleber. 

Por ser uma mulher que transita, Inaicyra não é afeita a restrições ou categorias. “Não me venham regras, regradas regidas, renais. Não me venham com seios, cretos, convenientes. Não quero saber de gavetinha. Pode até me colocar, mas eu não fico lá não”, enfatiza. Desde pequena, Inaicyra foi questionadora. Se diziam a ela que algo era de uma forma, ela logo reformulava a frase para dizer “isso pode ser dessa forma”.

Não há um só modo de conhecer a obra da artista. Ao fechar os olhos, seu canto se infiltra no corpo. Ao abri-los, sua dança encanta. Em todos os estados, Inaicyra faz surgir o novo. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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