Foto: Thales Ferreira/prefeitura de São Leopoldo

Ecos da ditadura: a busca de Sônia Haas por uma memória digna para seu irmão, que lutou no Araguaia

Amanda Krohn, especial para o Nonada Jornalismo

Brincadeiras de rua, desenhos animados, amigos na escola, deveres de casa e a doce companhia dos familiares. Estes costumam ser os elementos mais comuns da infância da maioria das crianças. Porém, para muitos dos que viveram no período da Ditadura Militar no Brasil, a doce companhia dos familiares foi substituída pela amarga ausência, marcada pela indagação: “o que aconteceu com ele?”. 

Este foi o caso da publicitária aposentada Sônia Maria Haas, que tinha apenas cinco anos quando o golpe militar aconteceu em março de 1964. Após o desaparecimento de seu irmão João Carlos Haas Sobrinho (conhecido como Doutor Juca), sua vida nunca mais foi a mesma. Por mais de quatro décadas, Sônia ficou sem saber onde seu irmão estava, o que fazia ou o que havia acontecido com ele. Durante esse período, a rotina seguia de forma cautelosa. Enquanto isso, a vida acontecia. 

Nascida em São Leopoldo (RS), Sônia Maria Haas é filha caçula de Ildefonso Haas e Ilma Linck Haas, que tiveram sete filhos: Roberto; João Carlos, Elena Haas Cheemale, Jorge e Ildefonso (gêmeos) e Tânia Maria. Além de João, Roberto e Jorge também já faleceram. 

Estudiosa, ela foi uma criança quieta, caseira e gostava de encontrar seus primos nas visitas ao bairro Lomba Grande, casa dos avós maternos. Aos dez anos, ela vendia xuxu de porta em porta na vizinhança, o que levou-a a aprender a fazer troco, cuidar dos produtos e a se relacionar com os clientes.Apegada aos irmãos, a jovem tinha uma relação especial com João Carlos, do qual tinha uma diferença de 16 anos de idade. “Ele era calmo, ouvia a gente, ajudava a solucionar problemas da minha bicicleta, era atencioso e eu gostava muito disso”, lembra. 

Quando Sônia tinha um ano de idade, João entrou para o curso de Medicina, em Porto Alegre, para onde se mudou.  A partir de então, ele passou a ver a família apenas em visitas dominicais ou férias. “Isto passou a ser um encanto para mim. Ele trazia livrinhos, contava histórias… era sempre alguma surpresa”, recorda. Tânia, que é quatro anos mais velha, também era uma grande confidente de Sônia. “Ela tinha paciência comigo. Estudava piano e até hoje toca muito bem, e eu adorava pedir para ela tocar quando eu estava doente. Ficava na cama do quarto grande do piano, e ela tocava”, lembra. 

Onde está o Dr. Juca?

A infância de Sônia também foi marcada pelo “desaparecimento” de seu irmão. Aos 11 anos, em 1969, ela já não recebia cartas ou qualquer pista de seu paradeiro. Porém, ela sequer desconfiava que estava vivenciando um período ditatorial. “Eu não tinha muita consciência do que estava ocorrendo. Quando João viajou, não sabíamos que ele já estava envolvido com o partido [o PCdoB]”, explica. “Então não se falava nada lá em casa, era tudo muito nebuloso”, continua. 

Com o sumiço de João Carlos, nada mais foi o mesmo. “Se criou um climão: silêncio, saudade, vazio, medo”, relata. “Eu ficava cuidando na escola para não falar nada sobre meu irmão, porque podia ser perigoso”, continua. O conforto da estudante eram os poucos professores que ousavam falar sobre temas considerados arriscados. “Alguns professores tinham mais coragem e falavam sobre cidadania, direitos, socialismo, e estes encantavam a nós todos, eu me sentia um pouco confortada”, conta. “Até percebia que eles sabiam algo de mim, de minha família, do João, mas era algo velado, que não se falava”, acrescenta.

Foto: Sônia Haas/arquivo pessoal

De acordo com Sônia, as cartas de Dr. Juca (quando ainda recebiam), eram curtas e sem endereço, dizendo apenas que estava estudando. “Nessa época ele já estava sendo procurado e não podia se comunicar. Ele nos protegeu, não nos expôs”, revela. No mesmo ano em que as correspondências findaram, os principais jornais da época publicaram uma manchete que dava a entender que ele havia assaltado um banco. 

“Um amiguinho me disse assim: ‘teu irmão saiu no jornal, ele é ladrão’. Eu disse que não e ele falou que o pai dele havia mostrado”, relembra. A notícia foi um marco doloroso. “Eu larguei minha bicicleta e entrei em casa correndo, quando me deparei com a cena de minha mãe, minha tia e minhas irmãs chorando”, diz. “A cabeça de uma criança não entende como pode um irmão médico ir embora e não poder voltar”, desabafa.

Na época da manchete, Elena explicou a Sônia um pouco sobre o que estava acontecendo. “Saímos de carro, um fusca bege, e fomos para a estrada vazia de Sapucaia,  que tinha um aroma forte de eucalipto e um ar de sigilo. Ela disse: ‘lembra que fomos visitar o João em Porto Alegre? Pois é, ele estava preso porque era líder dos estudantes, porque eles liam livros que falavam sobre um mundo melhor e ele queria isso, foi para São Paulo por esse motivo e aquela manchete era mentira’”, lembra. “Naquela época eu não sabia que ele estava envolvido com o partido, não sabia de nada”, continua.

Mesmo em meio a acontecimentos como esse, que não podiam ser comentados, os alunos e professores tinham a obrigação de jurar amor à pátria diariamente. “Com tudo isso eu vivi a música ‘Eu te amo meu Brasil’, na escola, louvando a cada manhã com hinos”, afirma. “Achava estranho aquele ufanismo, mas era obrigatório”, comenta.

“Caminhando, cantando e seguindo a canção”

Na adolescência, Sônia estava sempre rodeada de amigos, estudando, dançando e andando de bicicleta. Além disso, ia bem na escola, mantinha diários e escrevia poemas.  Quando tinha 14 anos, começou a namorar Sílvio Luz, com quem casou-se aos 19 anos, relacionamento que durou até 1991. Aos 18, ela começou a ajudar nas lojas de sapato da família, seu primeiro emprego, onde fazia fichas de crediário, vendia, embalava produtos para presente e arrumava vitrines. Na mesma época, Sônia costumava cuidar de seus três sobrinhos, que hoje são 13. “Não tive filhos”, diz.

Não importava quantos anos passassem, a memória de João continuava viva e influenciava suas escolhas de vida, entre elas, a de cursar jornalismo para ter a oportunidade de escrever e fazer investigações.  Porém, no primeiro semestre, uma outra vocação floresceu. “Senti-me com a veia criativa mais aguçada: redação, artes, cores, fotos, trabalhar em equipe… tudo me encantou. Daí fiquei ligada em Publicidade e Propaganda e amei”, explica. 

Sônia cursou o ensino superior entre os anos de 1977 e 1981, período em que vigorava o Ato Institucional 5, instituído em 1968. O AI-5 é conhecido como o momento mais violento da Ditadura Militar, quando a censura endureceu. Na época, a estudante universitária tentava lutar de forma branda, sem assumir a linha de frente. “Alguns professores alertavam, de um jeito discreto, sobre o cenário. Eu ia depois puxar assunto com eles. Foi muito bom pra mim, pois eu podia falar do João. Um destes professores esteve preso com ele, o Joaquim Felizardo”, acrescenta.  

Com a morte de sua mãe em 2001, a comunicadora decidiu mudar-se para a Bahia um ano depois, onde apoiou um projeto social  na ilha de Itaparica, coordenou um curso de publicidade, foi assessora de um trio elétrico e ainda atuou em uma empresa de economia mista controlada pelo governo estadual.

Desde 2014, ela é professora de um curso de pós-graduação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), como convidada, além de dar assessoria de comunicação a projetos culturais. Em 2014, Sônia atuou na Universidade Católica de Brasília por um ano, onde conheceu seu atual marido, Odilon Camargo, em um bar. Em seguida, trabalhou por dois anos para o Governo do Estado até se aposentar, em 2016.

“Amanhã vai ser outro dia”

A investigação sobre a morte de João é um grande marco na vida de Sônia. “A história de João também desenha a minha história. Ela vai delineando as minhas pegadas, meu caminhar, porque fui indo atrás da história dele e construindo a minha”, comenta.  A comunicadora soube da morte de João Carlos (ocorrida em 1972) apenas em 1979. Com isso, ela e suas irmãs começaram a conversar com pessoas em Porto Alegre que tinham algum conhecimento sobre a sua história. Tânia, que estudava na UFRGS, conversou com um bibliotecário que confirmou a existência da Guerrilha do Araguaia e indicou o livro de Fernando Portela, Guerra de Guerrilhas do Araguaia.

Com a obra, Sônia, na época com 21 anos, conseguiu entender melhor a história de seu irmão, que era comandante da Guerrilha. “Lemos o livro em casa, com o pai e a mãe, cada um chorou pro seu lado e começou a carregar a dor de outro jeito: não tínhamos mais como encontrar com o João vivo, que era nossa esperança”, diz. Ela conta que também recebeu o apoio do pai de Sílvio (marido dela na época). Seu sogro também era comunista e dava orientações para que ela soubesse fazer sua busca.

Foto: Sônia Haas/arquivo pessoal

Para Sônia, a investigação foi um desafio, pois ela e sua família possuíam poucas conexões com pessoas de esquerda. “Na época não tínhamos acesso a muita tecnologia, não tínhamos telefones, não se mandava cartas, então ficávamos sabendo das coisas sempre muito atrasado”, comenta. A solução foi buscar por mais livros e falar com os contatos que obtinha através de sua irmã, Tânia e sua prima, Mariza Haas, que faleceu em 2004 e conhecia outros familiares de desaparecidos políticos.

Entre os contatos de Tânia estavam deputados e vereadores do MDB. Ela e sua prima descobriram ainda um relatório sobre uma caravana de familiares de desaparecidos políticos que buscavam seus entes queridos. Cruzando as informações do livro e do documento, elas começaram a entender melhor o que havia ocorrido.

Além do desaparecimento de seu irmão, Sônia ainda lidou com dois abortos espontâneos. Para superá-los, ela começou a fazer terapia em 1985. Com o tratamento, ela pensou ainda mais em João Carlos e decidiu viajar para a região do Araguaia para investigar mais. A comunicadora viajou acompanhada de sua prima Mariza, e de Sílvio. Na viagem, eles passaram a ter acesso a mais fotos e informações sobre João. A comunicadora ainda contou com o apoio de jornalistas como Laurentino Gomes, então contratado pela Veja, em Brasília, para se aprofundar mais.

Em dezembro de 1995, com a lei Nº 9140, sancionada por Fernando Henrique Cardoso, ela e seus familiares tiveram acesso ao atestado de óbito de João Carlos Haas Sobrinho. Conforme a descrição da lei, ela reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e dá outras providências. Porém, o documento citava a causa da morte como desconhecida. 

Somente em 2019, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos conquistou a retificação nos atestados de óbito. Com isso, os documentos de João e de várias outras vítimas passaram a afirmar que a morte foi causada pela violência do Estado. A Comissão foi extinta em 2022 pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), pouco antes do fim de seu mandato.

Naquele mesmo ano, já aposentada, Sônia passou a se dedicar muito mais ao assunto, produzindo vídeos, participando de lives e indo a eventos. “Já fui diversas vezes à região do Araguaia e participei de expedições”, conta. Segundo a comunicadora, sempre surge alguma informação nova. “É como um quebra-cabeças em que a gente vai juntando as pecinhas”, compara. Atualmente, a história de João Carlos Haas já se tornou uma história em quadrinhos (Dr Araguaia, de Diego Moreira e Gabriel Kolbe), uma estátua em frente à prefeitura de São Leopoldo, nome de rua no bairro Feitoria, da mesma cidade, e continua inspirando diversas outras obras e homenagens. 

Com o governo de Luís Inácio Lula da Silva, a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos está sendo restabelecida e vinculada ao Ministério de Direitos Humanos. Tanto Sônia quanto diversos outros familiares de desaparecidos políticos ainda lutam por informações mais completas a respeito de seus entes, além do direito a um sepultamento digno.

Amanda Krohn

Formada em jornalismo, apaixonada pela leitura e pela escrita, entrou na área para ter a oportunidade de trabalhar com o que ama em nome de um propósito: informar.

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