Pela primeira vez na história desde a redemocratização, o Brasil tem um presidente da República que celebra a ditadura militar no país. Ditadura que deixou pelo menos 434 mortos e desaparecidos, torturou milhares com técnicas como choques e pau de arara, instituiu a censura na imprensa e na arte, levou pessoas ao exílio, cassou políticos, aumentou a desigualdade social e cerceou a liberdade de expressão.
Para nunca esquecermos os horrores da ditadura, editamos e publicamos oito relatos de vítimas que depuseram na Comissão Nacional da Verdade. São depoimentos de estudantes, professores, militares, operários, envolvidos ou não com os grupos da luta armada que se formaram principalmente após o endurecimento do golpe, com o Ato Institucional Nº 5. A íntegra dos depoimentos pode ser conferida nos links ao final de cada relato.
Dirce Machado da Silva, agricultora
Eu sou filha de camponês, meus avós e meus pais eram camponeses, tudo que produzia a metade era do patrão e da outra metade tirava as despesas, e o que sobrava era o que a gente tinha para sobreviver. Eu achava injusto, meu sonho era um pedaço de terra nosso. Em outubro de 1954, me casei com José Ribeiro da Silva, outro sonhador. Em 9 de novembro de 1954, fomos para Formoso e Trombas na região litigiosa de posseiros, era só mato não tinha estrada, não tinha escola, não tinha posto de saúde, não tinha farmácia, só deserto. Eu era militante do Partido Comunista, meu marido também, e pertencíamos ao Comitê Distrital de Séries, e aí fomos designados para ir lá para ajudar essa região.
Aí foi quando veio o golpe de 64, a gente sabia que ia ser caçado. Nós acompanhávamos tudo pelo rádio, meu marido chegou em nossa casa à noite na mata do Formoso e já estava com as malas prontas. Eu tinha um bebê de oito meses e tinha quatro filhos legítimos e quatro adotivos, sendo dois adotivos especiais e um irmão da minha mãe, que também era especial. O Ribeiro concordou de mandarmos o nosso povo para a casa de um tio meu, até minha mãe e meu irmão virem de Brasília para tomar conta. Durante o dia, me embrenhava na mata e à noite ia dormir na tapera. Tinha uma pessoa que levava um prato de comida para mim à noite. [A posição era de] não resistir [ao golpe], nós não tínhamos condições. Quem éramos nós? Íamos resistir com garrucha? No desenrolar, resolvemos ficar em nossa posse em um lugar de difícil acesso, mas mais perto dos meus filhos e mais fácil de ajudar a minha mãe a orientar a lavoura.
Em abril [de 1966], no começo do mês, fomos surpreendidos pela polícia no nosso esconderijo. O Ribeiro estava muito mal, com desidratação, deram chutes, socos, palavrão, levamos um bom tempo caminhando no mato até chegar em nosso rancho. Lá estava tudo revirado, os policiais nos roubaram uma nota promissória de 500 mil cruzeiros. Nos enfiaram na viatura com pontapés, empurrão e todo tipo de palavrão, duas léguas depois pararam os carros em um encontro de estradas. Aí começa a sessão de horror. Um grupo ficou a uma pequena distância me obrigando a olhar eles espancando o César e o Ribeiro. Eu virava o rosto e eles puxavam os meus cabelos e me obrigavam a olhar, me perguntavam pelo José Porfírio, Mário Borges e outros, eu dizia que não sabia. E eles diziam que eu era amante deles e que preferia ver meu marido e irmão morrerem e não entregar meus amantes.
Colocavam toco de cigarro nas mãos deles até fazer bolha, beliscavam o corpo deles com pontas de faca, eles ficaram todos feridos. Os rostos ficaram só hematomas. Quebraram o nariz do Ribeiro com soco, arrastaram pelos pés e penduraram em uma árvore de cabeça para baixo, o sangue pelo nariz escorrendo. Se eu não falasse o que eles queriam ouvir, eles iriam matar o Ribeiro enforcado. Aquilo me deu um desespero tão grande, mas não implorei nem chorei, deu vontade de me matar, mas como? Parti para a ignorância, dei uma gargalhada e o policial gritou: “Essa puta safada prefere ver o marido morto do que falar.” E eu disse: “Eu não sei e se soubesse também não falaria”, e dei um tapa na cara dele com toda força que eu tinha, ele cambaleou e depois me deu um telefone, fiquei com esse ouvido inutilizado.
Eu desmaiei, quando acordei estava molhada de pinga e vomitando. Lavaram o rosto do Ribeiro com pinga, isso andando a noite toda, o dia quase todo sem comer e sem beber. Já era mais de meio dia quando chegamos em Formoso na pensão da velha Afonsa, onde foi transformada em cadeia e já estava preso o Nelson Marinho, Onezimo Montezuma e Aniceto Policarpo, esses eram todos companheiros da associação e do partido.
Estavam todos deformados com as torturas, na casa do Nelson. Pegaram Nelson, queriam que ele contasse onde estavam os líderes e as armas. Amarraram o Nelson nu em uma árvore longe de casa em cima de um formigueiro, tinham espancado muito ele, cortaram o couro cabeludo e o fizeram engolir com a urina dos policiais. Juntaram-se a nós um estudante e um jornalista, todos machucados. (Íntegra.)
Izabel Fávero, professora
Meu sogro tinha ali uma pequena fazenda, e vimos que ali era um lugar estratégico, onde inicialmente a gente contaria com o apoio deles e em seguida a VAR viria suprir as nossas necessidades pra que a gente pudesse fazer o trabalho político. Nessa noite, lá em casa, eles prenderam também meu sogro e minha sogra, já idosos, e meu sogro ficou algemado a uma árvore, minha sogra ficou na sala, também algemada, e aí… [pausa, voz embargada].
Não tinha luz na fazenda, não tinha nem na casa, então eles acenderam um monte de candeeiros, velas, e uma das coisas que eles diziam, eles ameaçavam inclusive incendiar a casa com a gente lá dentro. Nós fomos, já em casa, torturados, um em frente ao outro, eles tinham uma máquina de choque, que eles chamavam de “maricota”, aí batiam na gente com toalhas molhadas, tinha um alicate, beliscavam a gente no corpo, e meu marido, eles levaram, jogaram ele no córrego que tinha ao lado de casa, deram choques elétricos, dentro do córrego, ele ficou com traumas o resto da vida, ele teve problemas urinários, ele teve que tratar a vida toda.
E aí, no dia seguinte, nós fomos embarcados, eu numa ambulância, meu marido num caminhão do Exército, e eles deixaram entender que iam nos levar para Curitiba, a gente saiu e ninguém sabia o nosso destino. Mas eles trouxeram a gente para o Batalhão de Fronteira. O prazer deles era torturar um frente ao outro e dizer “olhe, sua vadia, ó ele está apanhando por culpa sua que você não quer colaborar”, entendeu? Ou o contrário, entende? Era um jogo de tortura psicológica, física, pra desestruturar mesmo, desestabilizar a gente. Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um carma, a gente, além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era “puta”, “menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta”, enfim, eu não me lembro bem se no terceiro, quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja.
E o meu marido dizia, “por favor, não façam nada com ela, podem, podem me torturar, mas ela tá grávida”, e eles riam, debochavam, “isso é história, ela é suja, mas não tem nada a ver”, enfim. Em nenhum momento isso foi algum tipo de preocupação, em relação [pausa, voz embargada]. Eu certamente abortei por conta dos choques que eu tive nos primeiros dias, nos órgãos genitais, nos seios, ponta dos dedos, atrás das orelhas, aquilo provocou obviamente um desequilíbrio, eu lembro que eu tinha, muita, muita, muita dor no pescoço, porque quando a gente, quem sofreu choque, sabe? A gente joga a cabeça pra trás, aí tinha um momento que eu não sabia mais aonde doía, o que, doía em todo lado, mas enfim. Certamente foi isso. (Íntegra.)
Adir Figueira, militar
Eu fui entregar um sobrevoo, que era um documento altamente sigiloso que era chegado do presidente da República. Então, ao entrar na sala esbarrei no homem fardado e ele considerou aquilo como agressão, ou talvez uma tentativa contra a vida dele, creio eu que ele na hora quis dar prisão. E eu tentava falar com ele, entendeu, que eu estava com aquele documento importante pra entregar e ele: “Calado”, e eu tentava e ele: “Calado” Você vai entender, um ministro ali é um deus, um brigadeiro é um deus, tanto que você imagina… Ele, abaixo do presidente, ele é o comandante-geral da Força Aérea, e eu esbarrei nele fardado e ainda bati nas medalhas do homem. Aquilo pra ele foi uma ofensa, porque sangue azul, soldado pra ele era ralé.
Fiquei preso lá na prisão da base aérea do Galeão. Tinha bastante gente, porque quando o João Batista Figueiredo assinou anistia, saiu mais de cem presos dali. O tipo de tortura ali era aquele cassetete, borracha curtinho na sola dos pés, nas costas, na cabeça, era esse tipo de tortura nesse período até aí, que eu acho que eles entendiam que eu tentei agredir o ministro, até aí não tinha essas queimaduras de cigarro. […]
Meu pai era de esquerda, que ele tinha postado leitura de Karl Marx. Foi militar, foi sargento, foi sargento mais antigo de todas as bases do Brasil. A maioria das prisões dele se sucedeu logo no golpe, em 64, quando Castelo Branco assumiu. Apesar de ser pequeno, como ele desaparecia e todos nossos oitos irmãos passando necessidade, passando fome, aí ele volvia em casa, aí novamente ia preso, aí minha mãe ia até lá no quartel, entendeu? (Íntegra.)
Raul Ellwanger, músico
Espero que essa minha fala sirva para mostrar como a tirania empurrou jovens ao ativismo clandestino. Como a violência estatal organizada e difusão pública serviram para amedrontar o nosso país. A tirania teve várias caras, policial, judiciária, TFR, universitária, jornalística, moral, cultural, diplomática, profissional, de censura, teve sequelas familiares no plano físico e no plano psicológico, sequelas patrimoniais, profissionais, culturais e artísticas.
Começou uma perseguição a mim por cantar músicas de protestos, eu fui finalista em festivais locais e nacionais bem importantes, a minha primeira música gravada em 1968, ela tem um verso assim: “desde então sigo tropeando pelos pampas do meu pago, pelo amigo dou um braço, pra mulher um doce abraço, pros milicos trago estrago, pro inimigo outro balaço”. A perseguição seguiu por ações e direitos trabalhistas, porque eu trabalhava no escritório da família Araújo. Então, havia perseguição porque eu participava da UNE, na PUC, participava da política, no diretório acadêmico do direito. Surgiram os telefonemas, os seguimentos, os fotografamentos, chegou uma mensagem final entre aspas: “para calar-se e abster-se”. A perseguição por cantar, por advogar, por reivindicar, me obriga a atuar clandestinamente, eu participo dos grupos secretos: “Grupo do Carlos” e “VAR-Palmares”.
A vigilância sobre a família, apartamento alugado em frente à casa de minha família com as câmeras funcionando dia e noite. Visitas forçadas de Pedro Seelig e Atila Rohrsetzer à noite na casa da família, propostas de negociação, boatos, chantagens, ameaças, invasão de domicílio de minha família pelos mesmos repressores só com os meus irmãos menores presentes. Abordagem da minha irmã menor na rua por desconhecidos com ameaças, sequestros massivos de companheiros no Rio Grande do Sul e em São Paulo, cercos policiais em São Paulo por desconhecidos dos quais felizmente escapei, condenação em São Paulo sem nem saber, nem conhecer um tal de um processo pela lei de segurança nacional em 1971.
A erosão é brutal nas duas clandestinidades que eu vivi. O vazio do exílio, a quebra e a perda das relações pessoais e afetivas. Na volta do exílio, houve a tentativa de prisão ilegal no aeroporto pelo senhor Seelig. A minha apresentação foi negociada através de advogados para passar lá na segunda-feira, eu fiquei preso ilegalmente durante dez dias. Eu era mantido em vigilância durante a noite para ouvir os sons dos presos comuns que eram torturados na madrugada, porque não podiam fazê-lo de dia quando havia imprensa. (Íntegra.)
Robeni Baptista da Costa, estudante
69, eu fui presa na sala de aula. Eu estava fazendo uma prova de…não me lembro do nome da matéria, mas o professor chamado Espina. Eu estava fazendo, estava lá no meio da turma, de repente eu vi dois homens na sala, chamaram o professor e tal…terminei a prova e fiquei enrolando, enrolando…um colega saiu, chamado Milton. Milton saiu e me mostrou também para os homens, para os dois homens. “Estou presa!”. Chega uma hora não tinha mais ninguém, eu tinha que sair. Conversei com o professor: “Professor, eu vou ser presa, por favor, conte para alguém”. “Mas eu nem sei se você é minha aluna! Eu nem sei se você é minha aluna”. Aí, os homens lá, eu saí…algemada na hora.
Aí fui para a OBAN, a OBAN que tinha recentemente sido estruturada, não é? O que que eles queriam? Por que eles estavam me prendendo? Porque eles estavam prendendo o pessoal que tinha sequestrado o embaixador americano lá no Rio de Janeiro, e eles queriam um cidadão chamado Paulo de Tarso Venceslau. Que eu conhecia de vista. Aí, em um final de noite já no começo de novembro, eu ouvi um tiroteio tão imenso no pátio da OBAN, pátio interno, um tiroteio enorme, enorme. No dia seguinte de manhã, os caras atiraram para cima tudo o que eles tinham, para cima, para o ar. E aí, eles se abraçavam, gritavam…ih, aconteceu alguma coisa. No dia seguinte de manhã os caras chegaram batendo na porta: “Pode pegar, pega tudo o que cada um tem, pode ir embora, estão liberados.” Sem processo, sem nada, nada, nada. Saí na banca, vi na banca, era Marighella…ele foi morto no dia 4, eu saí no dia 5 de novembro.
Com a ALN, e eu ajudava em casa, o que que eu fazia? Eu fazia traduções, eu fazia revisão de jornaizinhos, eu fazia esse tipo de coisa, ajudava em casa e distribuía folhetos, porque continuava na universidade. Nisso, em fevereiro de 71 eu fui presa de novo, e aí eu fui presa e a coisa veio…o tal do repique. De madrugada os caras chegaram me arrebentando, procurando armas. Não tínhamos armas porque nós não éramos do chamado grupo tático armado. Mas mesmo assim eu fui torturada, não no pau de arara, porque tem muita gente que fala que foi para o pau de arara. Eu vi um cara no pau de arara, que foi o Alcides Mamizuka, o meu companheiro.
Mas eu não fui, eu fui para a cadeira do dragão, em que os caras jogaram água e me deram um choque na vagina, no seio, o pior foi na orelha, porque a impressão que dá é que jogaram o cérebro da gente no liquidificador, sabe? É uma coisa assim…esse foi o pior! Esse foi o pior! Eu fiquei três meses na OBAN. E prestes a ser mandada para o DOPS, os caras me chamaram para dar um depoimento final, aí havia uma carta de [trecho incompreensível] eu teria escrito uma carta, tinha uma carta datilografa para eu assinar. Nessa carta, eu assumia que tinha matado aquele soldado no Vale do Ribeira, que estava muito fresca a questão da VPR no Vale do Ribeira. Foi na virada de 70 para 71. Onde eu assumia…na carta, eu assumia que havia matado o cara, que eu que tinha disparado, e eu disse: “Eu não posso ter disparado, eu não estava lá, eu não vou assinar”. “Não, assina! Assina! Assina!” Aí o cara começou a me dar choque de novo. (Íntegra.)
Marcos Penna de Arruda, operário
Fui preso na rua lá em São Paulo quando eu era operário eu vim encontrar essa Marlene, que estava saindo de uma organização para entrar na AP e trabalhar em fábrica e eu tinha que ajudar ela a encontrar uma casa. Ela já tinha sido presa quatro dias antes e ela não aguentou a tortura e levou a polícia para esse encontro e eu fui preso. Isso foi em 70. Antes de qualquer pergunta tira a roupa, primeiro sobe a escada e depois chega lá na salinha onde tem um cavalete, ferro e tudo. Tiram a roupa me penduram e quando eu já estou lá começam a dar choques e aí que começam as perguntas, foi só aí que começaram a perguntar. Então a tortura era a premissa, era a priori. Isso no tempo do Médici, isso é importante enfatizar.
Então eu fiquei lá levando choque e sendo perguntado durante horas. Eles colocaram música altíssima, eu fiquei com trauma de barulho por causa da música. Barulho, música, ferro caindo tudo que era extremo eles faziam para quebrar a resistência não é? E a musica que eles tocavam mais durante as horas de tortura, a ironia mais completa era o Roberto Carlos cantando “Jesus Cristo, eu estou aqui”. E para que essa musica altíssima? Para os vizinhos porque eu estava lá pendurado no pau de arara e via do outro lado da janela um edifício que fica ao lado da PE. E depois de algumas horas eles passavam a água para ficar com mais condutividade o corpo e depois eles tiraram o fio do testículo e colocavam na boca, no nariz, no ouvido para criar um (ininteligível 0:36:09.3) ainda maior de corrente elétrica até o dedo do pé.
Em suma foi uma coisa tão brutal que quando chegou a época de eu estar morrendo eu comecei sentindo aquele suor frio cobrindo o meu corpo. E eles batiam e eu não reagia, eles davam choques o meu corpo se dobrava todo e caia de novo, não sai mais som nenhum. E essa é a hora que a gente deseja que a morte chegue, pois ela é uma libertação para acabar o inferno. Então eles acabaram em baixando, tiraram as amarras e tal e tentaram me reanimar. “Esse filho da puta recebeu meio dia de tortura e já está arrebentado? Que história é essa?” Aí um deles em um acesso de ódio pegou a pistola, armou e botou dentro da minha boca. “Acorda filho da puta”. E no meio da noite eu acordei e estava urinado lá no mesmo lugar e os torturadores dormindo na sala ao lado.
E depois de acareado passei aquela noite infernal, tive convulsão e de noite me botaram em uma cela lá embaixo onde eu fiquei conversando com um cabo que estava na porta da cela, eu me lembro bem dessa conversa. O cara dizendo: “pô, mas você como é que pode um cara desse trabalhando para o terrorismo”. E eu dizia: “que terrorismo rapaz? Terrorismo é como vive o nosso povo com um salário miserável em um país rico desse. Isso não pode ser e é para isso que eu luto, para acabar com essa Ditadura e que vocês representam. E você está a serviço dela sabia? Ela é a elite mais rica do país e que está aí para assegurar os seus privilégios”. Então me levaram para o hospital e eu fiquei um tempo grande, não voltei mais nem a encontrar a Marlene e nem nada. (Íntegra.)
Lúcia do Amaral Lopes, universitária
É ridículo, mas eu estou chorando mais por causa da lei do silêncio, sabe? A coisa que você não sabe nunca, não é que tem nenhum drama para contar, não vou contar nada dramático, mas é um silêncio que se instala que é uma coisa… Daí toda a vez que você vai falar sobre o assunto, vem esse tipo de emoção, não controlada. E engraçado isso, mas no fundo você se sente e daí você diz assim: “Não, eu não tenho o que falar, porque não me aconteceu nada.” Eu achava que eu era assim normal, eu só percebi que tinha alguma coisa errada uns 20 anos depois.
Quando eu voltei para o Brasil do exílio, militava o movimento feminista, no movimento feminista tinham muitas mulheres que foram presas, torturadas, não tinham sido exiladas, ficaram aqui. Nós nunca falávamos sobre esse assunto. Nunca, a gente militava junto pela causa da mulher, e ninguém falava sobre esse período. Muito esquisito isso. Sem perceber, entendeu, essa lei do silêncio é horrorosa. Mas então dá a impressão assim, que é como se não quisesse saber direito o que aconteceu, porque é muito dolorido.
Eu entrei na faculdade, em 68 e eu participei ativamente das atividades que tinham lá, das manifestações e tudo. Daí eu fui presa no Congresso da UNE. Eu tinha um namorado que era com quem depois eu me casei, se chama José Eli da Veiga, ele era presidente do grêmio da Filosofia da USP. Ele também era da Ala Vermelha do PC do B, mas na parte estudantil. E daí em 69 começou a repressão mais pesada, que teve o Ato 5. Eles entravam nas faculdades, tiravam os alunos de dentro da classe de aula. Muita gente começou a ser presa, já estavam tendo algumas ações armadas. E parece que estão nos procurando porque uma pessoa que falou na tortura, tinham nos visto lá naquela região e daí nós fugimos.
Passamos vários dias sem ter onde ficar porque todo mundo que a gente procurava estava com problema do mesmo tipo. E teve uma noite em particular que caiu tanta gente, acho que foi uma noite que um japonês explodiu em um carro, uma bomba explodiu em um carro, aquela noite caiu muita gente, a gente quase que… Foi muito difícil arrumar onde ficar. Até que um casal de professores lá da faculdade nos acolheu, arrumou um lugar para a gente ficar. [Ficamos] morando lá, escondidos, sem sair de casa. Daí eu já sabia que a minha irmã estava presa e todos os dirigentes da Ala estavam quase todos presos. (Íntegra.)
Leslie Denise Beloque, universitária
Eu já tinha me decidido a vir para USP e continuar a estudar, mas o meu pai disse: “Não.” E um dia eu cheguei para ele e falei: pai eu vou. Aí ele falou: “Se você for, você nunca mais põe o pé em casa.” Prestei vestibular na USP, entrei, mas eu fui para o CRUSP morar lá como clandestina porque não tinha dinheiro, nem uma condição de pagar o que quer que seja aqui, e fui. Isso era o final de 67, 68. participei de tudo aquilo que aconteceu seja no Movimento Estudantil, seja naquela coisa cultural, tudo, foi impressionante, como uma maravilha e a felicidade de ter vivido aquele momento. Até que ao final do ano quando o AI-5 é decretado em dezembro, o Exército cerca a USP e, sobretudo o CRUSP, mas Exército é uma coisa impressionante.
O Exército, os soldados vestidos, tanques, parecia uma operação de guerra, e lá dentro você só tinha estudantes. Acordamos de madrugada, eles já começaram a cercar a USP. Me lembro bem, descemos cinco lances de escada já a base de cassetete e chute para os que estavam acordados, e dormindo foi assim que foram acordados, e com a roupa do corpo a gente foi tirado de lá. E depois ficamos ali entre quase 11h, meio-dia sei lá, e encostou camburões e fomos levados para Tiradentes. Aí fomos fichados e a maior parte soltos, eu saí. […]
[…] Nessa época você não se deixava prender. Não havia essa chance, porque já era muito feroz a prisão. E quando então eu soube que eu estava sendo procurada e começaram a ir aonde eu ia, foram na minha casa no interior, aí eu tive que ir para clandestinidade também, porque não se cogitava a hipótese de eu me apresentar. Aí eu fui, mas a essa época eu já meu irmão, minha cunhada já haviam passado para a ALN, e por fim acabei indo também para ALN, porque o suporte que eu tinha era meu irmão. Fiquei 69 inteirinho vivendo na clandestinidade, cuidando dessa frente de massa, particularmente o Movimento Estudantil.
Até que em janeiro de 70 eu fui presa, porque um dos grupos que eu cuidava tinha contato, eles caíram e a partir dele eu caio. Foi logo de manhã, isso foi umas 09h, e você já vai apanhando dentro… Na época as famosas Veraneios, e você já vai apanhando desde o carro. Uma série de circunstâncias surgem e eu me pergunto: Como é essa experiência da tortura? Quem resiste à tortura? Se resiste, até que ponto resiste? Eu estava nessa frente de Movimento Estudantil. Então isso não era prioridade para eles, ainda já que eles estavam interessados mais nas ações armadas, já começou desde logo: “Vamos para casa do seu irmão, onde?” Não sei, não sei. Eu passei o dia inteirinho apanhando para que desse o endereço dele.
Me dava um alívio enorme dizer a todos eles: “Pode me bater, pode, até matar ou quer que seja, mas não vou dar porque não sei.” Então isso me tranquilizava enormemente, por várias vezes desmaiei no pau [de arara], e eu acho que eles foram se convencendo. Ficamos um tempo no DOI-Codi, mas começou uma briga entre o DOPS e a OBAN para devolver, porque eles que tinham prendido nós duas [ela e a cunhada], depois de um certo tempo fomos devolvidas para o DOPS, continuou mais um pau pelo DOPS, e é nessa volta que conheci a Dilma. Fiquei presa com ela na cela, até sermos levadas para Tiradentes. E na Tiradentes eu fiquei quase três anos, eu fui presa em janeiro de 70 e saí ao final de 72. (Íntegra.)