Marighella relembra a ditadura com o didatismo que o Brasil precisa

Thaís Seganfredo

Por qual Brasil vale a pena lutar? Já nos primeiros minutos de projeção, em uma cena de tirar o fôlego, Marighella anuncia o que move os personagens que acompanharemos nas 2h30 de duração. Vale a pena lutar pelo Brasil da Justiça social, da igualdade de direitos, da distribuição de riqueza, de Antonio Conselheiro, Zumbi dos Palmares e Lampião e de todos aqueles que estiveram na linha de frente na disputa pelo fim da ditadura militar.

Mais do que uma biografia ou uma obra que já nasceu política, porém, o aguardado longa-metragem de estreia do diretor Wagner Moura é um excelente filme de ação, sem nunca banalizar a violência ou diminuir o peso dos fatos reconstruídos. O roteiro escrito por Moura em parceria com Filipe Braga foi baseado no livro Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo, para o qual o jornalista Mário Magalhães entrevistou em torno de 250 pessoas e consultou mais de 600 documentos.

Após uma breve contextualização que resgata o início da ditadura, a maior parte do longa reconta os breves anos de Carlos Marighella à frente da Ação Libertadora Nacional (ALN), desde o momento em que ele decide aderir à luta armada em 1967 até sua morte, amplamente documentada por vídeos e fotos e reconstituída pelo trabalho investigativo de Magalhães. Em tempos de fake news e “narrativas”, é louvável que o longa tenha como principal referência um trabalho jornalístico de profundidade.

Humberto Carrão como Humberto em Marighella (Foto: divulgação)
Humberto Carrão como Humberto em Marighella (Foto: divulgação)

Para tecer a trajetória do biografado e de seus companheiros, Moura escolheu dispor em sequência episódios marcantes da esfera política e pessoal do guerrilheiro, neto de escravizados sudaneses. O resultado é um filme que humaniza a figura do biografado, de modo que o propósito de jogar luz na biografia do militante, com suas virtudes e seus defeitos, encontra respaldo na atuação segura e carismática de Seu Jorge, que encarou o trabalho com organicidade.

Em entrevista ao programa Roda Viva, Moura fez questão de dizer diversas vezes que não canonizou Marighella, uma preocupação que ressoa em parte da crítica. O Carlos de Seu Jorge tem defeitos como qualquer ser humano, mas é inegável – e o próprio realizador não esconde isso – que o filme vê como heróis os jovens e as lideranças à frente da resistência contra a ditadura. Nesse sentido, Marighella cresce em grandeza ao tentar trazer de volta a memória dos horrores da ditadura militar e os motivos pelos quais não podemos deixar que psicopatas relativizem esse período da nossa história. O longa alcança esse feito ao tratar com seriedade as cenas de tortura e também ao abordar a censura que ocorria frequentemente com professores e jornalistas.

Embora a história, por óbvio, seja centrada na figura do líder da ALN, é no núcleo duro da organização que está de fato o coração do longa: a luta por um ideal de Brasil. E nesse sentido, o filme é permeado por frases como “vocês mataram um brasileiro”, reforçando um sentimento de disputa por um imaginário de Brasil que ecoa nos dias atuais. Esse conceito aparece com mais intensidade depois do filme, em uma cena pós-créditos protagonizada por atores como Humberto Carrão, Bella Camero e Luiz Carlos Vasconcelos. Filmado a partir de um momento de preparação do elenco, trata-se de uma cena catártica de muita verdade, comoção e entrega da equipe.

Bruno Gagliasso no papel de Sergio Fleury (Foto: divulgação)
Bruno Gagliasso no papel de Sergio Fleury (Foto: divulgação)

Em meio a esse elenco em parte Global, Bruno Gagliasso se destaca como vilão, no papel de um delegado do Dops inspirado em Sergio Fleury. A crueldade do personagem é tanta que por vezes pode soar acima do tom, e, nesse sentido, o aparentemente proposital expressionismo do ator foi uma escolha política acertada, embora Moura tenha dito em entrevistas que não quis fazer um personagem plano. Em Marighella, não há brechas para que monstros torturadores possam ser vistos como mitos, e Gagliasso encara o trabalho com inteligência.

Mesmo brilho não teve Adriana Esteves no papel de Clara, militante comunista e companheira de Marighella, o que se deve muito menos à sua atuação do que ao roteiro pouco atento ao protagonismo feminista. Acontece que não há uma fala no filme todo em que as mulheres apareçam com autonomia, sem que suas existências sejam justificadas por alguma ligação com os homens da história. Sim, há mulheres na linha de frente da ALN, mas a presença delas é mais marcada por atos do que por palavras. As decisões e diálogos mais aprofundados ficaram por conta dos homens do filme, uma escolha que, mesmo que justificável sob o ponto de vista histórico, não soa verossímil. 

Assim como seu protagonista, o filme não é perfeito, mas ainda assim – ou justamente por isso – nos faz querer continuar acompanhando Moura na direção de outros projetos. Marighella já entrou para a história do cinema brasileiro como um dos filmes mais importantes que já lançamos. Ainda que o filme tenha feito escolhas estéticas – que vão na direção do cinema de ação – e éticas, ao pôr em primeiro plano a negritude de Marighella o ideal revolucionário da ALN, é significativo que o longa seja lançado nesse momento político que o Brasil vive – após ser censurado pelo próprio governo. Para além de uma consistente e questionadora obra de arte, Marighella já tem seu lugar na história ao documentar nossa história. Para que não se esqueça.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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