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Nova biografia de Lupicínio relembra como sua obra foi relevante na formação da Música Popular Brasileira

Paola De Bettio*

Em uma tarde de sexta-feira, o músico, escritor e jornalista Arthur de Faria dedicou algumas horas para conversar com a repórter sobre Lupicínio Rodrigues, enquanto tomava um café e comia um quindim no Viena Café, no bairro Bom Fim, em Porto Alegre. No meio do ano passado, Arthur finalizou sua tese de doutorado em Literatura Brasileira sobre o Lupicínio e somou esta pesquisa à sua série de livros, todos lançados pela Editora Arquipélago em intervalos.

O primeiro foi Elis: uma biografia musical, de 2016. A cantora foi o ponto de partida para começar a pesquisar e escrever sobre história da música. Em 2022, ele lançou Porto Alegre: uma biografia musical, volume 1, na qual relata a história da música popular de Porto Alegre até a Era do Rádio. E agora, em 2023, ele lança Lupicínio: uma biografia musical. 

Para Arthur, o sambista porto-alegrense, que nasceu e morou na Ilhota – hoje região do bairro Menino Deus –, é um fenômeno musical. O pesquisador reflete sobre o desconhecimento da história da música de Porto Alegre e do estado, e sobre o apagamento do protagonismo negro na cena musical daqui. “Ele ficou esquecido no final da vida. Se pensar, o auge do Lupicínio – ao contrário dos seus colegas de geração – chegou mais tarde. O auge dele foi nos anos 1950, quando se tornou muito popular”, conta.

Na obra, o escritor aponta que a “redescoberta” de Lupi ocorreu quando João Gilberto gravou uma composição sua para um especial de TV que nunca foi ao ar. “E aí o Caetano grava, o Gil grava. Mas isso é entre 1972 e 1974. E ele morre em 1974”. Arthur comenta ainda sobre a genialidade nas composições de Lupicínio. “O que é brilhante nas letras é o quão coloquial elas são. Essa coisa do ‘português errado’, ele usava muito e de forma inteligente, para ser o português da fala, e que é uma construção modernista. Essa é uma das tantas broncas que a gente tem, que é de colocar o Modernismo Paulista de 1922 como Centro da Revolução, como se tivessem inventado tudo”.

O Lupicínio tem isso de ser um gênio, mas ter tido uma instrução muito inferior ao que Caetano, Chico, etc., tiveram. Como tu explica esse fenômeno? Um homem no sul global, negro, e com pouca instrução se tornar um dos maiores músicos de um país continental, na primeira metade do século passado?

Arthur – É impressionante, porque, na geração dele – Lupi é de 1914 -, ele conseguiu uma coisa que nenhum outro compositor, dos importantes, conseguiu, que é entrar para o primeiro time de compositores de música brasileira sem ir para o Rio de Janeiro. Todos os que estão nesse time – os nascidos na primeira metade do século 20, incluindo Caetano, Gil, Milton – foram morar no Rio de Janeiro. Ou nasceram no Rio, ou foram morar no Rio. O Ary Barroso era mineiro, o Ataulfo Alves era mineiro, e o Lupicínio não saiu daqui.

Em algum momento, quando ele estava popularíssimo, nos anos 1950, Porto Alegre era chamada a capital do samba-canção, porque os caras vinham pegar música com ele aqui em Porto Alegre. E com toda a improbabilidade disso, de não ser um malandro. O Lupicínio sempre foi funcionário, sempre trabalhou, sempre teve carteira assinada. Então, ele não se enquadrava nesse estereótipo do sambista preto e malandro, e ao mesmo tempo não era um sambista branco, de classe média. Ou seja, ele nem era da turma do Ary Barroso, do Noel Rosa, que eram os brancos de classe média universitária, nem era um “malandro do morro”. Ele era uma outra coisa, um fenômeno mesmo. 

E a outra coisa interessante é como a gente ocultou – e todo mundo tem um pouco de culpa, todo mundo que escreveu e pensou sobre isso – o protagonismo negro da música de Porto Alegre antes da década de 70. A partir do final da década de 60, são os universitários, predominantemente brancos, quando começam os festivais aqui. 

Até então, os caras importantes quase todos são pretos. É o Lupicínio, e da turma dele o Rubem Santos, o Johnson. Antes dele, o Otávio Dutra, que era o grande cara dos primeiros 30 anos da música de Porto Alegre. No século 19, os dois caras importantes que aparecem são pretos, e as cantoras, todas pretas. Os protagonistas da música daqui de Porto Alegre, na sua imensa maioria, eram negros. E Porto Alegre com essa fantasia da branquitude, inclusive nisso.

É muito, muito doido, porque nem eu me dei conta disso. Eu escrevi o primeiro volume (Porto Alegre, uma biografia musical – vol. 1), e aí o Vítor Ramil, que sempre foi um interlocutor muito importante para mim, me chamou atenção para isso. Ele disse: “tchê, tu te deu conta que o protagonismo do teu livro é de gente preta?”. Eu tinha escrito o livro, estavam todas as histórias ali, e eu não tinha me dado conta. Esse é o tamanho da coisa do racismo estrutural, que às vezes a gente acha que é exagero, mas é uma coisa absurda. 

Agora, o Lupicínio também tem uma coisa que é fora da curva do meio que ele vivia, que era ali na Ilhota. Ainda que tenha feito só o Ginásio, sempre estudou nos melhores colégios, porque o pai dele fazia questão disso. E tanto ele, quanto o pai dele, eram protegidos por um cara, que era o André da Rocha, que é o patrono da faculdade de Direito da UFRGS. Foi quem conseguiu um emprego para o Lupicínio, de bedel, que era meio porteiro, meio inspetor, da faculdade de Direito. Foi o primeiro emprego dele de carteira assinada. Alguns dizem que era avô do Lupicínio, mas isso é um negócio que a gente nunca conseguiu provar… essa história está no livro.

A capa da biografia musical sobre Lupi, lançada recentemente pela Arquipélago. (Imagem: Reprodução Arquipélago)

Tu acredita que o Rio Grande do Sul não valoriza a obra de Lupicínio como deveria?

Arthur – Na verdade, eu acho que agora sim. Mas ele ficou esquecido no final da vida. Se pensar, o auge do Lupicínio – ao contrário dos seus colegas de geração, que foram nos anos 1930 – chegou mais tarde. O auge dele foi nos anos 1950, quando se tornou muito popular. Talvez um dos dois ou três compositores mais populares do Brasil, rivalizando na época com Dorival Caymmi e Ary Barroso. Só que, em 1958, vem a Bossa Nova. Em 1964, junto com o Golpe Militar, começam a MPB e os festivais de MPB, e a música de protesto. Em 1965, a Jovem Guarda, em 1967, a Tropicália. E, em dez anos, a música virou do avesso. E essa geração ficou esquecida.

Só que o Lupicínio não viveu o suficiente para ver a volta disso, que começou lá no final dos anos 1960, quando começou a baixar a poeira da Tropicália. No finalzinho dos anos 1960, um pouco em função da Nara Leão, que foi gravar um disco e gravou Cartola e Nelson Cavaquinho, que eram caras que estavam completamente esquecidos naquele momento. Ali, começou um processo de escutar de novo, principalmente os compositores que eram dessa geração.

Além de Cartola e Nelson Cavaquinho, Adoniran Barbosa e Guilherme de Brito. Aqui em Porto Alegre, tem o Túlio Piva. Só que o Túlio fazia sambas alegres, para cima, então o Túlio foi resgatado antes. E ele tinha a mesma idade do Lupicínio. O Lupicínio ficou muito com a cara daquele Brasil que as pessoas queriam esquecer naquele momento, que era um Brasil muito machista, um Brasil muito preocupado com quem trepava com quem. Essa coisa muito moralista. Aquilo que o Nelson Rodrigues caricatura muito bem. Aliás, Nelson Rodrigues e Lupicínio têm muito a ver. E Shakespeare. E não sou eu que estou dizendo, infelizmente. O Augusto de Campos foi o primeiro que levantou essa lebre.

Nelson e Lupicínio chegaram a ter alguma conversa presencial? 

Arthur – Não, mas o Nelson dizia que o Lupicínio era o compositor preferido dele. Obviamente. E aí, quando começa, na década de 70, a recuperarem esses caras, o Lupicínio começa a ser recuperado porque o João Gilberto canta uma música, que nem vai ao ar, num especial de TV, mas fica todo mundo sabendo. E aí o Caetano grava, o Gil grava. Mas isso é entre 1972 e 1974. E ele morre em 1974. Então, ele não chega a ser resgatado como Cartola foi, por exemplo.

E essa loucura com Augusto de Campos? Pode parecer improvável um concretista ser fascinado por alguém como Lupi.

Arthur – Quando o Caetano conheceu o Augusto, achou que o Augusto era um pouco doido, obcecado pelo Lupicínio, ele era muito fascinado. Teve uma célebre noitada, quando Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari vieram para inaugurar uma exposição do concretismo aqui, e foram encontrar o Lupicínio. Depois, o Caetano quis ter esse mesmo encontro também. Quem juntou eles, em ambas às vezes, foi o Celso Marques, um figuraça que foi um dos fundadores da AGAPAN [Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural] e hoje é um monge budista. Foi o cara que juntou Lupicínio com os concretistas e com Caetano.

A epígrafe do meu livro é um poema do Augusto falando do (Anton Von) Webern e do Lupícinio, porque ele descobriu os dois no mesmo ano, e ficou igualmente obcecado com os dois. E ninguém na turma deles daqui levava a sério o Lupicínio como cantor. Ele era um excelente cantor, mas era completamente desacreditado, principalmente por essa turma. A coisa do cantor era o cantor de vozeirão, e depois que surgiu a bossa nova, mais ainda, por enfrentamento. O cantor tinha que ser o Nelson Gonçalves, o Jamelão, para não ser confundido com esses “viadinhos” da Bossa Nova.

Então, Augusto de Campos, Caetano Veloso e João Gilberto foram os responsáveis por trazer de volta o Lupicínio?

Arthur – Sim, porque o que quer que o João Gilberto cantasse, em 1971, virava automaticamente sinônimo de bom gosto. Então, o fato dele ter cantado em uma passagem de som “Quem há de dizer” é muito maluco. E o Augusto gravou tudo, e até postou recentemente no seu canal no YouTube. E o Augusto influenciou Caetano, e aí quando junta o João Gilberto…. Aí é a Gal, o Gil, Paulinho da Viola – que deve ter chegado por outras vias -, a Elis, para não ficar para trás também gravou. E a Bethânia, que eu estranho que não tenha gravado antes, porque é bem o tipo de coisa que ela gosta, tanto é que acho que ela foi quem mais gravou coisas do Lupicínio depois.

Tu comentou sobre a questão do sofrimento, dos relacionamentos, de enxergarem como brega, mas quais são as características da obra musical dele?

Arthur – Ele era visto, em algum momento, como brega, mas eu acho que não é brega. É uma coisa da dor do sofrimento amoroso mesmo, muito forte. O que, enfim, como eu comentei, está em Shakespeare, está em Nelson Rodrigues, está nos poetas provençais, é um dos grandes clichês da arte. Só que ele tinha um despudor que nunca ninguém teve. O cara que chegou mais perto, talvez, tenha sido Aldir Blanc, que tinha influência confessa do Lupicínio, mas nem o Chico Buarque tocou essa abjeta cornitude. 

Agora, analisando como forma, o que é brilhante nas letras é o quão coloquial elas são. Tanto que uma opção que eu tive no livro é de escrevê-las nunca em formato de poesia ou de letra de canção. Elas são feitas sempre como crônicas, porque quase todas elas funcionam em prosa, é impressionante. É uma história sempre. É uma historinha contada, ou uma carta, ou alguém falando com o outro. E outra coisa genial musical é como intuitivamente ele dá a credibilidade para isso, porque está sempre muito próximo da entonação da fala, do que ele compõe.

Eu analiso algumas canções item por item. São algumas sacadas de gênio. Tipo, “Beatriz”, do Chico Buarque e do Edu Lobo, a nota mais alta da melodia é quando fala “céu”, e a nota mais grave é quando fala “chão”. Edu Lobo, que fez faculdade de Música nos Estados Unidos, e Chico Buarque é filho do Sérgio Buarque, intelectual universitário. Lupicínio faz várias dessas coisas, no puro instinto. Várias dessas sacadas. Tem umas conversas com o Rubem Santos que são muito boas. O Rubens querendo dizer de uma outra forma na letra, numa parceria deles, e o Lupicínio dizendo: “cara, ninguém fala assim”. Essa coisa do “português errado”, ele usava muito e de forma inteligente, para ser o português da fala, e que é uma construção modernista. Essa é uma das tantas broncas que a gente tem, que é de colocar o Modernismo Paulista de 1922 como Centro da Revolução, como se tivessem inventado tudo.

Em alguns momentos, quando tu falou sobre o livro da Elis Regina, tu comentou que tudo começou quando tu ainda trabalhava como jornalista e foi produzir uma matéria sobre ela, mas se deparou com muito material e acabou acumulando isso ao longo da vida. Como foi no caso do Lupicínio?

Arthur – Veio tudo dessa mesma coisa. Eu comecei a juntar material naquela época, lá em 1990. É uma loucura, são trinta e três anos. Eu nunca parei de juntar material. A cada livro que eu lia, cada matéria que eu encontrava, eu guardava e ia botando para dentro do texto. Então, o trabalho foi muito de redação final. O Lupicínio, na verdade, nesses dois últimos anos, para terminar o doutorado, fiquei bem focado nele. 

Mas, ao mesmo tempo, eu fiquei trabalhando nos outros [livros] também. Eu faço uma coluna para a revista Parêntese, do Matinal, e isso vai sistematizando. Então, ao mesmo tempo em que eu finalizava Lupicínio, eu escrevia as colunas para o [Luís Augusto] Fischer, que são o volume seguinte na coleção [“Porto Alegre: uma biografia musical], que será o volume 2. O volume 1 foi todo publicado na Parêntese e depois fiz uma revisão.

Também em relação a Elis, tu comentou que tinha uma questão pessoal, afetiva. E no Lupicínio, também?

Arthur – Não, o Lupicínio não. A Elis era uma coisa que eu ouvi desde sempre, a minha vida inteira, por causa do meu pai, da minha mãe, e o meu avô também gostava muito da Elis. O Lupicínio nunca foi um grande amor de ninguém, inclusive, a minha mãe, por exemplo, que é quem está viva dos três, tem pavor do Lupicínio. Minha mãe é da geração da Bossa Nova, né? (risos). Mas no caso do Lupicínio, tem uma coisa minha, como compositor, de ficar muito impressionado com ele. 

Ele era um compositor brilhante, e sem tocar instrumento nenhum. Isso que é um gênio! Para tu fazer uma música sofisticada, tu não precisa de talento, tu precisa de estudo. Qualquer idiota que estudar consegue fazer um negócio sofisticado, o que não quer dizer bom ou ruim. No caso do Lupicínio, ele consegue fazer um negócio muito sofisticado, puramente no instinto e que ainda parece simples para as pessoas. 

Geralmente, as pessoas falam na letra dele, mas musicalmente ele é muito impressionante. Tanto é que, volta e meia, alguém faz um disco só de Lupicínio instrumental, porque a riqueza musical é mesmo muito grande. As músicas não têm um formato fechado de estrofes e refrão. Não soa uma coisa quadrada, porque ele vai se deixando levar pelo que ele quer dizer no texto. Quadrado não quer dizer ruim, são músicas formadas de estrofe e refrão, que é o formato de 95% das músicas. São pouquíssimos compositores de música popular que não usam esse formato. 

E aquelas coisas dele, de começar uma letra de música dizendo “…e aí, eu comecei a cometer loucuras”. Ou seja, começar uma música do meio da história. Isso é uma coisa raríssima, e essas sacadas seriam esperáveis de um compositor dessa geração do Chico, Caetano…Mas são de um sujeito que tinha instrução muito primária. Não é à toa que ele voltou à discussão, trazido por gente muito intelectualizada, como Augusto de Campos, um dos caras que inventou a Poesia Concreta (no Brasil), e que era mentor dos tropicalistas.

Como é fazer a combinação de músico, pesquisador e jornalista? Saber o que é interessante para as pessoas que vão ler, com todo o trabalho do pesquisador, mas também como músico, chocado com a genialidade do Lupicínio? 

Arthur – Eu acho curioso que muitas biografias de músicos não falem de música. Do Bowie, por exemplo, eu li quatro e duas não falam nada de música. Tudo bem que ele era uma figura interessante, mas uma delas só fala de sexo e drogas, por exemplo. Por quê? Porque, geralmente, quem escreve biografia de músico é jornalista. Eu me sinto muito confortável para falar bem e mal de todos, porque eu sou um pouco dos três (risos). Por outro lado, pesquisadores têm vários livros acadêmicos escritos sobre Lupicínio, mas são livros de linguagem acadêmica. Então, eu que sou primeiro músico, depois jornalista e, depois de velho, pesquisador com rigor acadêmico, fico jogando essas três coisas. 

Quando eu falo especificamente de música, fica o jornalista meio que entrevistando o músico, fazendo ele explicar coisas da forma mais simples possível. E o pesquisador, por outro lado, com o rigor acadêmico, dizendo: ‘Cara, isso aí é chute. Isso aí tu tá sendo o jornalista”, no mal sentido.

Outra coisa que eu cuido muito é para ser muito coloquial. A última redação que eu faço sempre, de qualquer coisa, é em voz alta para mim mesmo, para que pareça que eu estou falando. Além disso, eu tive o privilégio absoluto de ter o Fischer como orientador. Tanto no mestrado – que foi sobre os “Almôndegas” – quanto no doutorado, eu pude escrever do jeito que eu quis. Não mudei nada, não tive que escrever em linguagem acadêmica e depois traduzir. Eu perguntei no Mestrado: “eu posso escrever como uma pessoa normal?”. E aí ele disse: “Claro, se tu não puder escrever como uma pessoa normal no Mestrado em Literatura Brasileira, isso não vai acontecer em lugar nenhum”.

* Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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