Foto: Jornal Radiolândia/reprodução)

A história do sambista que teve sua música roubada três vezes na Europa

Thaís Seganfredo

Caco Velho estava no auge. Naquele ano de 1959, ele fazia uma pausa depois de mais uma temporada de sucesso na boate La Macumba, em Paris, e havia sido eleito o melhor sambista masculino pelo Clube dos Comentaristas de Discos do Rio de Janeiro. Ainda assim, teve um sobressalto quando sua filha Elisa lhe contou que um tal de George Melachrino estava cantando sua música “Mãe Preta” na TV.  Depois de descobrir que o cantor britânico lançou a música pelo selo da RCA sem sequer atribuir autoria ao verdadeiro compositor, ele decidiu aproveitar sua excelente relação com a imprensa carioca para desabafar sua indignação. 

“Montam em cima de possibilidades comerciais de ‘Mãe Preta’, enquanto eu aqui, o verdadeiro autor, quase nada ganhei com ela, em confronto com esses falsários de além-mar!”, ele desabafou ao jornal Radiolândia, que publicou a notícia junto com outros periódicos, como o Correio da Manhã e o Jornal do Dia. “Estou arrasado com mais esse furto musical, pois mais uma vez lá no estrangeiro alguém está ganhando dinheiro em cima de mim!” Caco Velho estava cansado. Esta era a terceira vez que um cantor europeu havia lançado a música sem conhecimento do autor. 

Reportagem do Jornal Radiolândia, em maio de 1959, publicou o desabafo de Caco Velho (Foto: Radiolândia/reprodução)

As portuguesas Maria da Conceição e, depois, Amália Rodrigues, à época uma fadista já muito popular, também fizeram sucesso às custas da toada, renomeada para “Barco Negro”. Como se não bastasse, a letra original da música, que falava sobre o cotidiano de uma mulher negra escravizada, havia sido completamente apagada da versão portuguesa. Em ambos os casos, os empresários de Caco Velho tiveram que entrar em contato com as gravadoras para exigir os direitos autorais. 

Sambista nascido em Porto Alegre, Mateus Nunes, o Caco Velho, fez carreira em São Paulo e no Rio de Janeiro, além de passar temporadas em Paris e em Las Vegas, levando a música brasileira para além do oceano Atlântico. Contemporâneo de Lupicínio Rodrigues, com quem duelava nos festivais no começo da carreira, ele costumava lotar as boates paulistanas, cantando e tocando seu pandeiro principalmente para a elite. Sua simpatia a extroversão lhe renderam a alcunha de “o sambista infernal”, e seu círculo de amizades passava pela cantora Maysa e por Vinicius de Moraes, com quem se reunia às vezes pra fazer um samba, segundo pesquisa desta reportagem em jornais da época.

Caco Velho compôs “Mãe Preta”  muito antes da fama, em 1938, quando ele integrava o conjunto musical do experiente músico Piratini, em Porto Alegre. Na época, com a ajuda de Piratini, ele rascunhou alguns versos tendo como mote a vida de uma mulher escravizada no século XVIII, inspirado por uma pintura que ele havia visto. Compôs também a música, classificada como batucada, conforme registros da Biblioteca Nacional.

“Pele encarquilhada carapinha branca

Gandola de renda caindo na anca

Embalando o berço do filho do sinhô

Que há pouco tempo a sinhá ganhou

(…)

Mãe preta, mãe preta

Enquanto a chibata batia em seu amor

Mãe preta embalava o filho branco do sinhô”

No Brasil, o batuque foi lançado originalmente em 1943 pelo Conjunto Tocantins, mas caiu no esquecimento até ser redescoberto cerca de 10 anos mais tarde. Ainda não se sabe como Mãe Preta chegou a Portugal, mas foi com o nome “Barco Negro” e uma letra completamente modificada que ela se consagrou mundialmente. Até o momento, no entanto, ainda não se tinha o conhecimento de que esse processo de aportuguesamento da toada não havia sido pacífico.


Quem primeiro lançou a obra sem saber (ou sem atribuir) sua autoria foi a cantora Maria da Conceição, que alterou alguns trechos mais “pesados”. Logo em seguida, em 1955, Amália Rodrigues se apaixonou pela música e a regravou para a trilha do filme “Os Amantes do Tejo”, desta vez modificando toda a letra, que passou a ser um poema de David Mourão-Ferreira sobre dois amantes brancos portugueses separados por uma viagem marítima. Caco Velho descobriu sobre a versão pouco depois (não se sabe exatamente em quanto tempo) e acionou sua gravadora para resolver o caso. Mais tarde, se encontrou com Amália Rodrigues e passou uma temporada se apresentando em Lisboa a convite dela.

A versão mais conhecida para justificar o apagamento completo da letra de Caco Velho foi a censura da ditadura salazarista. “A música lançada pela Maria da Conceição foi censurada, mas pelo que entendi, continuou fazendo sucesso de forma clandestina. E a Amália Rodrigues, quando foi fazer o filme, exigiu cantar essa música”, diz o pesquisador musical,  Rafa Rodrigues, que estuda a história de Caco Velho. 

Originalmente uma batucada, foi como um fado que a música se tornou um clássico e acabou rendendo a Caco Velho uma boa renda depois de restaurada a injustiça. O jornalista e pesquisador musical Arthur de Faria analisa as aproximações entre o samba e o fado. “O fado nasceu no Brasil, na mesma época da modinha e do lundu, e trazia uma mistura da música dos negros com a dos brancos. E aí o fado foi [levado] para Portugal e lá virou a música nacional portuguesa. Então tem alguma ironia nisso, que muitos anos depois um samba tenha virado fado, uma música composta por um música negro brasileiro cantada por uma cantora portuguesa”, explica. 

Até o momento, “Mãe preta” já foi gravada por cantores do mundo todo, inclusive do Japão. No Brasil, a versão mais difundida é a de Ney Matogrosso. Ainda hoje, a letra original da toada é pouco conhecida, mas tem sido resgatada sobretudo por cantoras portuguesas.

O sambista infernal

Caco velho e Dorival Caymmi em apresentação Foto: reprodução)

Assim como Lupicínio Rodrigues e Túlio Piva, dos quais foi contemporâneo, Mateus Nunes, o Caco Velho, marcou época na cena nacional do samba. Conhecido como “o sambista infernal”, o porto-alegrense foi um dos principais nomes das casas de show nas décadas de 1950 e 1960 no país, além de levar a cultura brasileira (e até mesmo a gaúcha) para países como França e Estados Unidos.

Os jornais da época são uma amostra da popularidade do músico. “Caco Velho não sabe o que fazer para atender a todos. Depois da meia-noite é muito difícil encontrar mesa. Mas o Caco dá um jeito. O samba Pourquoi ainda é um grande sucesso”, dizia uma nota do Jornal do Brasil, em 1961.  “Pourquoi (Essa nega sem sandália)”, regravada por mais de 10 artistas, entre eles Elza Soares em parceria com Miltinho, é uma das composições do sambista que acabou esquecida com o passar dos anos. O mesmo se passou com “Não Bobeie Calamazu”, interpretada pelos Demônios da Garoa. Sua obra é marcada por um samba sincopado, alegre, que mais tarde incorporou também elementos do jazz.

A partir do final dos anos 1950, período em que a bossa nova era tendência nos palcos internacionais, Caco Velho foi um dos principais nomes a levar a música brasileira – em especial a bossa mais tradicional do samba. Quando retornou ao Brasil, abriu sua própria casa de shows em São Paulo, a Brazilian’s, que, segundo os jornais da época, “arrastava multidões”, passando à frente de importantes boates da cena. Sempre buscando inovar na carreira, ele também foi o primeiro sambista a participar de um programa de televisão, ainda na fase experimental, em 1950. O músico morreu aos 52 anos, em 1971, vítima de câncer no intestino. No mesmo ano, foi homenageado por Elis Regina no programa Som Livre Exportação, da TV Globo. 

Toada Gaúcha em Paris

Acolhido pelo público e pela crítica da época como um verdadeiro sambista paulistano, Caco Velho voltou algumas vezes ao Rio Grande do Sul, principalmente no início de sua carreira, para participar de festivais de sambas e marchinhas de Carnaval. Nos concursos, seus maiores duelos eram travados com ninguém menos que Lupicínio Rodrigues (com quem o músico comporia o samba Que baixo, em 1945).

E, de acordo com o pesquisador musical Rafa Rodrigues, era Caco Velho quem levava a melhor na maioria das vezes, a ponto do jornal Folha da Tarde declarar, em agosto de 1940, que Caco “fazia sombra” a Lupi. “Enquanto as músicas do Lupi tinham um significado mais profundo, as do Caco eram mais focadas no ritmo. Diziam que as letras eram sem pé nem cabeça, mas as músicas caíam na boca do povo. Ele fazia um samba diferente desse que se estabeleceu como sendo de Porto Alegre”, conta.

Antes de dedicar-se integralmente ao samba e suas vertentes, porém, Caco Velho começou compondo toadas regionais em conjunto com Piratini. Além da consagrada Mãe Preta, a mais conhecida delas é Carreteiro, que conta a história de um homem que deixou sua querência e migrou para a cidade.

Músico porto-alegrense na sua própria casa de shows em São Paulo, a Brazilian’s /ARQUIVO DA FAMÍLIA/DIVULGAÇÃO/JC

Em 1956, já estabelecido na boate La Macumba, em Paris, o músico buscou nas suas origens gaúchas a inspiração para seu próximo show. “Eu nunca abandonei a toada”, disse em entrevista a Justino Martins, correspondente da revista Manchete na Europa. Aproveitando o sucesso de Carreteiro, que era tocada por orquestras parisienses na época, ele idealizou, junto à atriz francês Anne-Marie Mersen, um novo número musical cujo principal atrativo era a toada gaúcha.

Radamés Gnatalli, que também era popular em Paris com sua Prenda minha, foi citado na entrevista por Caco como uma referência para a construção do musical. “No meu estado, os gaúchos dançavam a toada nas fazendas numa coreografia bem animada, batendo os compassos com os tacões das botas e as rosetas das esporas”, explicou. Para fazer o som das esporas, Caco inovou as substituindo pelo som do velho pandeiro.

A tradição e o futuro do samba

Foi ouvindo Saudades de Jackson do Pandeiro, dos suingueiros gaúchos Luis Vagner e Bedeu, que o músico Rafa Rodrigues ouviu falar em Caco Velho. Na letra, o sambista é citado como referência pelos compositores do samba-rock. A partir deste momento, Rafa passou a estudar a obra de Caco Velho e descobriu um mundo de composições que classifica como contemporâneas. Em 2018, montou a banda Rafa 16 & Caco Velho Ensemble, composta por 10 músicos instrumentistas, que vem realizando shows em tributo ao mestre. “A ideia é expandir o projeto, produzir musicais e tentar difundir isso para mais plataformas. A história dele merece ser melhor contada ser reinterpretada musicalmente”.

Paralelamente, a família de Caco Velho também se dedica a resguardar sua memória e sua obra, que inspirou integrantes da próxima geração a seguir seu legado na MPB. “Passei a infância ouvindo os discos do meu avô. As músicas são muito ricas, melodia, arranjos, o ‘swing’ que ele tinha, e como ele brincava, fazendo o som da cuíca com a boca. Pode ser que, conviver com esse tipo de música em casa, tenha me ajudado a ter facilidade, a ter ‘ouvido musical'”, conta Adriana Nunes, neta de Caco. Uma das ideias da família é ampliar a presença das músicas de Caco Velho no streaming, que hoje estão dispostas em plataformas como o YouTube e também no acervo do Instituto Moreira Salles, disponível online. Desta forma, a proposta é fazer a salvaguarda de mais um entre tantos nomes que mantêm a tradição do samba de compositores e compositoras gaúchas.

Neste sentido, uma artista que vem trabalhando para visibilizar a história e a memória do samba feito no Rio Grande do Sul é Pamela Amaro: “Acredito que a tradição do samba aqui exista por conta da presença negra no Estado, que embora seja uma presença em minoria, é forte, historicamente muito marcada. Onde tem negros e negras, tem samba”.

A compositora conta que na Capital há um cenário rico de sambistas, já que o gênero é cultivado tanto em escolas de samba, como em rodas e nas casas das famílias. “Cada sambista tem sua forma de compor, mas arrisco dizer que o nosso samba no RS traz a presença negra a partir dos orixás, da cultura banto e iorubá”, explica, referindo-se às diferentes nações do batuque gaúcho.

Toda esta diversidade, no entanto, ainda é pouco visibilizada pela mídia nacional, observa Pamela, uma vez que a atenção normalmente recai sobre Lupicínio Rodrigues. “É preciso olhar para os outros compositores, tanto os mais velhos como os mais novos”, aponta, citando como referência Zilah Machado, Wilson Nei, Nilo Feijó, Izolino nascimento, mestre Paraquedas e Paulo Romeu.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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