Por Alecsandra Matias de Oliveira*
Vende-se uma crioulla de 18 anos de idade, sem o menor defeito, muito elegante e propria para ama de leite por ter o filho recemnascido: lava, engomma e cozinha perfeitamente, Rua da Alfândega n. 251, sobrado.
(Jornal do Commercio, 4 de fevereiro de 1872).
A condição das amas-de-leite – as chamadas mães pretas – deixou marcas profundas na história da vida privada no Brasil. Hoje, circunstâncias atribuídas ao trabalho doméstico, em sua maioria executado por mulheres negras, ainda trazem o verniz das relações patriarcais e escravistas dos tempos coloniais, quando, para os serviços íntimos e delicados, escolhiam-se nas senzalas as cativas mais limpas, fortes e menos africanizadas ou, ainda, alugavam-se ou vendiam-se as negras “perfeitas” em anúncios de jornais.
Consideradas mercadorias caras, essas mulheres, de certo modo, cumpriam as funções maternais, uma vez que a relação entre elas e as crianças brancas seguia desde dar de mamar no peito até os cuidados na infância – uma idiossincrasia cruel que escravizou o corpo e o afeto destas amas. Mistura complexa entre opressão e relações familiares, elas compõem instigante temário na história da arte brasileira. São conhecidas as imagens das amas-de-leite negras, registradas desde meados do século 19 ao início do século 20.
Algumas investigações que partem desta iconografia são bastante difundidas, tais como as que têm como mote a técnica fotográfica. Aliás, a chegada da fotografia no Brasil gerou inúmeros registros de pessoas e paisagens de uma forma tecnicamente diferente do desenho e da gravura, e essa inovação captou uma sociedade que queria se ver retratada em franco progresso. Contudo, existia uma camada social que não era dona da própria imagem: a representação da população negra na imagem fotográfica reflete uma situação de marginalidade; pessoas que não contemplavam e tampouco possuíam seus retratos. À técnica fotográfica interessava o comentário de sua diversidade exótica – a motivação era comercial ou antropométrica. Os negros são mostrados, então, em cenas que oscilam entre o mundo do trabalho e hábitos considerados “extravagantes”.
No campo da fotografia, a coleção Francisco Rodrigues (Fundação Joaquim Nabuco, Recife – PE) é fonte de pesquisa relevante porque contém registros de meninos brancos (filhos da aristocracia) com suas respectivas amas-de-leite. Nessa coleção, por exemplo, está o retrato de Augusto Gomes Leal com a ama-de-leite Mônica, 1860 (F. Villela, Photographo da A. Casa Imperial do Brasil), uma das imagens mais conhecidas desta iconografia, assim como a fotografia de Isabel Adelaide Leal Fernandes com a ama-de-leite Mônica, c. 1860-1889 (Photographia Allemã, Alberto Henschel & Co). Em ambas, a ama está com suas crianças brancas – a casa-grande e a senzala unidas pelo índice fotográfico. Chama a atenção o fato de as fotografias trazerem o nome da ama-de-leite – algo bem raro à época; as crianças “um pouco mais grandinhas”, colocadas em pé ao lado da ama, com trajes elegantes e sentada e, por fim, a passagem do tempo para Mônica. Percebe-se que entre a criação de Augusto e Isabel, seus cabelos, seu corpo e sua postura envelheceram… mas algo de melancólico ainda permanece.
Na colagem digital Possíveis sonhos de Mônica, 2019, Eliana Amorim, artista visual e integrante do Grupo de Pesquisa Nzinga: Novos Ziriguiduns (Inter) Nacionais Gerados nas Artes CNPq/URCA, reconstrói a imagem; coloca nossa personagem em fundo texturizado e chão ladrilhado, ao lado de duas crianças negras – talvez, seus filhos legítimos, aqueles abandonados em proveito dos filhos dos senhores. A obra Reintegração de leite, 2019, também de Eliana Amorim, faz referência a outro retrato bem conhecido, Ama de leite com o menino Eugen Keller, Pernambuco, 1874 (Coleção G. Ermakoff) – e, de novo, o menino loiro é substituído pelo negro. Assim, artistas e pesquisadores têm questionado e feito um exercício de resgate destas mulheres.
Nas artes visuais, cenas de amamentação e as amas-de-leite compõem as pinturas impressionistas de Degas, Renoir e Morisot, por exemplo, mas também estão nos desenhos e gravuras de artistas-viajantes, tais como Debret e Rugendas. Integram o repertório temático de pintores e escultores acadêmicos e modernos. Porém, o que nos desperta interesse é o reexame dessas imagens. Longe de ser um tema de pesquisa inédito, vê-se que esse imaginário que cerca as mães pretas motiva investigações atuais com diversas abordagens. Mencione-se aqui as pesquisas de Isabel Löfgren e Patrícia Gouvêa para a exposição Mãe preta, realizada na Galeria Pretos Novos de Arte Contemporânea (Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos), no Rio de Janeiro, em 2016. As pesquisadoras conseguiram reunir um acervo de imagens e documentos que nos mostra as ressonâncias entre a condição social da maternidade durante a escravidão e as vozes de mulheres e mães negras na contemporaneidade.
Percebe-se que esse esforço de pesquisa tem redimensionado obras, tais como Mãe preta, 1912, de Lucílio de Albuquerque, que ao ser colocada nessa chave de releitura, se torna evidência da História. A tela apresenta uma ama, sentada ao chão, amamentando uma criança branca e, ao seu lado, uma criança negra. O lugar é claramente miserável e torna-se pano de fundo, quando o olhar é apreendido pelo aspecto melancólico e apático da mulher no ato de amamentar a criança branca, enquanto seu filho aguarda sua vez. Para a pesquisadora Sarah Dume, particularmente, no seu texto Sociedade e cultura na obra Mãe preta (1912), de Lucílio de Albuquerque, essa cena possivelmente retrata o momento pós-abolição – quando as ex-escravizadas recorrem ao ofício de amas-de-leite como meio de subsistência.
Outro destaque é Mãe preta, 1955, de Júlio Guerra – monumento localizado ao lado da Igreja Nossa Senhora dos Homens Pretos (Largo do Paissandu). A escultura foi uma iniciativa do Clube 220, entidade que congregava agremiações negras no Estado de São Paulo. Segundo os apontamentos de Alexandre Araújo Bispo, no artigo Mãe preta: memórias e monumentos negros, publicado em Omenelick 2 ato, em 2011, a primeira ideia, surgida nos anos de 1920, era que cada grande cidade tivesse a “sua mãe”, porém, dificuldades político-econômicas abortaram o projeto.
A escolha direcionada à imagem da mãe preta trazia a polêmica: essas mulheres representavam o trabalho, o amor, a negação de seus próprios filhos frente à criação dos filhos dos brancos – um símbolo que para alguns era elogio e, para outros, deveria ser esquecido. Nos anos de 1970, a militância negra entendeu que a imagem da mãe preta só servia às elites. Viu-se, então, que ao longo dos anos, a revisão da história trouxe de volta a reflexão sobre as mães pretas e amas-de-leite – algo discutido, hoje, por artistas negras.
Nessa direção, Axexê da negra ou o descanso das mulheres que mereciam ser amadas, 2017, de Renata Felinto – performance que já apresentamos no texto A última pagodeira futurista, no Jornal da USP – tem efeito de redenção. Aqui, permita-me um aparte: Renata Felinto tem densa investigação sobre maternidade e os afetos da mulher negra – algo muito interessante na trajetória da artista. Mas, voltando à performance, evoca-se a memória de todas as amas-de-leite, usando como referência um ritual do candomblé, em que após o falecimento do iniciado, por meio deste rito de passagem libera-se a espiritualidade. Assim, ela enterra as fotografias das amas-de-leite conhecidas por nós e, igualmente, uma reprodução da obra A negra, 1923, de Tarsila do Amaral, liberando todas as mães pretas que viveram essa condição. Ao mesmo tempo, o ritual liberta as filhas destas amas que, de algum modo, continuam a servir os filhos da elite brasileira, assim, a performance também redime essas mulheres que merecem dignidade e não aceitam mais serem desumanizadas. No Axexê da negra, enterra-se este passado de violência.
Diga-se, então, que na tradição das amas-de-leite, A negra, de Tarsila do Amaral, tornou-se obra-problema. Isto porque ela reúne diversos aspectos que merecem ser problematizados, entre eles: a representação é excluída de sua humanidade e de identificação; o reforço dos seus atributos associados ao trabalho, como o seio mais alongado, remetendo à sua função como ama-de-leite. E, ainda, algo tão íntimo para as mulheres negras: a ausência de cabelos. Igualmente, Tarsila embrutece as características físicas de sua modelo, o nariz negroide, pés e mãos enormes, cabeça pequena e os lábios exagerados, carregando na estigmatização. Ao representar o outro, a pintora o objetifica: ele não tem nome e tampouco história; é tão somente um corpo exilado em servidão.
Mas encontra-se revide nas amas-de-leite de Rosana Paulino. Em Ama de leite, n.1, 2005, e em outras obras deste período, a artista usa pequenas bonecas plásticas amarradas por fitas de cetim ao tronco negro de múltiplos seios, e aqui a artista subverte o jogo de poder, colocando o corpo preto em evidência, sendo os filhos brancos os objetos de menor valia. Numa visada rápida, tal como Tarsila, a escultura de Paulino não tem uma identidade, não tem um rosto, mas ela consegue tensionar o não lugar da mulher negra; nos mostra com crueza que aquele torso era objeto que serviu de alimento; um negócio lucrativo para os que a possuíam, sendo vendidas, alugadas e anunciadas como mães pretas. Nos desenhos da série Ama de leite, 2005, Paulino desmonta o mito de que essas mulheres foram submissas e abnegadas, sendo fonte de nutrição para outra criança, elas foram destituídas da experiência materna – seus seios têm leite, lágrimas e sangue.
Assim novas pesquisas e proposições artísticas conectam as memórias ancestrais às vivências atuais, ressignificam imagens, reescrevem a história e, acima de tudo, redirecionam trajetórias, devolvendo elementos que humanizam as mulheres negras – as mães pretas. Essas investigações e as obras que nascem delas são revides, uma confirmação de que nossa liberdade é garantida por nós, a partir de narrativas que serão escritas por nós.
*Professora da Escola de Comunicação da USP. Texto originalmente publicado no Jornal da USP.