Colagem em foto de Lyz Parayzo/intervenção em capa do livro Hackeando o Poder

Rede NAMI lança manual com “táticas de guerrilha” para artistas decoloniais

Como artistas podem hackear espaços de poder na arte e construir carreiras sólidas? A Rede NAMI, organização que atua realizando projetos que aliam a arte à transformação social, tem algumas respostas e quer compartilhar caminhos possíveis. 

Em Hackeando o Poder: táticas de guerrilha para artistas do sul global (editora Cobogó), mulheres de vivências e áreas distintas compartilham dicas que podem fazer a diferença em diversas áreas que as, os e es artistes enfrentam ao começar a construir suas carreiras no mercado da arte. 

Os capítulos são tutoriais que passam por tópicos como divulgação nas redes sociais, conexão com outras profissionais e produção cultural. Mais do que fórmulas prontas, no entanto, a leitura flui como uma conversa com as autoras, como se a gente estivesse tomando um café e trocando figurinhas sobre a dor e a delícia de ser artista. 

Com viés decolonial, Hackeando o Poder é voltado para artistas mulheres cis e trans, especialmente negras e indígenas, além do público LGBTQIA+, mães e artistas com deficiência. A ideia é contribuir para que esses criadores utilizem as ferramentas dadas para de fato hackear os espaços de poder que o sistema racista, patriarcal e normativo calcados no capitalismo restringe a poucos.

O livro tem organização de Panmela Castro, além de artistas convidadas e participação de integrantes da Rede NAMI, fundada por Panmela. “Bota pro mundo do jeito que dá, que o troço vai crescendo”, diz Panmela, parafraseada em um texto de Keyna Eleison. Panmela, que recebeu o Prêmio Global Leader em 2010, criou a NAMI para possibilitar que outras jovens artistas tivessem acesso ao conhecimento e à experiência adquiridos por ela.  Por isso, também disponibiliza uma versão online do livro no site da rede para quem já participou de algum projeto da organização. 

Como gerar conexões com artistas parceiras (como curadoras, produtoras e outras artistas), como escrever textos de apresentação, mini bios e currículos, como planejar e promover uma exposição e como divulgar seu trabalho nas mídias sociais são algumas das respostas que permeiam as dúvidas de quem está iniciando sua carreira. Cada capítulo é focado em uma dessas áreas, com dicas práticas que podem ser aplicadas com pouco ou mesmo nenhum recurso. Como viver de arte (?) parece ser a maior das interrogações de todes que têm esse sonho, e a obra apresenta alguns trajetos bastante possíveis. 

Foto: editora Cobogó/divulgação

O manual também traz histórias de artistas que podem inspirar outras mulheres a seguir rompendo barreiras. Um desses depoimentos é de Priscila Rooxo, de São João do Meriti (RJ). Ela começou a fazer grafitti em uma oficina da Rede, quando tinha 12 anos. Depois do projeto, recorreu à sua rede de apoio para continuar criando. Além de utilizar materiais como borra de café, ela aproveitava o muro de casa para pintar com as poucas tintas que conseguia. 

Foi participando de eventos de grafitti e convivendo com outras mulheres da área que ela passou a ter as primeiras oportunidades profissionais. “Nos eventos de grafitti, muitas vezes me sentia deslocada pela predominância de homens cis. (…) Com o tempo, fui me adaptando, pintando nas ruas, e foi desse jeito que conheci centenas de artistas, parceiras de pintura com quem me envolvi para idealizar e articular coletivos de mulheres, além de coletivos com grafiteiros, que me deram segurança e articulações para me desenvolver nas artes. A partir disso, comecei a ser chamada para eventos, ganhar materiais e, às vezes, até um pouco de dinheiro”.

No cenário neoliberal atual, em que cada vez mais os artistas precisam ser “empreendedores de si mesmos”, como apontou a pesquisadora Amanda Coutinho em entrevista anterior ao Nonada, Hackeando o Poder funciona como um manual de sobrevivência no mercado das artes no Brasil, principalmente, das artes visuais.  

“Ser artista é ser trabalhador e ser trabalhador é ser um sujeito político, no sentido de requisitar condições que ensejem sustentabilidade, diversidade. É importante que a gente entenda, primeiro, que isso é um trabalho. Por muito tempo, a dimensão cultural foi considerada a face oposta do trabalho. Só assim a gente pode reivindicar direitos”, avalia Amanda.

A trajetória da artista Lyz Parayzo é bastante ilustrativa desta condição. Em um depoimento bastante sincero sobre a realidade do mercado, ela conta sobre suas intervenções que questionaram práticas de descaso com alunes bolsistas, além de atos censórios que ela sofreu dentro da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Depois das intervenções, ela perdeu seu trabalho no educativo da EAV, mas ainda assim não se calou. 

Essa tática de guerrilha com o objetivo de buscar uma inserção no sistema foi um ponto de inflexão na carreira da artista. Ainda assim, a valorização de seu trabalho não foi imediato. “Acreditava que quando expusesse em museus e galerias de arte de forma convencional, como convidada, ganharia dinheiro, mas a realidade foi outra e me sujeitei a fazer muitos trabalhos de graça para me tornar ‘conhecida’. Entretanto, portfólio e catálogos não pagam contas e tive que aprender a me posicionar nessa nova fase. Somente a partir de 2017, dois anos depois do início de tudo, passei a viver de vendas de performances para as unidades do Sesc São Paulo”. Hoje, além de ter participado de ter conseguido gerar renda através de editais, venda de obras e de participação em eventos, ela é mestranda da Escola Nacional Superior de Belas Artes de Paris. 

A generosidade dessas e de outras mulheres que assinam os textos em compartilhar o conhecimento adquirido por elas com outras artistas de viés decolonial é um dos pontos mais fortes na obra. Afinal, não saber  como e com que meios atravessar o caminho das pedras faz muitas desistirem no meio da trajetória, o que com certeza faz com que o mundo perca a possibilidade de conhecer artistas talentosas. Fica nítido, pelas experiências trazidas no livro, que a articulação em rede, como a própria NAMI, calcada na colaboração em detrimento de uma virtual concorrência, é também uma forma de hackear o sistema.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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