O mapa do Brasil é um desenho feito pelas mãos do colonizador. As fronteiras que o dividem do restante da América do Sul e a própria separação entre os estados são linhas que apontam para processos históricos de invasão deste território. Artistas brasileiros têm acrescentado novas imagens a essa cartografia, a partir de obras que, materialmente, provocam a constituição do Brasil. É o que acontece no trabalho da alagoana Marina Camargo, a partir de um mapa feito de látex, e da obra de Jefferson Medeiros, artista do Rio de Janeiro, que entalhou o Brasil com madeira.
Já o artista paraense Maurício Igor insere seu corpo no mapa, em uma pintura realizada sobre um compensado de 1,5 metros. Vemos o auto retrato do artista, sentado no chão, com o cotovelo apoiado sobre um ventilador. Ele mantém seu olhar longe, para fora do quadro – como quem vê para além do que está circunscrito pelas linhas brasileiras. Seu olhar parece buscar o território de lá, além-mar.
Com a pretensão de apresentar o mundo “como ele realmente é”, os primeiros atlas, datados do fim do século 16, já contribuíam para a apropriação de territórios indígenas e a dominação dos povos. Nos séculos seguintes, os mapas continuaram sendo usados pelo capitalismo para instaurar ordem, consolidar blocos econômicos e justificar a exploração de recursos naturais, por exemplo.
Ao longo do tempo, a noção da cartografia como registro da realidade passou a ser contestada e teóricos e artistas começaram a propor uma contra-cartografia ou cartografia crítica, problematizando justamente o uso histórico dos mapas para a legitimação do colonialismo e do nacionalismo.
É o caso da “América Invertida”, do artista hispano-uruguaio Joaquín Torres Garcia, que se tornou um dos maiores símbolos da identidade latinoamericana. Em seu manifesto “A Escola do Sul”, ele explica: “Viramos o mapa de cabeça para baixo para ter uma ideia exata de nossa posição, sem nos incomodar com o que pensa o resto do mundo”.
No contexto da arte indígena cosmopolítica, como define Denilson Baniwa, o artista apresenta “Não Há Cartografia no Mundo dos Pajés” (2020). O trabalho propõe uma criação a partir de um mapa de rios amazônicos datado do século 17, na qual desenha grafismos, propondo simbolismos contracoloniais sobre o instrumento hegemônico.
Já a pesquisadora Ana Paula do Val discute o conceito de cartografia afetiva e da cartografia de memórias, como pontos de diálogo. Ela acredita que os mapas afetivos dialogam com essas outras linguagens como um processo de mediação sociocultural, que envolve processos criativos que ativam as percepções artísticas e culturais e promovem subjetivação que evoca contextos, narrativas e identidades a se manifestarem no plano cartográfico como suporte.
Na obra “Diáspora”, do educador e artista visual André Vargas, esculpida a partir de um chinelo Havaianas, os continentes africano e americano se ligam. O material escolhido, dessa vez, também é central, importa e informa um desejo de falar uma sobre uma história presente, que caminha em nossos pés.
A artista Lyz Parayzo, artista e ativista, referencia em seu trabalho a série Bichos, de Lygia Clark. Parayzo esculpe esculturas metálicas, afiadas, que deixam o perigo de uma aproximação sempre em iminência. Embora estática, a sensação é que em algum momento os dentes da engrenagem vão girar, e o mapa do Brasil será desmontado.
São trabalhos onde o “fazer” importa. Estes artistas, reunidos pelo Nonada Jornalismo, nos fazem questionar e reimaginar, o que constitui um território. Encontram-se na pergunta: ‘Do que é feito este país?’. Ou então: “O que reflete um mapa?”. Confira abaixo:
Diáspora (2022), de André Vargas
O artista trabalha com o poder da palavra (Ofó, em Iorubá), André Vargas tem nos ditados populares e encantados sua ferramenta de trabalho. A partir de elementos culturais, linguísticos, religiosos, históricos e estéticos, André articula a ancestralidade e evoca fundamentos, principalmente de matrizes africanas. Em práticas artísticas que, diversas vezes, lembram dos ritos, ele se interessa pelo encontro entre memória pessoal e coletiva.
Sem título (2022), de Maurício Igor
Maurício Igor investiga questões de identidades em temas como gênero, sexualidade, miscigenação, decolonialidade e o cotidiano na região amazônica. Também tem se debruçado sobre a temática do deslocamento, que se reflete em suas história pessoal, e se desdobra em fotografias, vídeos, performances, textos e instalações. É atualmente menstrando em Processos Artísticos Contemporâneos pela Universidade do Estado de Santa Catarina, no qual pesquisa as poéticas relacionadas ao corpo afro-amazônico em deslocamento.
Invasão (2017), de Jaime Lauriano
A poética de Jaime Lauriano é conhecida por indagar a História tida como oficial. Ele é um dos artistas mais conhecidos por desenvolver outros mapas do Brasil, ao questionar sua formação e o próprio mito da democracia racial. Lauriano explicita as diferentes camadas de violência que essas narrativas trazem, e parece sintetizar uma série de questões que andam junto à colonização e que são extremamente atuais, como o desmatamento e a invasão de terras indígenas. Seus trabalhos refletem também uma pesquisa sobre a atualização das violências por instituições de poder e controle – como policiais, presídios, embaixadas e fronteiras.
América-Látex (2020), de Marina Camargo
Os mapas são recorrentes na produção de Marina Camargo, também interessada pelos mecanismos de poder que estes objetos refletem. Ao construí-los a partir do látex, material flexível e elástico, e associado à exploração do Brasil, revelam uma cartografia frágil, que, como diz a artista no statement do trabalho “as formas da geografia da América Latina aparecem como uma pele arrancada da superfície, como se fosse um mapa sem base.” Extraído originalmente da Amazônia, a exploração da borracha está na base da colonização do Brasil.
“Baaraz Ka’Aupan (2022), de Gustavo Caboco
Baaraz Ka’aupan significa “campo em chamas” em língua Wapichana. Para o artista Gustavo Caboco, há um fogo que ultrapassa a borda academicista, incendeia a pesquisa-extrativista e que, com apoio de artefatos-coloniais, contribuíram para um apagamento do pensamento indígena. Este mapa vermelho, em chamas, muito atual para se pensar o Brasil, possibilita um alerta e também uma convocação para se olhar o território a partir de perspectivas indígenas. Em seus trabalhos, Gustavo utiliza do desenho-documento, da pintura, do texto, da animação para fazer caminhos em direção à terra. Ele reflete sobre os deslocamentos dos corpos indígenas e sobre a produção e as retomadas da memória.
“Colher de Pedreiro” (2021), de Jefferson Medeiros
Jefferson Medeiros é formado em História e especializado em Culturas Africanas e Afro-Brasileiras. Sua produção propõe discussões sobre colonialidade, exploração do trabalho e violência no cotidiano urbano periférico, além de questionar as raízes e consequências dessas questões. Utiliza materiais diversos, de concreto a cápsulas de munição, e se interessa por uma epistemologia periférica de compreensão da realidade que experimenta.
Imaginário Cartográfico de uma cidade Brasileira (2017-2020), de Íris Helena
Iris é uma artista multidisciplinar, pesquisadora da paisagem urbana em diálogo com dimensões crítica, filosófica, estética e poética. Sua poética brilha, especialmente, na escolha das superfícies e suportes escolhidos para materializar as paisagens, sendo eles suportes precários e ordinários do seu cotidiano, como notas fiscais. Em imaginário Cartográfico de uma cidade Brasileira, a artista criou um mapa poético baseado no estudo cartográfico acerca da formação de cidades como João Pessoa (PB), Recife (PE), Natal (RN), Rio de Janeiro (RJ). A disposição urbanística sugerida nos mapas revela traços coloniais, discrepâncias políticas e narrativas de poder e dominação ainda vigentes.
Bandeira #2 (2021), de Lyz Parayzo
Lyz Parayzo é uma artista que trabalha com audiovisual, joalheria, escultura e performance. Tem o corpo como principal suporte de trabalho, e sua performatividade diária como plataforma de pesquisa. Atualmente tem desenvolvido objetos para autodefesa, como é a obra Bandeira #2, que transitam de joias em prata a armaduras, escudos e armas em alumínio.