Clarice Lispector e Carolina Maria de Jesus (Foto: acervo IMS)

Como autoras brasileiras quebram a representação romantizada da maternidade

No turbilhão de autógrafos, entrevistas e eventos durante os meses que sucederam o lançamento de Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus também encontrava tempo e energia para cuidar da casa e dos três filhos antes de sair para as tarefas que a carreira de escritora exigia.

Em Casa de Alvenaria, livro que reúne uma parte do diário de Carolina nesse período, quando morava na cidade de Osasco, ela retratou as dificuldades desse trabalho em diversos momentos:

“Levantei as 3 horas para ler e escrever, porque durante o dia eu não tenho tempo, os filhos rêinam tanto. Eu xingo-os o dia todo. O filho é agradável quando é pequenino no berço. E depôis dos dessôito anos quando ele compreende a vida, e transforma-se em bom elemento.” (22 de outubro de 1960)

“Levantei as 4 horas liguei o radio na radio Bandeirante, para ouvir a Amanhecer do Tango. Fiz café. Os filhos despertaram. Agora eles não levantam louco por comida como levantavam na favela. Preparei as roupas para lavar e passar. Sai para fazer compras. Roupas e sapato para os filhos”. (4 de novembro de 1960) 

A questão da maternidade também aparece nas obras “Uma Duas”, de Eliane Brum, “A morte de Paula D.”, de Brisa Paim, “O peso do pássaro morto”, de Aline Bei, “Quarenta dias”, de Maria Valéria Rezende, “A vida invisível”, de Eurídice Gusmão e “A Chave de Casa”, de Tatiana Salem Levy. 

Esses livros compõem o quadro de análise da tese de doutorado intitulada “A Putrefação das flores : a maternidade na literatura brasileira contemporânea”, da pesquisadora Ana Carolina Schmidt Ferrão, que investigou como a mãe é representada na literatura brasileira contemporânea. Ela conta que no primeiro semestre do doutorado descobriu que estava grávida, e a sua trajetória como pesquisadora foi inevitavelmente atravessada pela maternidade: 

“As vivências de uma mãe, e especificamente uma mãe na Academia, me envolveram de uma forma potente. Ao mesmo tempo, no grupo de estudos Limiares Comparatistas e Diásporas Disciplinares: Estudo de Paisagens Identitárias na Contemporaneidade, coordenado pelo meu orientador, Ricardo Barberena, tivemos contato com obras que traziam a maternidade sob um viés menos romantizado, que se alinhava mais com as reflexões e apreensões que vinham me atingindo. Nesse sentido, a minha trajetória como pesquisadora foi inevitavelmente atravessada pela maternidade, pois o assunto me atraía e compelia. Sem escapatória, alterei todo o projeto da tese. O corpus, por sua vez, já se consolidava naturalmente, como se depois de parir um filho o “ser mãe” me encontrasse por todos os caminhos. Através da leitura das obras que eram debatidas em nossas reuniões do grupo eu vislumbrava a ligação com outras narrativas, relembrava outras mães já lidas por mim. Então as pesquisas motivadas pelo interesse e necessidade em conectar as histórias das mães, de observar como a sociedade e a Literatura nos percebiam e retratavam, levaram-me ao corpus final”

Como questiona em sua tese, Ana procura também entender toda a complexidade da mãe. Segundo ela, há uma ruptura na representação romantizada da maternidade. As obras foram lidas a partir de uma perspectiva feminista em diálogo com autores que abordam temas como subjetividade, estereótipo, identidade, performances de gênero.

“As personagens mães são escritas em sua subjetividade, compostas por toda imperfeição, dor, amor, falha e medo que as habitam, ou seja, são, de fato, humanizadas. As relações entre mães, filhas e filhos não são estáticas nem perfeitas, os laços estão vivos e sujeitos às vivências das personagens. As mães não são vilãs ou santas imaculadas, são mulheres. As narrativas também questionam os moldes, as exigências e os mitos que envolvem a maternidade. Eu diria que a Literatura Brasileira Contemporânea escrita por mulheres pensa e contesta as amarras e as máscaras imputadas às mães.”

A tese de Ana também é completada com a parte ficcional, em que ela compôs, em consonância com as discussões da tese, uma coletânea de narrativas curtas e cartas endereçadas a seu filho. Ela conta que sempre acreditou ser uma espécie de hipocrisia afastar a subjetividade do pesquisador. 

“Por mais formal que uma tese possa ser, atrás dela existe um desejo e esse desejo é de um indivíduo, de um afeto ou de um sofrimento, somos movidos por nossos interesses e negar isso é a maior das brutalidades. O processo criativo foi muito ambíguo. Por vezes doloroso, já que ele refletia vários dos meus monstros em relação à maternidade, aqueles sentimentos que as mães querem negar ou esconder. Como escrever que o amor do meu filho, certos dias, sufocava? Eu também tinha vergonha de não ser uma mãe perfeita. No entanto, mesmo doloroso, era também um alívio e uma pulsão colocar tudo isso nas palavras, fosse através das cartas para o Arthur, fosse através dos textos em que eu me distanciava mais. Estes eram também um exercício de mostrar outras histórias e outras mães, empregar uma alteridade e desvendar essa putrefação das flores que tanto me instigou. A maternidade é plural, as mães não são uma entidade unificada, embora o senso comum perpetue essa ideia de que mãe é tudo igual, para isso os textos ficcionais diversificaram as vozes, as perspectivas. A escrita ficcional também cumpre na Tese o papel de corporificar a angústia e o prazer que me corroíam. Eu queria fazer parte dessa corrente de mulheres escrevendo a maternidade, porque isso me ajudava a elaborar a mim mesma como mãe, talvez perdoar e compreender.” 

Ana defendeu a tese em 2022 e atualmente está trabalhando no projeto de pós-doutorado que segue na mesma temática de maternidade e literatura. A vida pessoal segue ligada à vida acadêmica, já que também está gerando o segundo filho, no oitavo mês de gestação. 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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