Foto: reprodução/IMS

Atos de felicidade: Gê Viana, a artista que corta imagens coloniais à facão

Imagens do aquarelista português João Guillobel repousam sobre a mesa. Não estão ali para serem contempladas. Elas aguardam o momento de serem picotadas, cortadas, estilhaçadas, ao lado de outras gravuras de livros do período colonial no Brasil. A artista Gê Viana segura em uma mão o estilete e com a outra passeia os dedos pelas imagens, alternando o olhar entre a mesa e a parede que logo receberá sua obra no Instituto Ling, em Porto Alegre. 

O amarelo é a cor de fundo do mural, que com o passar das horas, torna-se suporte para as colagens. A artista ginga,  abaixando, afastando, movendo  o corpo para entender qual o lugar de cada imagem na composição. Na parte inferior, posiciona cupinzeiros de terra, montes espalhados pelo chão. No entorno, uma mata de cocais típica do Maranhão, lugar de origem da artista, toma forma. No centro da parede, uma pajoa olha a vegetação devastada e parece estar ali para curar. 

Foto: Gabriela Carneiro e Laura Horst/Instituto Ling

Gê Viana é uma artista de origem indígena do Povo Anapuru Muypurá, nascida em Santa Luzia no Maranhão, que tem desenvolvido seus trabalhos investigando as suas identidades, de gênero e étnica. Formada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), a artista produz colagens e fotomontagens, que para ela chamam-se remixagens, inspiradas em acontecimentos da vida familiar e do cotidiano, confrontando a cultura colonizadora hegemônica e os sistemas de arte e comunicação. Foi vencedora do Prêmio PIPA 2020.  

Atualmente, seu trabalho integra importantes exposições nacionais: Dos Brasis, no Sesc Belenzinho, em São Paulo; Bienal das Amazônias, em Belém, e Funk: Um Grito de Ousadia e Liberdade, no Museu de Arte do Rio. O Nonada Jornalismo conversou com a artista sobre o início de sua trajetória e o desenrolar de sua prática contra-colonial, que levanta arcas caídas e possibilita felicidade e libertação a corpos negros e indígenas a partir do fazer imagético. 

Tudo começa na rua 

O trabalho de Gê investiga origens, pertencimentos e ancestralidades. Para pensar na origem de seu trabalho, nos deparamos com a Rua, entendida no seu sentido físico e também espiritual. A artista nasceu no interior e sempre foi uma criança que brincava pelas ruas. “Gosto de pensar na rua enquanto infância. Antes de pensar na arte, estamos lá brincando”, lembra. Essa criança que ela foi acompanha seu percurso artístico até hoje. 

Quando inicia a faculdade e começa a frequentar o circuito da arte do Maranhão, ela percebe que a rua pode também ser lugar de criação. Não por acaso, suas primeiras inspirações foram festivais de dança, como o Conexão Dança, cujo palco eram os espaços públicos de São Luís. 

A relação do artista com a cidade começou também através do Pixo, que é arte do corpo, refletida até hoje nos trabalhos de Gê, como na performance Corpografias do Pixo, que desenvolve até hoje. “Antes eu não sabia que a pichação era um movimento estético e político. Eu só fazia, executava, não tinha esse intuito de provocar alguma coisa artisticamente”, conta. Ao entrar na universidade passa a compreender o pixo como um fenômeno sócio-político. 

Foto: Gabriela Carneiro e Laura Horst/Instituto Ling

A intimidade com a linguagem da rua levou a artista a entender o formato que gostaria de exibir seus primeiros trabalhos em artes visuais: o lambe-lambe. “A rua sempre foi interessante para mim, porque me interessa pensar como minha arte pode chegar mais fácil às pessoas”, explica. “Antes era a oportunidade que eu via de uma pessoa conhecer o meu trabalho e das próprias pessoas que estavam no trabalho se reconhecerem era jogando na rua.” Hoje ela já circula nacional e internacionalmente como artista, o que poderia significar um afastamento do espaço urbano enquanto suporte e lugar de criação. 

Mas isso nunca aconteceu, pois, quanto mais Gê caminha, mais retorna à rua, seja a de São Luís, ou de outras cidades com que se relaciona. Essa presença tornou-se até uma espécie de ‘política’ que a artista tenta manter. Quando um trabalho seu é exibido em galerias ou museus, ela pede para que algumas impressões da obra sejam feitas em formato de lambe também. “É uma forma até de economicamente devolver o trabalho, porque senão você acaba caindo em uma armadilha institucional”, explica. 

“O lambe é uma plataforma educativa, política, porque eu estou tratando de corpos que estão vivos, de histórias que estão vivas”, diz. Colar na cidade é presentificá-los. Gê não tem um processo padrão de criação, mas é comum que visualize as imagens antes de criar. “Elas vêm”, como um cochicho, uma intuição, um segredo cantado no ouvido por suas proteções. As obras mais recentes da artista nasceram no quintal da casa onde mora com a mãe Maria da Paz, na região metropolitana de São Luís, onde ela gosta de trabalhar ouvindo música como a doce melodia de Tiganá Santana.  

Curar através da imagem 

A artista trabalha a fotografia de uma forma expandida e utiliza o termo “remixagem” para denominar seu processo, que reúne colagens, imagens de arquivo, pinturas e fotografias para compor novas imagens. É possível relacionar o gesto de Gê, ao que a artista Rosana Paulino fala de seus bordados. Não é um corte delicado, ou que se pretende esteticamente ingênuo, é um recorte à facão – termo da artista – que sutura – termo de Rosana Paulino – feridas coloniais.

O uso de imagens de arquivo parte de um lugar de entender a ancestralidade, e de recusa também das imagens que lhe foram dadas. É o que faz em séries como Atualizações Traumáticas de Debret, onde atualiza litografias realizadas no século 19 por Jean-Baptiste Debret e outros europeus como Johann Moritz Rugendas. Quando ainda estava na escola, recorda que só via imagens da destruição do período colonial, tanto no livro de geografia quanto de artes. “Quero trazer outras possibilidades para o corpo negro e indígena através de uma felicidade e de uma liberdade”, conta. 

Não apenas libertar o corpo das imagens coloniais, Gê, mais recentemente, tem buscado ativar alegria, gozo e festa para corpos historicamente aprisionados por imagens brancas. Não à toa, ela traz cor ao preto e branco e seu trabalho é extremamente contratado e colorido. São os tons do nordeste, dos festejos, da espiritualidade que recriam e atualizam imaginários.

Esse é o Jantar Brasileiro. Atualização Traumática de Debret, 2020 (Acervo Gê Viana)

A faca que corta as imagens coloniais, também abre caminhos da mata. Ao falar sobre o próprio trabalho, Gê sempre cita pessoas mais velhas que lhe contam histórias que orientam sua vida, e que inclusive contribuem para os termos que posteriormente a artista utiliza em seu trabalho. Isso se reflete também nas obras, que apresentam corpos anciões que, geralmente, olham para frente, como se mirassem o espectador. 

“Os meus trabalhos são um levantar de arcas caídas. Esse é um termo utilizado pelos meus antigos, como minha mãe de parto, avó, tia avó e minha mãe que já foi curada pela minha vó com defumação”, conta. A fumaça é uma tecnologia importante na família da artista, que tem gerações atravessadas pelo carvão como substrato econômico.

Levantar arcas – palavra sem tradução, que a artista aprendeu com seus mais velhos no interior do Maranhão – significa levantar o espírito, restabelecer o equilíbrio de estar em pé. Ela cria contra atacando o quebranto, ou o Carrego Colonial como diria o educador Luiz Rufino. “Quando tua arca cai significa que tu estás debilitado espiritualmente por uma série de conflitos.” Os corpos cansados, sobrecarregados, explorados encontram cura nas imagens. 

Novas Centralidades

Da série Sobreposição da História – Plantacão de cana no Jardim Canada (Acervo Gê Viana)

O curador desta edição do  projeto Ling Apresenta, Bitu Cassundé, identifica o trabalho de Gê a partir da chave de pensar novas centralidades para a produção artística brasileira, para além do eixo Rio e São Paulo. “É um momento interessante para pensar nessa nova geopolítica das artes, em que há uma reorganização de territórios, interesses e questões.” Ele acredita que as mudanças no circuito trazem novas perspectivas, metodologias e epistemologias que investigam naturezas devastadas pelo colonialismo. Para ele, é também um afastamento da matriz europeia, ou branco-brasileira como diria o pesquisador Igor Simões, da história da arte. 

Bitu em suas últimas pesquisas se dedica a investigar as relações de trânsitos, deslocamentos entre as Regiões Norte e Nordeste do Brasil. Foi curador do Museu de Arte Contemporânea do Ceará, coordenou o Laboratório de Artes Visuais do Porto Iracema da Artes e integrou a equipe curatorial do projeto À Nordeste, no SESC 24 de Maio/SP em 2019, do qual Gê Viana faz parte.  “Gê faz uma subversão através da imagem, tirando esses personagens que foram massacrados pela imagem e pela violência, ressignificando-os em outros contextos, de empoderamento, de protagonismo, em outras possibilidades de leitura e linguagem”, analisa. 

Tempo espiral 

O fissurar o tempo se faz presente no trabalho da artista desde o início. Ela dá outro corpo ao corpo registrado no arquivo, como na série Sapatonas, oferecendo novas possibilidades, misturando passado, presente e futuro. “Se a gente for pensar em um tempo mais cosmológico, o tempo da mata é diferente desse em que a gente se movimenta na cidade”, destaca. Pensar em um tempo de festa, de comemoração e descanso é o que ela tem buscado. O chamado de “tempo livre” tem mais sentidos além do ócio, pois reivindica de fato um tempo em que esses corpos foram e podem ser libertos – da colonialidade que se faz presente até hoje. 

“Eu entendo que as celebrações que acontecem na minha cidade são em um tempo diferente dito pelo homem, que é o capital. O tempo do Maranhão é diferente do tempo de Porto Alegre. A gente vive de uma experiência do mar, do rio, nos movemos com esses vários tipos de natureza.” E se tem festa, tem som. O trabalho de Gê, embora visual, é também extremamente sonoro. O Reggae, escutado desde a barriga da mãe, está presente todo final de semana nas esquinas do Maranhão e no cotidiano das famílias. 

Para Gê, trazer as litogravuras para a experiência visual do Reggae é retomar o ambiente. Ela conta que, certa vez, estava em uma festa de religião dedicada a um caboclo, Seu Pedro da Mata, no Quilombo Santa Rosa dos Pretos, ao som de Caixas do Divino Espírito Santo. Gê escutou vozes na frente da casa e viu homens carregando caixas de som de uma radiola e levando para o terreiro.

Levantamento do Mastro Festa do Divino Espirito Santo, Atualização Traumática de Debret, 2020 (Acervo Gê Viana)

“Achei curioso, porque a música daquele momento não era o Reggae. O que estava sendo cantado era uma caixa com cantigas do divino”, lembra. Ela então ergueu a câmera, começou a filmar, e lembrou de uma litogravura de Debret em que homens no Rio de Janeiro carregam utensílios domésticos para comerciantes.

“Eu atualizei através da colagem o corpo dessas pessoas. Ao invés de estarem trabalhando para esses comerciantes, elas estavam trabalhando para si mesmas nesse ritual de levar caixa para fazer um festejo de santo.” Essa cena tornou-se a obra Radiola de Promessa, realizada por Gê em 2022, e que versa sobre uma ficção das festas que acontecem no terreiro e que envolvem a radiola. O aparelho é presente na maioria dos festejos de terreiro da região, seja para celebrar São Benedito, Santa Bárbara, São Sebastião, e outros.

Para Gê Viana, recortar é recontar. As imagens da artista olham de volta. Desestruturam o passado e anunciam que o agora é tempo de festa. São imagens-remixagens que dizem que é hora de levantar o foguete, porque o festejo está para começar. No som, na cor, no corte, é tempo das coisas ruins irem embora. 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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