Thaís Domingos, especial para o Nonada Jornalismo*
Betim (MG) — O bairro Jardim Brasília é localizado na área central de Betim, região metropolitana de Belo Horizonte (MG). Nele se encontra um ponto importante da cidade, o Hospital Regional, que atende a população betinense há mais de duas décadas. Há poucos metros de distância, está a Comunidade Quilombola Família Araújo, o primeiro quilombo urbano do município certificado oficialmente pela Fundação Cultural Palmares.
Para os Araújo, a luta pelo direito à terra é uma demanda que perdura por anos. A família regida pela matriarca Dona Zulmira e o patriarca Seu Zé Preto (1937-1995) mudou-se de Governador Valadares, Minas Gerais, para Betim em busca de mais oportunidades de emprego e qualidade de vida. Na nova cidade, eles acreditavam que também poderiam melhorar o futuro dos filhos. Nessa jornada, migraram para vários locais, incluindo barracões alugados e até as dependências do antigo Cemitério Nossa Senhora do Carmo. Cleusa Araújo, 51, cozinheira, conta que os pais sofreram muito na chegada à cidade. Para sobreviver, trabalhavam em plantações de feijão, arroz, cana de açúcar, mandioca e tomavam conta de sítios em troca de moradia.
Posteriormente, Seu Zé Preto, que havia começado um emprego no município como gari, tornou-se chefe do departamento de limpeza pública e ganhou a posse de um terreno cedido na década de 80 pelo prefeito da época. O gestor autorizou os Araújo a ocupar uma porção de terra equivalente a 1.800m² no Jardim Brasília.
Depois de estabelecida, a família foi crescendo e outras 6 casas foram construídas ao lado da casa do casal, abrigando filhos, irmãos, netos, primos e novos descendentes. Contudo, pelo fato de ter sido cedida oralmente, a terra não havia sido devidamente documentada e, segundo Alexandre Araújo, 43, membro da família, em 2017 foram intimados pela Guarda Municipal para deixarem as casas.
O processo ocorreu com muitos conflitos, pois a prefeitura moveu uma ação judicial que reivindicava a posse da terra. A causa acabou vencendo em 1ª e 2ª instâncias na vara cível, o que significava para a Família Araújo o abandono imediato do local. “A Prefeitura de Betim pediu a nossa retirada. Sem direito à moradia, sem direito a assistência social, sem direito a reassentamento e sem direito a indenização. Não foi a gente que foi avançando pro centro, foi o centro que veio avançando quando nós já estávamos aqui”, desabafa Alexandre.
Em resposta ao Nonada Jornalismo, a coordenadora de apoio e Conselheira Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Betim, Patrizia Martins alegou que “a prefeitura reivindicou o território para devidos fins de uso, sendo este de proporção pública. Após os procedimentos públicos ocorridos judicialmente, a família se certificou, dando fim a questão judicial. A prefeitura respeita e entende este direito”, completou.
No entanto, em diálogos com os familiares afetados pela ordem de despejo, a versão apresentada é de que o motivo específico pelo qual a prefeitura requereu novamente a terra nunca foi explicado.
Reconhecimento e retomada
Durante a pandemia de Covid-19 em 2021, a Lei federal 14.216, de 2021, designou que os despejos judiciais fossem suspensos enquanto durasse o cenário pandêmico. Ainda assim, nada estava garantido, pois a partir de abril do ano seguinte, os despejos continuavam autorizados. Cleusa relembra como o momento foi agoniante para ela e os demais familiares: “Nós viemos pra cá há quase 40 anos e queriam que nós saíssemos sem direito a nada, sem rumo.”
Sem segurança e estabilidade quanto às moradias – grande parte da família é composta por trabalhadores autônomos -, mobilizaram-se para pedir ajuda. A partir desse movimento, a causa foi reconhecida por lideranças em prol da luta fundiária, como Frei Gilvander, agente pastoral e assessor da Comissão Pastoral da Terra de Minas Gerais (CPT). Ao reunir advogados populares, integrantes de movimentos sociais e comunidades tradicionais, que ouviram a história, perceberam-se as similaridades da família com populações remanescentes de quilombo.
As práticas de vivência em comunidade, o reconhecimento étnico racial (todos os membros possuem descendência negra e indígena), agricultura de subsistência e criação de animais, são alguns dos fatores que os identifica como uma comunidade quilombola. O terreno dos Araújo atualmente possui uma horta, onde cultivam alface, cará, jurubeba e outras plantas nativas. O costume de plantar e colher, como conta Alexandre, foi uma herança deixada pelo pai.
A equipe do Nonada conversava com os moradores na varanda de uma das casas, quando Alexandre contou que, apesar do sofrimento, o processo fortaleceu o autorreconhecimento da família ao terem orgulho das próprias origens e buscarem informações sobre os ancestrais. Tirei os sapatos antes de pisar no solo um pouco íngreme e ir conhecer a casa da matriarca, Dona Zulmira. De voz branda, ela me ofereceu um café enquanto tomava uma xícara na porta de casa. Com 79 anos, ainda cozinha em um tradicional fogão de lenha, feito pelo filho Márcio Araújo, 48.
O fogão possui um significado diferente, não só por seu caráter artesanal, mas por também ser uma forma de manter uma memória afetiva da mãe, que perdeu o fogão anterior, pois quando a família soube da ordem de despejo, começou a se desfazer de alguns móveis que possuíam.
Na parede de casa, ela guarda os retratos e de familiares e sua devoção por Nossa Senhora Aparecida. Mesmo mantendo a expressão serena no rosto, Dona Zulmira ainda guarda problemas resultantes da situação ocorrida com a família, inclusive o trauma e os danos causados à saúde mental. “ Minha mãe ficou bem triste, agora que ela está melhorando. Essas coisas mexeram com a saúde dela”, conta Alexandre.
Márcio Araújo, 48, mecânico, também relatou que vários familiares, inclusive ele, passaram por episódios depressivos durante o processo e que ainda estão lidando com o sofrimento. Foi necessário também ter resiliência e força para arranjar outras formas de se reajustar depois da angústia e medo de perderem as casas. A união e a fé acabam sendo estas duas forças que conduzem a família e ajudam a manterem-se de pé.
Um quilombo reconhece o outro
Cerca de 1,3 milhão de brasileiros se autodenomina quilombola, segundo dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. Minas Gerais é o terceiro estado com o maior número de quilombolas do país, de acordo com os dados recentemente divulgados pelo IBGE. A autodeclaração é um marcador importante nesses dados, pois o processo de reconhecimento de comunidades quilombolas é necessário na garantia de direitos constitucionais, o que inclui uma série de etapas.
As fases iniciais são as visitas técnicas, nas quais antropólogos, historiadores e outros especialistas da área jurídica e cultural, realizam pesquisas e estudos que ajudam na comprovação de que um território corresponde às características de uma comunidade tradicional. Todo o processo é realizado levando em consideração a localização, relação específica com a terra, os costumes culturais próprios daquela comunidade, além de documentos e relatos orais.
A especialista em políticas de patrimônio e comunidades tradicionais Patrícia Brito, foi uma das responsáveis pelo estudo técnico interdisciplinar. O documento foi elaborado para exigir a regularização fundiária da comunidade e a visita técnica de representantes da Fundação Cultural Palmares, órgão vinculado ao Ministério da Cultura responsável por emitir certidão às comunidades quilombolas e inseri-las em cadastro geral.
Ao longo do processo, a especialista conta que também teve o auxílio de representantes de outras comunidades quilombolas de Belo Horizonte, como o Quilombo Mangueiras, Quilombo Souza e Quilombo Manzo. Para a pesquisadora, “quilombo reconhece quilombo” e por isso, a presença de representantes de outras comunidades foi tão importante para a realização do parecer técnico, além das bases teóricas.
De acordo com Patrícia, uma particularidade presente na trajetória da Família Araújo, é o aspecto migratório: “Seu Zé Preto e Dona Zulmira tiveram essa dimensão, que é migrar de uma cidade para a outra em busca de uma vida melhor. Sobre o conceito de quilombo, existe uma dimensão de que ele está lá isolado e que ninguém o toca, mas ele também pode ter uma dimensão de ser nômade quando é necessário, principalmente por essa questão de trabalho, que foi muito demarcado pelo Quilombo Araújo”, pontua.
Para a historiadora e professora Ana Cláudia Gomes, que também esteve comprometida com o desenvolvimento do parecer técnico, uma das principais barreiras para o destaque e reconhecimento público da comunidade é o racismo presente na sociedade. Por estar localizada em uma área urbana, comunidades tradicionais ou periféricas sofrem com a desapropriação de seus territórios por classes mais altas ou órgãos externos, em um processo denominado de gentrificação.
O conceito oriundo de análises sociológicas da pesquisadora britânica Ruth Glass, foi adaptado à leitura da realidade social brasileira pelo pesquisador, arquiteto e urbanista Carlos Ribeiro Furtado. Ele define o termo como “o processo em que as classes mais ricas se apropriam das áreas ocupadas por populações mais pobres. Isso implica, inclusive, em comunidades quilombolas”.
O termo também ajuda a explicar as realocações urbanas de Betim, que tornou-se o segundo maior pólo automobilístico do país com a chegada da empresa Fiat S/A em 1976. Segundo Alexandre Araújo, ainda quando eram crianças, para acessar o bairro em épocas chuvosas, só era possível montado em animais, devido à grande quantidade de mato e falta de asfalto. Com o avanço da economia e crescimento da população, o bairro tornou-se valorizado, abrigando um dos principais hospitais da cidade e estando próximo à Puc Minas.
A rota entre Minas e Bahia
A reportagem percorreu cerca de 751 quilômetros até Nova Viçosa, no Extremo Sul da Bahia, para observar as semelhanças e divergências entre o reconhecimento de territórios rurais em relação aos urbanos. Considerado o estado mais negro do Brasil, a Bahia também possui o maior número de quilombolas, totalizando cerca de 397.059 pessoas autodeclaradas, segundo dados do Censo 2022.
Nova Viçosa tem cerca de 39.509 habitantes e conta com 3 comunidades oficialmente reconhecidas, como: Helvécia, Rio do Sul e Engenheiro Cândido Mariano. A última citada é nosso destino final nessa travessia de Minas até a Bahia. O lugar até hoje guarda memórias da estação km 87, parte da antiga ferrovia Bahia-Minas, desativada em 1966, que ligava Ponta de Areia, até o Vale do Jequitinhonha em Araçuaí, Minas Gerais.
Com a construção da BR-101, o modelo de transporte alterou a paisagem e a economia da região, após a chegada das empresas de papel e celulose. A primeira foi a Aracruz Celulose, atual Fibria, e atualmente a Suzano Papel e Celulose. Com a esperança da geração de mais empregos, muitos habitantes acabaram vendendo suas terras e se mudando para outros locais, resultando em um êxodo rural incitado pela monocultura de eucalipto.
A certificação oficial do Quilombo Cândido Mariano aconteceu em 2005, segundo Adalberto Correia Domingos, 72, nascido na comunidade. Segundo ele, um dos maiores desafios para a aceitação da população, era a falta de conhecimento sobre o que era ser quilombola. “A gente trabalhou muito sobre o que significava ser quilombola, porque estava fazendo reconhecimento.”
A elaboração do estudo técnico aconteceu após reuniões de líderes comunitários com representantes da Fundação Cultural Palmares. Os marcadores principais foram a percepção sobre o fator étnico-racial, costumes presentes na terra, agricultura familiar, cultivo de roçados de mandioca, feijão e extração do azeite de dendê. Além disso, a ancestralidade das famílias e a relação com a terra, foi um dos fatores mais importantes. Segundo Adalberto, o bisavô, Albino Correia foi um dos fundadores da comunidade.
Manuel Correia Domingos, 69, conta que a demarcação da terra foi importante, principalmente por ajudar a preservar os modos de vida dos moradores. “A gente caçava às vezes em muitos lugares que hoje estão demarcados. Esse reconhecimento não é só assim por aqui só ter pessoas negras, né? A gente tem pé de jaca ali de duzentos anos, que eu subia quando era criança, meus pais chegaram, ela já estava ali. Então tudo isso é uma história. E essa história às vezes pra quem não entende não é nada. Mas é significante”, conta.
Segundo o banco de dados da Comissão Pró-Índio de São Paulo, a comunidade busca a titulação no Incra desde 2011. A situação de insegurança é regra quando se fala em direitos quilombolas. Das 1971 terras quilombolas do país, apenas 171 conseguiram a titulação, aponta a Comissão.
Nos últimos anos, o território passou por algumas tentativas de invasão, o que tornou ainda mais necessária a urgência de reivindicação pela titulação das terras. “Muitas pessoas achavam que por terem dinheiro e serem poderosos, já vinham metendo a mão e querendo invadir um trecho como aqui mesmo no fundo. Numa época, a gente teve que lutar, conversar com com algumas pessoas pra poder reverter esse quadro, porque eles já queriam tomar.”
Além das tradições, a terra também guarda recursos naturais, como restinga de mata atlântica, um córrego antigamente conhecido como “Lagoa do Velho Correia” e um dos antigos abastecimentos de água, um poço, hoje inativo e coberto por medidas de segurança. De acordo com Adalberto, o poço costumava abastecer a família e também outros moradores da comunidade.
Educação como chave para o fortalecimento da identidade
A Associação Quilombola Engenheiro Cândido Mariano, fundada em 2013, é composta por habitantes e atua na mediação com outros órgãos públicos. Segundo Jeane Domingos, integrante da associação, o grupo ainda não possui uma sede própria para as discussões e atividades. As reuniões também tiveram uma pausa e ainda não voltaram ao ritmo, devido às circunstâncias da pandemia. Para ela, uma das principais dificuldades enfrentadas, além da falta de recursos para o desenvolvimento de projetos, é a adesão de outras pessoas da comunidade em relação aos interesses da associação.
“Algumas pessoas se afirmam como quilombolas, outras falam que isso não vale de nada. Que ser quilombola e ser reconhecido, ter associação, não vale de nada, não traz benefício. Adolescentes e crianças que crescem aqui e vão se mudando para outros lugares porque não tem ganhos, curso ou serviço pra continuar no local. Então tem muitas pessoas que nasceram e se criaram no lugar, mas não continuam.”
Para Jeane, o fortalecimento da identidade passa pela educação. Ela conta que passou a ter orgulho da sua ancestralidade e de se afirmar como quilombola através da escola e através da história da família de seu pai, Manuel Domingos. Em 2012, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica foram aprovadas, mas ainda existem desafios para sua total efetivação.
Em conversa com Eliene Nascimento, coordenadora de projetos educacionais da Secretaria Municipal de Educação de Nova Viçosa, ela afirma que todas as comunidades quilombolas da cidade, incluindo Rio do Sul, Helvécia e Engenheiro Cândido Mariano possuem um projeto político pedagógico próprio, no qual ao longo do ano se trabalham as temáticas voltadas pras questões quilombolas. Entretanto, assim como em vários outros espaços educacionais, a temática étnico-racial na comunidade Cândido Mariano é reforçada em períodos específicos, como no Dia da Consciência Negra.
Ela conta que os principais desafios são a formação continuada de professores que ainda não ocorre de maneira presencial, visando a cultura e demandas específicas da comunidade. A coordenadora destaca outro ponto importante para a potencialização da educação quilombola, sendo este o sentimento de pertença:
“A comunidade Cândido Mariano tem assim uma prática muito bela, muito significativa. Mas geralmente, quando se abre concurso público são aprovadas pessoas de outros locais. Então esse sentimento de pertença ainda não é algo tão presente, como a participação de professores em diálogo com a própria comunidade, mas que precisa ser colocado em prática. É uma situação delicada e acredito que precisamos garantir essa educação para quem é do local, garantir uma educação que realmente retrate essa luta, a esperança, os sonhos dessa comunidade”, completa.
Conquistas e desafios
A ideia ocidental de progresso contraria os sentidos que a terra tem para comunidades tradicionais, entendendo o vínculo com o local para além da ideia de ganhos materiais. Por isso, a ameaça em ter que abandonar o território não significava só deixar o lugar, mas deixar para trás parte das próprias histórias.
Após conseguirem a certificação entregue pela Fundação Cultural Palmares em agosto de 2022, a Família Araújo obteve mais alívio, já que judicialmente, a Defensoria Pública de Minas Gerais foi acionada e a ordem de despejo não pôde prosseguir em vigor. Em 19 de março de 2023, comemoraram a conquista da certificação em um evento que reuniu lideranças quilombolas, intelectuais e políticas, como as deputadas Andréia de Jesus e Célia Xakriabá.
O passo para a certificação foi muito importante, porém o processo de titulação ainda não está totalmente finalizado. A Família Araújo está inserida no quadro de processos abertos por superintendência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A principal função do órgão é realizar o ordenamento fundiário e implementar políticas de reforma agrária, em acordo com o Decreto 4887.
Algumas etapas também são necessárias para a efetivação da titulação. De acordo com a assessoria de comunicação do Incra, a primeira é a certificação via Fundação Cultural Palmares. Depois, inicia-se o processo de elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), onde são levantadas informações cartográficas, antropológicas e etnográficas como resultado de pesquisa de campo.
Logo depois do relatório, o Incra publica os resultados dos estudos técnicos no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do estado da comunidade. Os interessados podem recorrer em até 90 dias após a publicação e as notificações, para contestar o RTID. Finalizada a etapa de contestações, o órgão publica a portaria de reconhecimento definindo os limites do território quilombola. O documento fica disponível no Diário Oficial da União e do estado de localização da comunidade.
Enquanto o processo segue em andamento, perguntamos a Alexandre o que espera para o futuro, já que a família possui várias crianças e jovens que hoje podem crescer com mais conhecimento sobre a própria história, além de pertença e reconhecimento de seus direitos como quilombolas: “A esperança é que as crianças possam crescer tendo acesso e direitos à educação e acho que é um direito nosso querer procurar tudo que foi retirado de nós,” completa.
Thaís Domingos
Thaís Domingos tem 22 anos, é jornalista pela Universidade Federal de Ouro Preto, participante da Jornada Galápagos 2023 e integrante da 2ª edição do Mirante, programa de trainee da Agência Lupa.