Foto: Isabelle Rieger/Nonada Jornalismo

Baiana mais antiga do Carnaval de Porto Alegre, dona Nicolina festeja: “tenho alma de guriazinha”

Porto Alegre (RS) — Em frente a uma casa verde e cheia de plantas, no bairro Santa Isabel, em Viamão, região metropolitana de Porto Alegre (RS), uma senhora sentada em uma cadeira de balanço nos olha chegar. Vestida com a camiseta do desfile da Portela deste ano escrita Um defeito de Cor, um turbante azul com miçangas e brincos azuis do mesmo tom, ela abre um sorriso imediato. Antes de entrar pela porta, uma placa de madeira no canto direito anuncia: recanto da Nicolina.

A sala de sua casa é um álbum de fotografias em aberto. De um lado, uma parede inteira com registros da família. Entre eles, várias fotografias de Nicolina Franco Gonçalves da Silva, de 93 anos, no complexo do Porto Seco, sambódromo do Carnaval de Porto Alegre, rodando como baiana, em diferentes fantasias. São pelos menos 45 anos assumindo o que é para ela, sua atuação preferida na vida: ser baiana na sua escola de coração, Unidos de Vila Isabel. Hoje, ela não é apenas referência da própria escola, mas de todo o Carnaval da capital gaúcha, pois ocupa o reconhecimento de ser a baiana mais antiga em atividade. Na quadra, ela é considerada rainha. 

Dona Nicolina (Foto: André Gomes/Carnaval Enfoco)

Como ela mesmo diz, “a batucada vem de longe”, e a história de Nicolina com o Carnaval começa muito antes de sua entrada para o universo das escolas de samba. Assim como uma parte de sua casa conta a história enquanto baiana, a outra parede da sala mostra uma imagem de sua mãe, Francisca, e de seu pai, Francisco. Entre eles, uma figura de dois pretos velhos. Foi lá que tudo começou. Seus pais eram donos de uma sociedade, um salão de baile – como se chamava na época, em Rio Pardo, interior do estado. Desde criança, saía junto com as rainhas, nos blocos e desfiles. Veio para a capital quando adolescente, junto com algumas irmãs. “Já cheguei procurando lugar para desfilar”, conta ela, lembrando que saia no bloco Céu Azul, que hoje não existe mais. 

As escolas de samba como as conhecemos em Porto Alegre surgiram a partir dos anos 1960. Com a crescente adesão do público aos coretos, locais por onde passavam os desfiles, –  e há registro de 10 mil pessoas na década de 1970 -, a relação entre foliões, prefeitura e iniciativa privada se estreitou. Visualizando o potencial lucrativo do evento, a dualidade público-privada passou a ditar as condições para o Carnaval acontecer, em um processo que se inspirou no modelo carioca, tanto na estética dos desfiles  – sob a liderança da Academia de Samba Praiana, que desfilou pela primeira vez em 1961 nos moldes de uma escola de samba – quanto na logística.

Quando chegou na Capital, Nicolina já demonstrava o espírito que a acompanha toda vida: festa, para ela, é compromisso sério. “Eu era solteira. Vinha para o carnaval do Bairro Santana, fugindo das minhas irmãs. Que vergonha!”, conta rindo. “Eu gosto de ver o fim das festas. É brabo quando a gente gosta de algo, não é?”. Em 1979, tornou-se uma das primeiras baianas da Vila Isabel. Ela viu a escola nascer, no bairro de Guarapari, em Viamão, quando ainda fazia parte dos chamados “cordões dos interiores”, escolas que não pertenciam ao grupo especial do Carnaval porto-alegrense. 

Amor e dedicação

Dona Nicolina, diretora das baianas da Vila Isabel (Foto: acervo pessoal)

“Eu me realizo vestida de baiana”, conta. Até poucos anos atrás, ela desfilava em quatro escolas na mesma noite. Terminava um desfile, ia para o barracão, mudava de roupa, e entrava de novo na avenida. Isso acontecia, principalmente, nos anos 90, quando conheceu um grupo de baianas independentes, foliãs que não tinham uma escola fixa e supriam as necessidades das agremiações. Já saiu na Embaixadores do Samba, no Bambas da Orgia, na Imperadores do Samba, na Acadêmicos da Orgia, e até mesmo na Praiana, a escola mais antiga do Carnaval de Porto Alegre. E sempre de Baiana – nunca desfilou em outra ala. “Nesses anos que ela desfilava em várias escolas, era meio dia e ela não tinha chegado ainda”, conta a filha Neide da Costa. Já a filha Nara da Costa lembra que nessa época as próprias baianas faziam as fantasias. 

Para Iara Cabana, costureira da Vila Isabel, o que emociona na baluarte da escola é a disposição. “Ela é a referência maior dentro da Vila Isabel, do mais velho ao mais novo. Dá uma emoção na gente, porque em 45 anos, ela é sempre a mesma”, conta Iara, uma das pessoas que também presenciou a fundação da escola. “Eu digo que quando crescer eu quero ser como ela.” A empolgação da baiana está em todas as etapas, inclusive na confecção de fantasias. “Quando ela era mais nova, vinha a minha casa ver se os figurinos estavam de acordo. Ela era sempre a primeira a experimentar a roupa. Se olhava no espelho, toda faceira.

O presidente da Vila Isabel, Jorge Corrêa, explica que Dona Nicolina faz parte de uma tradição na comunidade. “Ela tem uma grande relevância na nossa cultura popular sendo a baiana mais antiga da capital”. As memórias que a envolvem na quadra sempre falam de movimento: a baiana ajudava a confeccionar fantasias, arrecadava pessoas para desfilar, fazia café para toda comunidade nas reuniões. Ela sempre foi da linha de frente.

Rogério Farro, membro do Conselho Deliberativo da Entidade Carnavalesco, conhece Nicolina há mais de 25 anos. Ele atua em diversos setores da escola, e no último ano, auxiliou a baiana a ficar no carro alegórico a mais de 3 metros do chão. Para ele, a trajetória da amiga ensina para todos: “Ela nos ensina um verdadeiro amor e compreensão ao carnaval. Porque além de amar, tem que ter uma dedicação na construção diária do pavilhão – e ela tem.”

Além da própria escola, Nicolina acompanhou mudanças na história do Carnaval de Porto Alegre, como a transferência do local dos desfiles do centro da cidade para a Zona Norte. “Eu preferia onde era antes, no Centro, na Perimetral, porque a gente saía de ônibus daqui e chegava fácil no Carnaval”, avalia. 

O pé que é um leque 

Foto: Isabelle Rieger/Nonada Jornalismo

Dizem os mais antigos que quando a pessoa está sempre pronta para sair, ela tem o pé que é um leque. Para a amiga e baiana da escola, Maria Clara, Nicolina é assim, e está sempre perguntando a ela ‘’não vai sair na escola esse ano?’’. Mesmo não sendo mais diretora das baianas, ela é quem puxa e incentiva as que desfilam no chão. “A gente colocava o pé lá na casa dela, ela já pegava a sacolinha e nos levava para a escola. Ficava o tempo todo com a gente, dançando”, conta.  

Desde 2019, ela se tornou destaque da escola. “Agora faz três anos que eu não desfilo mais, por conta das pernas. Eu fico louca, porque quero desfilar no chão, mas as dobradiças estão ruins já”, conta sempre com bom humor. 

E o pé que dança samba, também se alegra com um pagode. Na mesma sala em que a baluarte conversa com o Nonada Jornalismo, uma foto entre as centenas chama atenção e tem até mesmo um porta-retrato próprio: é ela ao lado de Xande de Pilares.  Fã do cantor, essa é uma parte importante de quem ela é. O ex-integrante do Grupo Revelação é seu ídolo, e trilha sonora dos seus dias em casa. Em 2022, a família preparou uma surpresa para ela: Nicolina foi chamada no palco pelo próprio Xande, realizando o sonho de conhecê-lo. “Estou realizando meus sonhos, né? Meu sonho maior era conhecer esse menino que é meu. Tem uma música dele que diz ‘esse menino sou eu’, e eu digo ‘esse menino é meu”, conta.  “Não tenho música favorita. Todas são boas”. Além do pagode e carisma de Xande, ela também gosta do cantor pela semelhança física com seu neto Éder, falecido em 2005. 

Fio da memória 

Nicolina é também mãe, avó, e bisavó. Em sua casa, guarda um papel com uma lista do aniversário de cada um dos 9 filhos, 20 netos e 11 bisnetos – assim não se esquece nunca de quando é dia de festa. Embora esses sejam os filhos registrados no papel, o número é muito maior se contar todas as pessoas que a consideram com mãe, como Iara Cabana, e as irmãs e amigas da ala das baianas, Maria Clara Andrades de Oliveira, Selma e Diolina.

A relação de Vó Nica com o Carnaval é o fio da memória de muitas pessoas da família. Neide, a filha mais nova, lembra de ir criança para o Sambódromo do Porto Seco, e atravessar a noite na folia. Hoje, o maior desafio é convencer a mãe a ser um pouco menos ativa. “Ela é um pouquinho teimosa, porque ela ainda quer fazer as coisas como antes”, conta. “Só que com 93 anos, a teimosia dela agrada todo mundo.”

Foto: Isabelle Rieger/Nonada Jornalismo

No ano passado, ela desfilou vestida inteiramente no dourado. Brilhante do alto do Porto Seco, ela era Oxum. Este ano, o enredo da Vila Isabel homenageará Neguinho da Beija Flor e ela terá o lugar de maior destaque: ao lado do homenageado. Nicolina estará no mesmo carro que Neguinho, ambos baluartes de suas escolas, celebrando a cultura popular. 

Natália Costa, neta, vê o Carnaval como uma história familiar, e considera que foi a avó que abriu a passarela para que novas gerações pudessem desfilar. “Quem nos levou para o Carnaval foi ela. Todo mundo sai na escola, até os bisnetos estão desfilando já”. Para Natália, é difícil escolher um desfile marcante, mas no ano passado, ela e a vó saíram juntas e dividiram o mesmo carro pela primeira vez. “A escola entrou e começou a chover. Fiquei mais preocupada com ela do que comigo, mas quando eu olhei para o lado ela estava cantando o samba e batendo a mão no joelho”, conta.

Tem gente que só gosta de desfilar no dia do Sambódromo, mas a baiana, não. Ela vai, religiosamente todos os domingos, nos ensaios na quadra. “Eu já entro dançando. Gosto de tudo. Eu amo a folia”. Quando não vai, todo mundo fica procurando por ela.  Para Rogério, a importância da baluarte está inscrita na história do Carnaval porto-alegrense: “Tia Nicolina é um símbolo para todas as escolas. Uma escola que não tem baiana, não existe”. 

O carnavalesco da escola Realeza, Luiz Augusto Lacerda, lembra que as culturas afro-brasileiras têm como prática a valorização dos mais velhos, por serem os detentores dos segredos e sabedorias. “A Dona Nicolina é a matriarca de uma família inteira ligada ao carnaval. Ela tem uma importância ímpar para o contexto do carnaval, porque ela nos mostra que não existe limite para dançar, sambar, viver e curtir. Ela é uma figura que devemos referenciar, independente de bandeira, e dizer para o Brasil que temos uma joia valiosa aqui, que continua brilhando.”

Nas palavras de Nicolina, ela é uma baiana com alma de guriazinha. Se tivesse sua história escrita em um livro, conta que o título seria ‘Esse livro é meu’, uma releitura do título do álbum de Xande de Pilares. Assim como o ídolo, a baiana mais antiga do carnaval porto-alegrense nasceu para o samba. E reforça: “A gente está na vida para se divertir”. 

Compartilhe
Ler mais sobre
Carnaval
Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
Ler mais sobre
Culturas populares Entrevista

A volta da festa e o direito à folia: uma conversa com Luiz Antonio Simas